Fraude à execução e a inconstitucionalidade da presunção absoluta no novo CPC/2015

AutorGelson Amaro de Souza
CargoAdvogado (Presidente Prudente ? SP)
Páginas180-235

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Ver nota 1

Introdução

O legislador pátrio, no afã de se conseguir meio mais ágil para solucionar litígios, partiu para a ofensiva sem medir esforços e, muitas vezes, até mesmo sem medir as consequências, insere normas altamente perigosas e desproporcionais, muitas vezes injustas, nas relações negociais correntes no dia a dia.

A preocupação com o desfecho da questão o quanto antes, e o desentupimento dos órgãos jurisdicionais que sabidamente se encontram abarrotados de processos à espera de solução, fez o legislador de forma açodada procurar resolver o problema com providências e medidas antidemocráticas, ressuscitando a antiga e superada presunção absoluta, como se estivesse a nação sob algum regime de exceção.

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Com isso, invadiu a órbita constitucional, violando princípios que levaram anos para serem reconhecidos e estabelecidos na carta magna. Não se pode negar a boa intenção do legislador, que teve por finalidade assegurar o cumprimento das obrigações, com a efetivação do direito em menor tempo possível. No entanto, apesar da boa intenção, parece ter ocorrido extrapolação no trato da matéria relacionada ao cumprimento de julgado e ao processo de execução fundado em título extra-judicial, ressuscitando a presunção jure et juris, extirpada dos meios jurídicos pela Constituição Federal de 1988.

Institutos próprios de regimes autoritários, como a antiga "verdade sabida" que existia até meados do século passado e a chamada presunção absoluta que era aceita até a vigência da atual Constituição da República de 1988, não podem mais existir. Hoje, a população brasileira vive sob um regime que se pronuncia democrático, onde o direito de defesa (ampla defesa) é garantia constitucional (art. 5º, LV, da CF), o que o torna incompatível com institutos como a "verdade sabida" e a "presunção absoluta", que não admitem defesa.

O artigo 844 do CPC trouxe à tona a presunção absoluta, eliminada na Constituição da República de 1988, contrariando as normas do art. 5º da CF, por desrespeitar o devido procedimento legal (LIV), não admitir prova em sentido contrário, contraditório e ampla defesa (LV), além de afastar da apreciação do Judiciário a legitimidade do ato administrativo e a eventual lesão a direito por ele causada (XXXV). Colocada como está a sua redação, o art. 844 do CPC acaba por permitir que o adquirente da coisa venha a ser privado do seu bem sem que haja o devido procedimento legal (art. 5º, LIV, CF) e sem qualquer apreciação pelo Judiciário de eventual prejuízo que possa haver em face da averbação (art. 5º, XXXV, da CF).

Não se pode admitir que em nome da segurança jurídica ou da rápida efetividade do direito, a atividade administrativa como a averbação em registro possa se sobrepor à atividade jurisdicional. Se o próprio julgamento do juiz não fica imune à contestação, como haverá de assim ficar um mero ato administrativo? A própria atividade jurisdicional está sujeita à revisão tais como ação rescisória, ação anulatória, recursos, reclamação, permitindo prova em contrário, o devido procedimento

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legal e o contraditório, como não haverá de admitir prova em contrário um simples ato administrativo extrajudicial (averbação), realizado sem contraditório, sem defesa e sem o devido procedimento legal (art. 5º LIV e LV, da CF)?

1. Presunção

Não se pode confundir presunção com prova, pois a primeira existe, exatamente, para dispensar a segunda. Presunção é a subjetividade encarnada no pensamento humano que toma algo como existente independentemente de ser ou não verdadeiro2. É uma forma de se conjecturar e tomar como certo fato incerto, considerar ocorrente fato que não se sabe existente, porque sobre ele não se tem prova. É presumir, sem provar.

A palavra presunção é originária do latim praesumptio, que significa tomada de posição antecipadamente, como uma concepção primeira e última ao mesmo tempo. Presumir segue a mesma origem, com o significado de intuição e antecipação de uma conclusão sem se preocupar com eventual acerto ou desacerto. É a exposição de imaginação fruto de intuição pessoal, sem maiores cuidados e sem se preocupar com a realidade daquilo que se presume.

Historicamente, na seara do direito, a expressão ‘presunção’ procurou representar a técnica condenável de convencimento sem prova, como se um simples pensamento (intuição) pudesse suplantar qualquer verdade. É a consideração da existência de fato ou ato provável, mas desconhecido. Apesar de provável, ainda não está provado3.

