O florescimento dos interesses transindividuais no campo dos direitos sociais

AutorRonaldo Lima Dos Santos
Páginas75-138
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CAPÍTULO III
O FLORESCIMENTO DOS INTERESSES
TRANSINDIVIDUAIS NO CAMPO DOS DIREITOS SOCIAIS
1. DIREITOS SOCIAIS E INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
O campo dos direitos sociais constitui área fértil para o fl orescimento de interesses transindividuais,
seja pelos traços de igualdade, solidariedade e coletividade que marcam aqueles, seja pelas inúmeras
guras de sujeitos de direito que surgem em decorrência da constante especifi cação de direitos, com
o consequente reconhecimento de direitos de coletividades cujos membros são identifi cados por
aspectos de vida comuns (criança, adolescente, idoso etc.).
Historicamente, constatamos um vertiginoso processo de categorização de novos sujeitos de
direito no âmbito dos direitos sociais, com destaque para o reconhecimento de grupos ou categorias
de pessoas que se identifi cam por condições comuns. Assim, pode-se falar em direitos dos idosos,
direitos das crianças, direitos das pessoas com defi ciência etc.
Esses novos direitos permitem o tratamento uniforme de uma série de situações homogêneas
em que se encontram os seus sujeitos que, apesar de individualmente distintos, são homogeneizados
por alguma característica, condição pessoal ou social ou qualidade comum. Daí, então, o processo de
categorização ou classifi cação de grupos de indivíduos que se encontram em situações idênticas, o
que possibilita, por via coletiva, a proteção dos interesses individuais, mas, sobretudo, a tutela coletiva
de direitos coletivos.
Todo esse processo consiste num movimento que aponta um caminhar do ser humano abstrato e
singularmente considerado para a identifi cação de novos sujeitos de direitos, distintos do ser humano
(mas a ele vinculados). Não se fala apenas abstratamente no ser humano (ou “homem”) como nas
clássicas Declarações de Direitos, mas num ser humano cada vez mais específi co (ser humano
idoso, ser humano criança, ser humano portador de defi ciência, ser humano discriminado) e aferido a
partir de coletividades, grupos, comunidades ou categorias de sujeitos que são reconhecidos por um
denominador comum (idosos, defi cientes, crianças, mulheres etc.). A esse processo, Norberto Bobbio
denomina especifi cação do homem “abstrato” para fi guras concretas.(1)
Com essa especifi cação, e o consequente reconhecimento de grupos ou categorias de sujeitos
que se colocam sob uma mesma característica ou aspecto comum, os quais concedem à determinada
coletividade uma relativa uniformidade e permitem a sua identifi cação como uma coletividade
homogênea, as normas deixam de considerar somente o homem como gênero abstrato da espécie
humana para tutelá-lo em todos os aspectos e peculiaridades da sua vida.
Assim, tomando-se por base o gênero, identifi cam-se os direitos da mulher; ao se considerar as
fases da vida, defi nem-se os direitos das crianças, dos adolescentes e dos idosos; a consideração de
características étnico-culturais leva ao reconhecimento de direitos de determinados grupos sociais
ou minorias; ao reportar-se ao estado de saúde, atribuem-se direitos especiais aos doentes ou às
pessoas com defi ciência.
Esse processo é verifi cado na evolução normativa dos diversos documentos específi cos para a
garantia de direitos a certas categorias de indivíduos, aprovados pelos organismos internacionais, como
a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (1948); a Declaração Universal
dos Direitos da Criança (1959); a Declaração sobre a Eliminação da Discriminação à Mulher (1967); a
(1) BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 62.
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Declaração dos Direitos do Defi ciente Mental (1971); a Declaração dos Direitos da Pessoa Defi ciente
(1975); a Declaração Universal dos Direitos dos Povos (1976); a Convenção sobre a Eliminação de
todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979); a Carta Africana dos Direitos Humanos e
dos Povos (1981)(2); a Declaração dos Direitos Humanos dos Indivíduos que não são Nacionais nos
Países em que Vivem (1985); a Convenção Relativa aos Direitos da Criança (1990).
