Formas de resolução de conflitos: autotutela, autocomposição e heterocomposição - por onde caminha a solução?

AutorAna Cristina de Melo Silveira - Raquel Betty de Castro Pimenta
Ocupação do AutorAdvogada. Pós Graduanda em Direito Processual Civil pela PUC/SP. - Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG; Especialista em Direito do Trabalho Ítalo-Brasileiro pela UFMG e pela Università di Roma Tor Vergata
Páginas363-376

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1. Introdução

O homem é um ser gregário. A vida em socie-dade faz com que este experimente a todo tempo vários tipos de conflito. Por isso, Amauri Mascaro Nascimento afirma que "Dessa maneira, dotar a sociedade de técnicas aprimoradas para resolver os conflitos é a tarefa fundamental que contribui com a harmonia e a paz social"1.

O presente trabalho visa a perquirir e conceituar as formas de resolução de conflito existentes em nosso país, dando um panorama geral sobre o âmbito de aplicação de cada uma delas.

A sociedade brasileira ainda sofre forte influência da cultura adversarial, com a submissão da maioria esmagadora dos conflitos ao método jurisdicional. Com isso em vista, serão abordadas as principais críticas tecidas pela Doutrina ao Poder Judiciário, principalmente no que diz respeito à sua morosidade e à falta de efetividade decorrente.

Em que pese serem corretas e necessárias, as críticas vêm, por vezes, acompanhadas da promoção dos métodos alternativos de resolução de conflitos como salvação para estes problemas e até mesmo como solução para todo e qualquer tipo de conflito.

Entretanto, o estudo do tema demonstra que os fatores sociais, pessoais e a natureza do conflito determinam a forma mais adequada para a sua resolução, não sendo possível afirmar que todos os conflitos devem ser submetidos a um mesmo método, conforme será demonstrado.

2. Formas de resolução de conflito

O Poder Judiciário, por maior e mais bem equipado que seja, não é capaz de responder de forma pronta e eficaz a todos os conflitos levados à sua apreciação. Um número excessivo de demandas e a morosidade na tramitação, entre outros problemas, motivam corretas críticas a esta forma clássica de resolução de controvérsias.

Ilustrativamente, César Fiúza aponta como entraves do processo judicial o excessivo apego às formalidades processuais, os altos custos das demandas e a lentidão do julgamento, concluindo que "tudo isso torna o processo judicial, como regra, ineficaz, distanciado da sociedade, em função da qual, em última instância, deveria existir"2.

No âmbito trabalhista, temos a observação de José Roberto Freire Pimenta:

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"Diga-se expressamente: nenhum ramo do Poder Judiciário (e muito menos a Justiça do Trabalho brasileira) está preparado para instruir, julgar e, se necessário, executar as sentenças condenatórias proferidas em todos (ou quase todos) os processos que lhe forem ajuizados. As consequências desse quadro já são, aliás, de conhecimento geral e infelizmente estão presentes em vários setores do Judiciário brasileiro: uma Justiça assoberbada por um número excessivo de processos é inevitavelmente uma Justiça lenta e de baixa qualidade."3

Acrescenta ainda que:

"Não se pode nunca esquecer que o processo e a própria função jurisdicional do Estado têm limites que decorrem da própria natureza das coisas, inerentes aos instrumentos jurídicos em geral e ao próprio Direito. É, portanto ingênuo e ilusório atribuir à função jurisdicional do Estado a tarefa de fornecer sempre uma solução absoluta, pronta e acabada para todo e qualquer conflito inter-subjetivo de interesses, tão logo este se verifique - isso é humanamente impossível."4

Não se pode perder de vista que, como bem advertem Mauro Cappelletti e Bryant Garth5, há vários obstáculos ao acesso à Justiça, tais como custos do processo, vantagens do litigante habitual sobre o litigante eventual, a morosidade da justiça e grau de educação.

Em sua famosa obra Acesso à Justiça, Cappelletti e Garth identificam, ainda, as três ondas do acesso à Justiça: a assistência judiciária, a representação jurídica para os interesses difusos e uma mais abrangente, denominada de "enfoque de acesso à Justiça", que pretende atacar as barreiras de forma mais articulada e compreensiva. Nesta terceira onda, incluem a tendência ao uso de métodos alternativos ao Poder Judiciário para a resolução dos conflitos, afirmando:

"Existem vantagens óbvias tanto para as partes quanto para o sistema jurídico, se o litígio é resolvido sem necessidade de julgamento. A sobrecarga dos tribunais e as despesas excessivamente altas com os litígios podem tornar particularmente benéficas para as partes as soluções rápidas e mediadas, tal como o juízo arbitral. Ademais, parece que tais decisões são mais facilmente aceitas do que decretos judiciais unilaterais, uma vez que eles se fundam em acordo já estabelecido entre as partes. É significativo que um processo dirigido para a conciliação - ao contrário do processo judicial, que geralmente declara uma parte "vencedora" e a outra "vencida" - ofereça a possibilidade de que as causas mais profundas de um litígio seja examinadas e restaurado um relacionamento complexo e prolongado."6

Por suas vantagens, em todo o mundo, a solução negociada entre as partes está cada vez mais sendo utilizada em detrimento da submissão exclusiva dos conflitos ao Poder Judiciário.