Não se pode condenar a presença da presunção no corpo legislativo, porque ela é um elemento útil para alcançar a segurança jurídica. Mas, o que não se pode dar a ela é a conotação de verdade absoluta. A presunção não pode ter a força de verdade absoluta, ela serve tão somente para inverter o ônus da prova, mas não pode substituir a prova.

É verdade que a presunção legal é fator de segurança jurídica, mas não se pode olvidar que esta segurança é tomada por fator arbitrário e artificial que faz parecer verdadeiro o que, por vezes, não é nem mesmo provável4. É certo que a presunção é o resultado de um raciocínio

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lógico da mente humana, pois que, de um fato conhecido tiram-se consequências para imaginar a existência de outro desconhecido5. É o caso do art. 844 do CPC, que, da existência de registro da penhora ou do arresto, procura tirar as consequências de um conhecimento por parte de terceiros, que nem existe. Por várias razões ou até mesmo por vários motivos, o terceiro adquirente da coisa pode não conhecer a existência do arresto ou da penhora. um erro na expedição de certidão em que se omite a existência do ônus é suficiente para impedir que o terceiro conheça da constrição existente. O analfabeto ou aquele de pouca instrução pode não entender o conteúdo da certidão. O incapaz pode não tomar conhecimento, por não estar no pleno exercício de suas faculdades mentais, entre outros casos.

1. 1 Presunção relativa

O Código de Processo Civil procurou distribuir o ônus da prova entre as partes de forma lógica e igualitária, de maneira a não beneficiar uma e causar prejuízo à outra. Isto é, não quis favorecer uma parte nem sobrecarregar a outra com ônus probatório de difícil realização. Neste tom, é que o art. 373 do CPC afirma que cabe ao autor provar o fato constitutivo do seu direito (I) e ao réu sobra o encargo de provar fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor (II). A norma sabiamente dispôs sobre o ônus da prova de forma lógica e igualitária, concedendo a ambas as partes o direito de produzir prova e ao mesmo tempo distribuindo e ônus da prova a cada uma delas conforme o indicativo lógico de que qual parte seria mais razoável exigir a produção da prova.

Assim é que o art. 369 do CPC dispõe: as partes têm direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados no CPC, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa com a finalidade de influir eficazmente na convicção do juiz. Essa norma está em consonância com as garantias fundamentais traçadas na Constituição da República (art. 5º, LIV e LV), referentes ao devido procedimento legal, ao contraditório e à ampla defesa. Nada mais natural.

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Sem retirar o direito à produção de prova, em alguns casos específicos, para se adequar ao princípio da igualdade e demais garantias constitucionais, vez por outra, a norma processual determina a inversão do ônus da prova, para colocar as partes em posição de igualdade, quando para uma delas seja mais fácil cumprir o encargo probatório, o que se caracteriza como distribuição dinâmica dos ônus da prova, o que é louvável.

Ao se tratar da distribuição dinâmica do ônus da prova, a sistemática em alguns casos de exceção achou por bem presumir algum fato, o que dispensa a parte interessada de fazer a sua prova. Esta dispensa que se faz recebe o nome de presunção, situação em que tal fato ou ato é tomado por existente, independentemente de prova por quem o aproveita. A parte a quem a prova aproveita fica dispensada de sua produção, mas nada impede que a parte contrária produza outra em sentido contrário para destruir tal presunção6. trata-se de presunção relativa que permite ao adversário produzir prova em sentido contrário, haven-do apenas a inversão do ônus probatório.

A presunção relativa aparece em algumas situações, tais como quando o possível credor está de posse de um título de crédito, presume-se que a dívida ainda não foi paga. De outro lado, se o título de crédito já estiver nas mãos do suposto devedor, presume-se que este já pagou a dívida. Mas, tanto em um caso ou em outro sempre haverá a possibilidade de defesa e prova em sentido contrário, havendo apenas inversão do ônus da prova, mas não a impossibilidade de produzir prova. A impossibilidade de discussão a respeito impediria a produção de prova, bem como o exercício dos direitos de defesa, do contraditório, e do devido procedimento legal, e, mais que isto, impediria a apreciação pelo Judiciário de eventual lesão a direito, o que não é admitido pela Constituição Federal (art. 5º, XXV, da CF).

1. 2 Presunção absoluta

A presunção absoluta é coisa do passado, memória do período...

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