Estes instrumentos garantidores de direitos sociais específi cos identifi cam as diferenças existentes
entre os diversos grupos de indivíduos e disciplinam uma série de garantias aos componentes de cada
categoria reconhecida, o que propicia a defesa coletiva dos seus respectivos direitos. Ao lado desses,
cresceu a preocupação com os denominados interesses humanos de terceira geração, de dimensão
mundial ou global, como o direito ao desenvolvimento, a um meio ambiente sadio e ecologicamente
equilibrado, à saúde etc.
Como se observa, a ideia de direitos que transcendem a mera esfera individual, cuja efervescência
ocorreu a partir do crescimento exacerbado da atividade industrial e das relações de consumo no século
XX, estendeu-se a outros setores da sociedade, como o campo dos direitos sociais e econômicos.
O desenvolver desses direitos sociais numa sociedade marcada por um fenômeno de massifi cação,
aliado ao conteúdo promocional do Estado social, inclina-os à garantia de benefícios e vantagens de
mesma natureza concomitantemente a uma vasta categoria (coletividade) de pessoas. Sua lesão,
nesse contexto, acaba por desprestigiar igualmente um vasto universo de indivíduos. São relações de
massa no campo dos direitos sociais.
É uma tendência da sociedade atual diferençar para igualar. Criam-se cada vez mais categorias
de indivíduos dotados de condições sociais, físicas ou psicológicas assemelhadas, com o único e claro
propósito de fortalecê-los, em um processo de coletivização que permita, por meio de ações e normas
específi cas, a tutela conjunta dos seus interesses comuns e lhes possibilite atuar em igualdade de
condições na sociedade com os demais cidadãos.
As relações de trabalho, nesse contexto, constituem terreno fecundo para o fl orescimento e de-
sabrochar dos interesses transindividuais — difusos, coletivos e individuais homogêneos. O trabalho
prestado por vários indivíduos a um mesmo empregador e as relações uniformes com este formadas,
além das condições similares de vida, saúde e outros aspectos da pessoa humana, propiciam a identi-
dade de interesses entre os trabalhadores e o lugar originário comum que os comunicam, dando-lhes
contornos coletivos.
Historicamente, debruçado sobre a proteção de direitos individuais e coletivos, o Direito do
Trabalho observa gradativamente o crescimento da demanda pela tutela dos interesses transindividuais
no campo das relações trabalhistas. Tal circunstância deriva da existência de interesses comuns
a determinadas coletividades ou categorias de trabalhadores e demais pessoas ligadas, direta ou
indiretamente, ao mercado de trabalho, cuja consequência resulta exatamente na preocupação com a
tutela processual coletiva desses interesses.
Desse modo, reportar-se à existência de interesses transindividuais no Direito do Trabalho é levar
em consideração todo o processo de especifi cação do ser humano, tal como apregoado por Norberto
Bobbio. Isto se verifi ca no campo das relações trabalhistas com a gradual concretização do ser humano
trabalhador, com o intuito de garantir a tutela específi ca de categorias especiais de trabalhadores
(crianças, adolescentes, mulheres, idosos, terceirizados, defi cientes, grupos étnicos etc.) e de bens
(2) Sobre a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos, Fábio Konder Comparato refl ete sobre o
reconhecimento dos direitos coletivos dos povos, assinalando que “A grande novidade deste documento normativo, aprovado
na 18ª Conferência de Chefes de Governo, reunida em Nairobi, no Quênia, em junho de 1981, consistiu em afi rmar que os
povos são também titulares de direitos humanos, tanto no plano interno como na esfera internacional. Até então, só havia o
reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação, assentado no art. 1º de ambos os Pactos Internacionais de 1966.
(...)
É claro que todos esses direitos coletivos, para serem reconhecidos no plano lógico, mesmo antes da sua vigência efetiva,
exigem um mínimo de precisão, não apenas quanto ao sujeito, mas também quanto ao objeto.” (COMPARATO, Fábio Konder.
A afi rmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 391.)
