"A forma na qual as contradicoes podem se mover": para a reconstrucao de uma teoria materialista do Direito/The way contradictions can move: towards a reconstruction of material theory of law.

AutorBuckel, Sonja

Introducao

Ha muito tempo se aguarda uma abordagem genuinamente marxista da teoria do direito. Logo apos a Revolucao de Outubro, o jurista sovietico Eugeni Paschukanis, (4) seu defensor historico mais proeminente, ja reclamava que "a literatura marxista sobre a teoria do direito em geral era muito escassa" e, portanto, o marxismo "enquanto conceito, seria um novo campo a conquistar". Nos anos 1970, seus seguidores anunciaram que "o legado de Marx e Engels para o campo da teoria do direito ainda aguardava seu desabrochar cientifico", (5) a nao ser que fosse "o filho ilegitimo do desenvolvimento da teoria marxista". (6) Por fim, vinte anos mais tarde, Andrea Maihofer constatou que, ate aquele momento, a teoria marxista do direito teria chegado a um beco sem saida e que cada vez mais se tornado insignificante. Isso seria tragico se considerarmos que, "na atual discussao juridico-teorica, [a teoria marxista do direito] poderia ser uma alternativa produtiva e um corretivo critico importante". (7)

No entanto, depois de mais de um seculo de controversias teoricas, nao se pode dizer que nenhuma licao essencial foi produzida. Muito pelo contrario, tais controversias expuseram as relacoes centrais entre o direito burgues e a socializacao capitalista que permanecem ocultas como potencial a ser preenchido nos discursos teorico-juridicos atuais. O objetivo desse ensaio e apresentar o resultado da reconstrucao das contribuicoes marxistas que trago de forma detalhada em Subjetivacao e Coesao, para a reconstrucao de uma teoria materialista do direito (2007) (8) e, assim, propor uma versao atualizada da teoria marxista do direito. Durante os anos 1970, e provavel que tal teoria fosse descrita como "marxista". Hoje, este tipo de afirmacao implicaria outras consequencias. Em primeiro lugar, os novos movimentos sociais explicitaram que as sociedades capitalistas nao podem ser reduzidas apenas a producao de mercadorias, ainda que isto as caracterize significativamente. A teoria feminista confirmou que a concepcao binaria hierarquizada de genero representa um outro principio estrutural que nao pode ser derivado como "contradicao secundaria" da "relacao do capital". Nem os principios estruturais da sociedade real, nem as diversas atoras e atores que se ligam a Marx devem ser facilmente subsumidas no interior dessas teorias. "Materialismo" ou, em outras palavras, a materialidade da praxis social, tambem abrange diversos fenomenos e teorias, como materialidades hibridas.

O proprio Marx nao possui nem uma teoria do direito como Kant ou Hegel, nem uma teoria do Estado, para a qual ele tenha dedicado uma investigacao em separado. (9) No entanto, ainda que ele nao sustente nenhuma teoria juridica elaborada e sistematica, ha muitos pontos em sua obra, nos quais ele se expressa sobre o direito, como na Critica a Filosofia do Direito de Hegel, na Questao Judaica ou na Critica ao Programa de Gotha. Como consequencia disso, juristas e teoricos do Estado marxistas comecaram, nao segundo as palavras de Marx, mas a partir do metodo, a retomar suas analises politico-economicas ou suas investigacoes historicas para se aproximar da perspectiva do direito. Estes foram aqueles que seguiram o caminho de uma teoria do direito materialista. Nos anos 1920, ocorreu na Alemanha pela primeira vez um amplo debate sobre a relacao entre direito e estrutura social na sociedade capitalista, cujos autores mais significativos foram Otto Kirchheimer e Franz Neumann. Ao mesmo tempo, na Italia, Antonio Gramsci trabalhava nao em uma teoria do direito, mas em uma teoria da hegemonia, que colocou em evidencia as ate entao pouco estimadas formas da superestrutura (Uberbau-Formen) e tambem do direito.

Nos anos 1970, um periodo historico caracterizado pela renovacao de lutas e discussoes sociais principalmente sobre o papel do Estado, a teoria do direito marxista alcancou uma nova fase auge. Duas visoes foram cristalizadas. De um lado, o estruturalismo althusseriano e o conceito de hegemonia de Gramsci orientados pela linha franco-italiana (tambem Nicos Poulantzas e Michel Foucault) e, de outro, a teoria critica orientada a tradicao marxista hegeliana. No inicio dos anos 1980, a chamada "crise do marxismo" tornou-se perceptivel. (10) Althusser apontava principalmente os deficits do marxismo da epoca em relacao a esfera que Marx nomeou como "superestrutura", ou seja, aquela do Estado, do direito e da ideologia, aparentemente derivada da "base economica".

