A mediação frente à reconfiguração do ensino e da prática do direito: desafios e impasses à socialização jurídica

AutorCamila Silva Nicácio
Ocupação do AutorDoutora em Antropologia do Direito pela Université Paris I, Panthéon-Sorbonne.
Páginas103-115

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1. Introdução

A modernidade acostumou-nos a uma visão binária do mundo. Alguns opostos são bastante conhecidos e interessam particularmente aos propósitos do presente texto, tais como a cisão entre o saber tradicional e o saber científico ou ainda entre o direito vivido e o direito positivo. Apresentadas normalmente como hierarquicamente equivalentes, essas separações acobertam, no entanto, relações de força, em que tanto saber científico quanto direito positivo subjugam o saber tradicional e o direito vivido. Ter desconstruído tais relações seria, para alguns, um dos apanágios da era pós-moderna, avessa aos códigos binários de leitura. No campo do ensino do direito, algumas experiências bem sucedidas demonstram e reforçam essa fundamental descontrução. Igualmente, não é obra do acaso que a mediação, operando segundo um código ternário, goze de considerável sucesso há mais de trinta anos. Ela integra hoje, indiscutivelmente, um elenco de metodologias para uma transformação gradual na maneira pela qual países, grupos, indivíduos lidam com a questão do acesso à justiça, em particular a questão da resolução de conflitos. Inúmeras experiências, desenvolvidas em campos sociais diversos, demonstram um esforço expressivo para mudar a mentalidade e perfil daqueles que lidam diariamente com o direito; numerosos exemplos podem ser apresentados e a análise comparada, aqui focalizada nas experiências brasileira e francesa, confirma esta tendência. No entanto, a observação e análise do que se fez até aqui em termos de desenvolvimento da mediação não parecem demonstrar resultados à altura dos fins propostos inicialmente por programas ou diretrizes, apesar de pioneiros. Ao contrário, deixam o pesquisador reticente, entre, por um lado, uma postura científica rigorosa frente à constatação de uma performance ainda tímida e, por outro, um afã militante, desejoso de acreditar que a mediação encerra uma grande promessa para uma mudança cidadã frente ao direito e a justiça. A atual reflexão trabalha com a hipótese segundo a qual tais experiências, embora fundamentais, intervêm tarde no longo itinerário de contato e aprendizado dos indivíduos com o direito, não sendo assim capazes de alterar práticas e pré-compreensões já bastante arraigadas, tanto no imaginário de juristas quanto de não juristas. A escolha do desenvolvimento de experiências de mediação nos primeiros momentos da socialização jurídica pode, deste modo, apresentar-se como uma possibilidade substantiva de mudança, passível de afetar igualmente futuros profissionais do direito e cidadãos comuns.

2. Experiências universitárias concretas de passagem da "pirâmide" à "rede"

Os historiadores foram os primeiros no Brasil a denunciar o caráter elitista das formações jurídicas,

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cujo título acadêmico atribuído ao profissional do direito era capaz de alçá-los ao patamar de um cidadão ideal. Este cidadão pleno se impunha àqueles subcidadãos despossuídos de diplomas e tomados como reféns de um saber especializado. Este desnível não deixou de acarretar efeitos na conformação e no desenvolvimento sociocultural e político do país: ele reflete, ainda, na atualidade, uma pirâmide social que exclui a maior parte dos cidadãos do acesso a uma cidadania plena.

A distância entre operadores e não operadores do direito reproduz, no campo epistemológico, o isolamento do saber oficial, dito científico, considerado como o único habilitado a explicar o mundo e a propor soluções aos seus problemas. A estrutura piramidal se verifica, inclusive, neste caso. Em uma extremidade, uma minoria intelectual e, em outra, uma maioria de pessoas possuindo apenas o senso comum, um senso comum ao qual se nega todo status científico.

No entanto, a chamada pirâmide se fragmenta e dá origem à ideia de "rede", apresentada por François Ost e Michel Van de Kerchove e Antônio A. Prates.1 Assim, ocorre uma transformação que está em curso e recusa a aceitar o monopólio da ciência por cientistas, reivindicando uma "ecologia dos saberes", segundo a expressão de Sousa Santos2, que leve em consideração a diversidade de conhecimentos do mundo, conhecimentos que, contextualizados, são, no mais das vezes, mais adequados para responder às situações sociais. Nesta mesma ordem de ideias, os juristas, advogados, juízes, procuradores, dentre outros, não podem mais reclamar o tema da justiça como um monopólio tendo em vista a perspectiva de uma pirâmide prestes a se esfacelar. Vários atores sociais entraram em cena reivindicando a reconfiguração tanto das relações entre saber científico e senso comum, quanto aquelas entre justiça oficial e justiça advinda de outros modos de regulação social.