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coletivos, tornando, também, relevante nesse ramo do direito o reconhecimento de certas condições
pessoais ou sociais de cada grupo de trabalhadores e a natureza dos bens comuns a eles.
1.1. Interesses transindividuais na Constituição de 1988
A Constituição Federal de 1988, ao projetar um Estado Democrático de Direito voltado ao bem-
-estar social, considerou de modo profundo e inovador toda a problemática decorrente da proteção
dos interesses transindividuais. Não somente os reconheceu materialmente como aperfeiçoou o seu
mecanismo de defesa, partindo do garantivismo individual para a previsão de direitos fundamentais
da sociedade e das coletividades e de instrumentos processuais de tutela de direitos coletivos. Afas-
tou-se, assim, da ideia — até então prevalecente — de que direitos e deveres fundamentais estão
relacionados estritamente com o indivíduo.
Não somente permitiu o legislador constituinte a tipifi cação e a conceituação dos interesses
transindividuais, como deu ampla atenção à sua tutela processual, adotando uma postura inovadora
na orquestração de uma série de instrumentos processuais de tutela de direitos difusos, coletivos e
individuais homogêneos. Além disso, alargou as bases de atuação do Poder Judiciário e viabilizou a
construção de um Estado moderno e aberto à discussão e à avaliação institucional de confl itos de
natureza coletiva ou difusa.
Celso Antonio Pacheco Fiorillo identifi ca na CF/88 uma série de direitos e garantias que assumem
a natureza de interesses transindividuais de caráter difuso: o princípio da igualdade e a proibição do
preconceito de origem, cor e raça (art. 5º, caput e XLII); a função social da propriedade (art. 170, III); a
higiene e segurança do trabalho (art. 7º, XXII); a educação, incentivo à pesquisa e ao ensino científi co
e amparo à cultura (arts. 205, 216 e 219); o direito à saúde (arts. 196 a 200); o meio ambiente (art.
225); a proteção do consumidor (arts. 1º, IV; 5º, XXXII; 170, V, e 48 do ADCT); a proteção ao patrimônio
histórico, cultural, artístico e paisagístico; a tutela da família, da criança, do adolescente e do idoso
(arts. 226 a 230), entre outras.(3)
Muitos direitos, outrora tidos como exclusivamente individuais, na ordem preconizada pela
Constituição Federal de 1988, assumiram o nítido caráter de interesses transindividuais. É o que ocorre,
por exemplo, com o direito de propriedade. Canonizado pela ideologia liberal-capitalista, sua garantia
na Carta Magna atual está associada ao cumprimento da sua função social (art. 5º, XXIII), de sorte que
passa a fi gurar como verdadeiro interesse difuso da sociedade. No âmbito das relações de trabalho, a
função social da propriedade traz como corolário a função social da empresa. Como assinala José Luis
Bolzan de Morais, “não há, portanto, que se falar em propriedade apenas como um direito individual
formalizado cartorialmente através do registro imobiliário. A propriedade passa a ser qualifi cada por
sua função. Para ser proprietário, não basta ser titular exclusivo da posse de um bem, representada por
um título formal, mas é preciso completá-lo com a observância de um interesse titularizado por todos
e por ninguém, ou seja, um interesse transindividual difuso”.(4)
Nesse contexto, v. g., o direito à saúde assume uma postura coletiva atrelada ao modelo de
desenvolvimento do Estado de bem-estar social. Não mais se vincula ao simples acesso individual e
direto à contratação de médicos e profi ssionais da área ou aquisição de remédios no livre mercado,
passando a existir como atividade-dever do Estado de amplo acesso aos cidadãos, independentemente
das possibilidades pessoais de cada um.(5)
Esse é o atual sentido do direito à saúde na nova ordem constitucional: de mero interesse individual,
passou a apresentar-se como um direito difuso de toda a sociedade; característica que se pode extrair
diretamente das palavras empregadas no art. 196 da CF/88, ao declará-lo como “um direito de todos e
dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
(3) FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Os sindicatos e a defesa dos interesses difusos no direito processual civil brasileiro.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, passim.
(4) MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 177.
(5) Idem, ibidem, p. 188.

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