Ha alguns anos, desde o inicio da crise do pos-fordismo, e possivel observar o retorno de uma nova onda de recepcao da teoria do direito materialista que, entretanto, procura analisar principalmente as relacoes de dominacao transnacionais. (11)

A partir dos debates anteriores, as seguintes criticas devem ser consideradas para a reconstrucao de uma teoria materialista do direito atualizada:

* Frequentemente a teoria marxista do direito argumenta de forma funcionalista e reduz o direito a reproducao do capitalismo;

* Isso e normalmente ligado a falha em conceitualizar a primazia material do contexto reprodutivo de forma nao-economicista;

* Como consequencia disso, geralmente outros principios estruturais e relacoes de dominacao (genero, raca e sexualidade) deixaram de ser considerados, o que se expressa em um reducionismo de classe;

* As teorias materialistas do direito operaram um ocultamento de praticas e de suas atoras e atores muito semelhante a teoria do direito baseada na teoria dos sistemas.

* Alem disso, o papel do Estado nacional em relacao ao direito foi superestimado, pois a teoria do direito foi relegada a uma subdivisao da teoria do Estado.

* Assim quase todas as teorias falharam em compreender um misterio central do direito, a sua autonomia relacional, ou seja, sua facticidade contra-fatica;

* E, por fim, ofereceram somente respostas contraditorias para a pergunta estrategica sobre qual papel o direito poderia desempenhar para uma estrategia emancipatoria.

Reconstrucao--Passo 1: Formas sociais

Marx analisou teoricamente as formas sociais do valor, da mercadoria, do dinheiro e do capital. Eugen Paschukanis sugeriu que essa abordagem fosse utilizada como ponto de partida tambem para uma analise do direito. Essa ideia fez a historia de uma epoca, pois, com ela, pela primeira vez, o direito deveria ser desenvolvido a partir dos principios estruturais da socializacao capitalista e nao mais a luz de uns ou outros interesses da "classe dominante". No chamado "debate da derivacao do Estado" dos anos 1970, diversos teoricos tambem se encarregaram de torna-lo fertil para este ambito. Como resultado disso, Joachim Hirsch apresenta a existencia de uma pluralidade de "formas sociais", que ele descreve da seguinte maneira:

"Formas sociais sao formas reificadas e fetichizadas, decodificaveis somente por meio de critica teorica, que assumem de uma forma independente a relacao reciproca dos individuos sociais contra sua vontade e acao conscientes e que caracterizam suas percepcoes imediatas e orientacoes de comportamento: mercadoria, dinheiro, capital, direito e Estado. Na medida em que elas dirigem a acao dos individuos e classes de forma nao imediatamente explicita, tornam os antagonismos sociais essenciais "processaveis", ou seja, elas garantem que a sociedade se preserve e se reproduza apesar de e devido as suas contradicoes, sem, no entanto, neutraliza-las com isso". (12) Nesse sentido, Paschukanis, e com ele os autores da teoria da "derivacao do Estado", derivam uma forma (o direito) de outra (a mercadoria), ao inves de desenvolver as formas sociais como tais a priori e assim analisa-las em sua respectiva especificidade. Isso lhe conferiu a acusacao de economicismo, funcionalismo e reducionismo ao direito privado. Nos itens seguintes, sugiro um caminho alternativo que apresenta a forma juridica no contexto das formas sociais e que se orienta, portanto, para seu modo de acao e nao para sua funcao.

A critica formulada por Marx a economia politica de seu tempo tracou o ponto de partida: "a economica politica analisou imperfeitamente o valor e a grandeza do valor e desvendou o conteudo oculto nessas formas. Ela nao questionou em nenhum momento por que esse conteudo assume tal forma". (13)

A questao decisiva seria entao, por que, no capitalismo, a sociabilidade do trabalho assume a forma do valor. Com isso, Marx deixa o terreno da teoria economica para "demonstrar as condicoes sociais que tornam a existencia da forma valor necessaria". (14) Para ele, tratava-se entao de sustentar que o valor atua momentaneamente como propriedade social das coisas, "nas quais o trabalho total e de forma bastante especifica problematico". (15) O trabalho total esta sob tais condicoes capitalistas porque, na organizacao privada da producao, o trabalho concreto individual, ao contrario de outras formas de producao, nao possui ainda uma formula social imediata que se realiza somente atraves da troca: (16) "como os particulares realizam seu trabalho individual na forma de trabalho...

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