Neil Andrews, autor inglês estudioso da ciência jurídica processual, explica que o Poder Judiciário na Inglaterra tornou-se um dos últimos recursos para a resolução dos conflitos e identifica algumas explicações para a alta procura das ADR (alternative dispute resolutions):

"A parte também poderá querer evitar a incerteza, a demora e a publicidade envolvidas nos processos litigiosos. Existe, também, a distância dos tribunais: ao optarem pelo processo judicial, as partes decidem entregar o caso aos advogados e ao sistema judiciário. Em contrapartida, elas poderão ter maior controle se mantiverem o processo perto de si, conduzindo uma negociação privada para um acordo e, talvez, permitindo que um mediador intervenha."7

Como visto, a composição dos interesses em conflito é importantíssima para atingir a pacificação social, tanto pela potencialidade de sua compreensão por parte dos envolvidos como pela incorporação dos sujeitos ao procedimento e maior aceitação social.

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Isso porque, como é cediço, a possibilidade dos conflitos sociais serem resolvidos por meio da autotutela é modalidade excepcional, sendo privilegiados os métodos compositivos de resolução de controvérsias.

Estas formas negociadas de solução de conflitos podem ser divididas em autocompositivas ou heterocompositivas, dependendo dos sujeitos envolvidos na dinâmica da negociação.

Adriana Goulart de Sena, baseada nas lições de Mauricio Godinho Delgado, diferencia as duas modalidades, explicando que, na autocomposição, são apenas os sujeitos originais do conflito que atuam na busca por sua resolução, conferindo "uma sistemática de análise e solução da controvérsia autogerida pelas próprias partes". Na heterocomposição, por sua vez, "a intervenção é realizada por um agente exterior aos sujeitos originais na dinâmica de solução do conflito, transferindo em maior ou menor grau para esse agente exterior a direção dessa própria dinâmica"8.

Após tais considerações, serão discriminadas as diferentes formas de resolução de conflito, explicitando-se seu campo de aplicação.

3. Autotutela

A autotutela é o método mais primitivo de solução de conflitos, no qual se verifica um ato de defesa pessoal em que, com ou sem forma processual, uma das partes do litígio impõe à outra sua vontade sem o consentimento desta. Observa-se que, neste método, "não há a intervenção de um terceiro para solucionar o litígio, mas a imposição da decisão de uma das partes, em regra a mais forte, do ponto de vista físico, econômico, político ou social"9.

Com a monopolização pelo Estado do encargo de definir o direito a ser aplicado nas relações conflituosas, bem como de executá-lo em caso de negativa de cumprimento espontâneo do comando pela parte, a autotulela tornou-se exceção à jurisdição estatal, sendo permitida em casos restritos.

Um exemplo de autotutela no Direito do Trabalho é a greve, hipótese que foi assegurada pela Constituição Federal de 1988 (art. 9º). Adriana Goulart de Sena adverte que, embora a greve seja importante exemplo da utilização da autotutela nos conflitos coletivos trabalhistas, raramente atinge seu objetivo de forma imediata. Assim, acaba por "funcionar este mecanismo como simples meio de pressão, visando ao alcance de mais favoráveis resultados na dinâmica negocial coletiva ou a se iniciar"10.

4. Autocomposição

A autocomposição, conforme lição de Carlos Henrique Bezerra Leite, "consiste em uma técnica em que os litigantes, de comum acordo e sem emprego da força, fazem concessões recíprocas mediante ajuste de vontades"11.

Adriana Goulart de Sena explica que na autocomposição, são apenas os sujeitos originais do conflito que atuam na busca por sua resolução, conferindo "uma sistemática de análise e solução da controvérsia autogerida pelas próprias partes"12.

É forma direta de resolução de conflito que, em regra, se dá de modo não judicial. Pode ocorrer a autocomposição endoprocessual no caso de o juiz ficar inerte, e a interferência dos advogados ocorrer apenas como representantes da vontade das partes, mas não como mediadores13.

São modalidades de autocomposição a renúncia, a aceitação e a transação.

A renúncia, ou desistência, ocorre quando o titular de um direito renuncia a sua pretensão; a aceitação, ou submissão, consiste na renúncia à resistência oferecida à pretensão; e a transação ocorre quando as partes do conflito chegam a uma solução mediante concessões recíprocas14.

No âmbito do direito coletivo do trabalho, a autocomposição pode ser verificada nas negociações coletivas. Leciona, com propriedade, Mauricio Godinho Delgado que "a autocomposição ocorre quando as partes coletivas contrapostas ajustam suas divergências de modo autônomo, diretamente, por força e atuação próprias, celebrando documento pacificatório, que é o diploma coletivo negociado"15.

Para que a...

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