A constatação da insuficiência de um discurso único nas ciências e, consequentemente, nas maneiras de se tratar a questão da justiça, esteve na origem de um programa pioneiro de pesquisa-ação, desenvolvido no Brasil, desde 1995, na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais: o Programa Polos de Cidadania.

Interdisciplinar e interinstitucional, este Programa iniciou suas pesquisas a partir de um pressuposto clássico da sociologia jurídica: os fatos vividos concretamente pelos cidadãos guardam pouco contato com os direitos proclamados nas leis. Falta efetividade a estes direitos, derivada, possivelmente, por uma formação jurídica que não tem estado atenta e preocupada com os direitos fundamentais e que, assim, não contribui com a redução deste desequilíbrio. Em busca da solução desta lacuna na formação integral do profissional de Direito, o Programa Polos de Cidadania mobiliza, já há quinze anos, todo um arsenal humano, científico e logístico, entre professores-pesquisadores e estagiários, aproximadamente oitenta pessoas vindas de pelo menos seis campos disciplinares distintos. Além do Ministério Público, do Ministério da Educação, do Trabalho e da Justiça, órgãos da Administração Estadual, várias organizações e associações, ancoradas na sociedade civil, são igualmente parceiras históricas das iniciativas deste Programa.3

A estratégia metodológica escolhida é a da pesquisa-ação, que tenta associar, como parceiros ativos da pesquisa, aqueles que são tradicionalmente identificados como objetos de pesquisa. Contudo, porque se trata de uma metodologia inovadora, difícil de ser compreendida e integrada pelo meio universitário e não universitário, o programa admite que suas ações sejam associadas também aos levantamentos etnográficos, apesar de sua tônica ser a atuação permanente de seus integrantes nas comunidades tendo em vista transformações dos fenômenos sociais nocivos que persistem nas populações em situação de exclusão. Esses levantamentos etnográficos e de pesquisa-ação fundamentam diferentes planos de atuação, realizados com e pelos grupos sociais parceiros e visam, dentre outros: à constituição de capital social e humano; à formação de redes sociais mistas; à administração de conflitos a partir da mediação; à produção de renda pelo intermédio de cooperativas populares; à confrontação e à prevenção da exploração sexual infanto-juvenil e, finalmente, à mobilização popular por meio de intervenções teatrais voltadas aos direitos fundamentais.

Esses planos de ação se estruturam a partir de três grandes eixos temáticos fundamentais ou marcos

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teóricos: a cidadania, a subjetividade e a emancipação. O desenvolvimento destes eixos temáticos levam a considerar uma nova acepção do conceito de autonomia. Segundo Gustin:

[...] Uma pessoa ou um grupo que possam ser considerados autônomos só o são em relação aos demais entes sociais, quando estes são capazes de justificarem perante os demais, de forma interativa, as suas escolhas e decisões de ação. Ser autônomo é saber que se está agindo com um caráter próprio em relação aos valores e regras do outro e das comunidades. A validação intersubjetiva é, portanto, condição necessária para a sua realização. O chamado autogoverno deve se realizar a partir da capacidade de avaliar criticamente as normas, os padrões e os objetivos de seu entorno. Isso significa uma complexa dialética de inserção-destaque; isto é, de estar relacionado e integrado às regras e princípios de seu contexto, por ter sido por este constituído, e, ao mesmo tempo, dele estar liberto para ser capaz de julgá-lo.4

No que concerne ao acesso à justiça, o Programa desenvolveu em 2001 uma experiência piloto de resolução de conflitos em regiões periféricas da capital do Estado de Minas Gerais, a partir da criação de Centros de Mediação e Cidadania em três bairros de favelamentos. Esta experiência seria, dois anos mais tarde, eleita pelo Governo do Estado como base de sua política pública de acesso à justiça. Hoje, existem espalhados em diversas cidades, mais de vinte centros de mediação, cuja coordenação metodológica foi, inicialmente, confiada ao Programa Polos. Uma das características marcantes dessas unidades é sua natureza híbrida: financiadas pelo Estado, essas práticas de mediação agrupam em torno delas outros setores sociais, tais como moradores de bairro, outras universidades, a Ordem dos advogados e parceiros institucionais como a Procuradoria ou a Defensoria Pública. Os casos não vocacionados a serem tratados pela mediação são transferidos às instâncias consideradas como mais adequadas para fazê-lo. A ideia de "rede" é, neste sentido, predominante.

Essa natureza "híbrida" leva a admitir uma mestiçagem entre modelos ditos puros de mediação, tais como o modelo latino (baseado na iniciativa governamental) e anglo-saxão (inspirado em práticas cidadãs e comunitárias de direito), apresentados por Jean-Pierre Bonafé-Schmitt.5 Tal mestiçagem parece indicar na direção de uma mudança no paradigma de...

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