A função social da advocacia e o sigilo profissional

AutorGilberto Bercovici
Páginas237-256
A FUNÇÃO SOCIAL DA ADVOCACIA
E O SIGILO PROFISSIONAL
Gilberto Bercovici
Professor Titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo
A Constituição Federal de 1988 dispõe em seu artigo 133: “O advogado é indis-
pensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações
no exercício da prof‌issão, nos limites da lei”. A elevação da atividade advocatícia
à dignidade constitucional, ao lado de outros ofícios1, atribui a esta prof‌issão a di-
mensão de uma verdadeira missão de ordem pública, qual seja, a concretização da
justiça na sociedade brasileira. Essa função reconhecida constitucionalmente é um
dos requisitos institucionais para viabilizar o exercício da ampla defesa (artigo 5º, LV
da Constituição de 1988)2 e resguardar a garantia constitucional do devido processo
legal (artigo 5º, LIV da Constituição). O conceito de devido processo legal signif‌ica
que o processo deve observar a estrita legalidade, pressuposto do próprio Estado de
Direito. Dele se desdobram as demais garantias processuais constitucionais, como
os princípios do acesso à justiça, da ampla defesa e do contraditório.
A constitucionalização da função social da advocacia no ordenamento brasileiro
é uma etapa na longa trajetória para o reconhecimento da importância do advogado
para a realização dos direitos fundamentais na sociedade. Antes mesmo da previsão
constitucional do papel da advocacia na administração da Justiça, o antigo Estatuto
da Ordem dos Advogados do Brasil de 1963 (Lei 4.215, de 27 de abril de 1963), previa
a importância pública do exercício da advocacia, em seus artigos 68 e 693.
Nehemias Gueiros, principal autor do anteprojeto do Estatuto da OAB de 1963,
já compreendia a advocacia como atividade essencial à prestação jurisdicional do
Estado e pacif‌icação social, não como simples exercício de prof‌issão liberal, mas
1. Para uma visão geral das funções essenciais à Justiça elencadas na Constituição federal de 1988, vide André
Ramos TAVARES, Curso de Direito Constitucional, 14ª ed, São Paulo, Saraiva, 2016, p. 1112-1124. Sobre a
advocacia, especialmente p. 1122-1124.
2. Segundo André Ramos Tavares, a garantia constitucional da ampla defesa consiste no “asseguramento
de condições que possibilitam ao réu apresentar, no processo, todos os elementos de que dispõe. Entre as
cláusulas que integram a garantia da ampla defesa encontra-se o direito à defesa técnica, a f‌im de garantir
a paridade de armas (par conditio), evitando o desequilíbrio processual, a desigualdade e injustiça proces-
suais” in André Ramos TAVARES, Curso de Direito Constitucional cit., p. 620.
3. Artigo 68: “No seu ministério privado, o advogado presta serviço público, constituindo, com os juízes e
membros do Ministério Público, elemento indispensável à administração da Justiça”.
Artigo 69: “Entre os juízes de qualquer instância e os advogados não há hierarquia nem subordinação,
devendo-se todos consideração e respeito recíprocos”.
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ativamente engajada na realização da Justiça no ordenamento brasileiro4. Fábio Kon-
der Comparato, em palestra proferida em 1983 na Conferência dos Advogados do
Estado do Rio de Janeiro, enumerava as expectativas de uma advocacia coordenada
com os princípios do Estado Democrático de Direito, ainda por se construir: “A nova
dimensão da advocacia depende de uma ampliação da esfera da cidadania. Num Estado
de Direito, ao advogado, como titular de competência prof‌issional legalmente reconhe-
cida e exclusiva, caberá a tarefa de manejar os instrumentos jurídicos de realização dos
objetivos constitucionais de transformação social”5.
A Constituição de 1988 consolidou esta vinculação indissociável entre advocacia
e administração da justiça6, e esta é a chave interpretativa para leitura das prerrogativas
conferidas aos advogados no sistema jurídico brasileiro. Aliás, como bem preceitua
Eduardo Bittar, as prerrogativas da advocacia não devem ser compreendidas como
prerrogativas corporativas ou como mera proteção à privacidade, mas sim como ga-
rantias para a realização dos direitos da cidadania na ordem constitucional: “Neste
sentido, o advogado não é, estritamente, defensor de seu cliente, mas atua em favor
da efetivação do direito para realização da função social do direito para promover
a paz social, devendo associar os interesses particulares com os interesses sociais
comuns. Os atos do advogado constituem, portanto, munus público, ou seja, de
imposição de deveres estabelecidos segundo os interesses da sociedade, de acordo
com os princípios éticos que regulam a prof‌issão. Colabora para a administração da
justiça e proteção e concretização da Constituição, atuando para proteger o direito
de igualdade dos cidadãos”7.
4. Nehemias GUEIROS, A Advocacia e o seu Estatuto, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1964, p. 38: “Deixou, o
advogado, de ser a excrescência desdenhada por alguns ou a simples facção litigante encarada na parcia-
lidade obrigatória como elemento perturbador da veneranda serenidade do juízo. É ele, agora, o próprio
juízo, numa das suas justaposições essenciais e impreteríveis, compondo e contrapondo, como o outro
causídico que se lhe defronta, não apenas o contraditório processual, mas a própria jurisdição do Estado,
sem que ele – e só com o magistrado – não seria a Justiça, mas o arbítrio despótico e prepotente ou o dogma
distribuído como mercê paternalista aos validos e favoritos das simpatias e inclinações pessoais do poder
unipessoal judicante”.
5. Fábio Konder COMPARATO, “A Função Social do Advogado” in Para Viver a Democracia, São Paulo, Bra-
siliense, 1989, p. 168.
6. Eduardo C. B. BITTAR, Curso de Ética Jurídica: Ética Geral e Prof‌issional, 5ª ed, São Paulo, Saraiva, 2007,
p. 464: “E esse o ponto que se procura grifar nesta ref‌lexão, por entender-se ser essa a razão pela qual o
legislador constitucional estatuiu normas magnas para a consagração da função advocatícia entre aquelas
essenciais à prestação jurisdicional. A inserção da advocacia no contexto constitucional, antes de mera
casualidade, é medida proposital e intencional do legislador, dentro do tônus principiológico e democrático
que procurou dar à regulamentação das instituições jurídicas”.
7. Eduardo C. B. BITTAR, Curso de Ética Jurídica cit., p. 465. Adiante prossegue o autor, ao comentar a função
de controle que a advocacia exerce sobre a jurisdição, contribuindo para o aprimoramento das instituições:
“Mais ainda, em tempos em que o controle externo está em pauta, há que se dizer que não existe maior
controle e, sublinhe-se, mais ef‌icaz que qualquer outro, senão aquele exercido diuturnamente pelas partes
postulantes no exercício de suas funções processuais. Por se tratar de partes interessadas nos resultados
sociais e jurídicos do processo, maior é o interesse em que o julgamento se desenvolva sob os cânones da
imparcialidade, da legalidade e da regularidade formal. Ainda aqui se pode nobilitar a função advocatícia
na proteção dos interesses de seus clientes, bem como na administração da justiça em sua totalidade; a
essa categoria prof‌issional cumpre prover necessidades de uma justiça material na produção resultante do
exercício do poder jurisdicional”.
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