Funções do instituto

AutorFernando Schwarz Gaggini
Ocupação do AutorAdvogado e professor universitário. Pós-graduado/especialista em Direito Mobiliário (Mercado de Capitais) e Mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Páginas144-155

Page 144

O instituto da desconsideração da personalidade jurídica foi desenvolvido como um instrumento que tem por finalidade resguardar o interesse de prejudicados pelo uso indevido da estrutura societária, pelos sócios, para lesar terceiros. Ao mesmo tempo, tal instrumento atende à função de preservação da empresa, tendo em vista que não atinge a validade do ente societário, preservando, portanto, a sociedade e a respectiva empresa por ela explorada, dado o fato de que não se trata de um problema de estrutura da sociedade, mas do uso que lhe é empregado pelos sócios11.

Page 145

Tal teoria foi elaborada como um instrumento que permite ao terceiro, prejudicado pelo mau uso da sociedade, responsabilizar os sócios, e respectivos bens particulares, por obrigações originalmente atribuíveis à sociedade, ou mesmo se atribuir à sociedade aspectos cabíveis aos sócios, quando estes utilizam a estrutura societária irregularmente. O efeito prático desta medida consiste em não se considerar a autonomia patrimonial da sociedade empresária no caso concreto. Representa, portanto, uma técnica excepcional de modificação de centros de imputação12, pela qual a responsabilidade direta, originalmente atribuível à sociedade, é transferida para a pessoa do sócio, em decisão judicial proferida em um determinado processo, e que portanto afastará a autonomia patrimonial somente em relação àquela situação, preservando-se a sociedade em relação aos demais atos estranhos ao processo em foco.

Trata-se de situação em que as sociedades sofrem uma delimitação interna, pela qual suas normas perdem aplicação, em algumas circunstâncias, de forma a aparecer a realidade subjacente13. É

a evidência da realidade sobre a forma.

Logo, representa instituto apto a limitar e destinar o uso da personalidade jurídica para a finalidade lícita que dela se espera, e que permite conjugar a proteção de terceiros, vítimas de mau uso da sociedade, sem contudo afetar a validade da pessoa jurídica.

Klaus Unger, citado por J. Lamartine Corrêa de Oliveira, menciona que:

"a teoria do disregard of legal entity permite ao juiz desconsiderar a autonomia jurídica de uma pessoa jurídica quando sua forma jurídica é utilizada abusivamente para manipulações desonestas. É justificada com a consideração segundo a qual a pessoa jurídica seria apenas uma ficção, imaginada por motivos técnico-jurídicos, para que, com isso, determinadas

Page 146

finalidades, que a ordem jurídica não desaprova, pudessem ser atingidas. Nem os imperativos da lógica nem os do Direito poderiam porém exigir do juiz a preservação dessa ficção, quando com isso pudessem ser justificadas desonestidades."14Para Piero Verrucoli, a personalidade jurídica das sociedades corresponde a um privilégio, de modo que os atos que geram a personificação são técnicas para atribuição do benefício da individualização da organização coletiva. Nesse contexto, vista a personificação como um privilégio, seria incoerente que se concedesse tal privilégio sem reservas quanto à sua utilização, ou seja, sem que se tenha como reagir quando do abuso desse privilégio. Reação essa que, no caso das sociedades, se viabiliza através da desconsideração (ou "superamento", nas palavras do autor)15.

É certo que a desconsideração, tal como concebida no direito comparado, é medida de aplicação excepcional e pontual.

Excepcional porque se trata de instituto que se contrapõe à regra ordinária de limitação de responsabilidade na sociedade. Como tal, a regra geral aplicável é que os sócios responderão patrimonialmente nos limites previstos em lei. A medida de exceção, a desconsideração, somente será admissível de aplicação, portanto, diante da presença de situações que autorizem o afastamento da

Page 147

autonomia patrimonial e, consequentemente, da limitação de responsabilidade.

Nesse sentido, os principais motivos autorizadores de aplicação dessa exceção apontados pela doutrina estrangeira integram dois grandes grupos: os casos de (i) desconsideração para fins de responsabilidade e (ii) desconsideração para fins de imputação à sociedade de características dos sócios.

No âmbito da desconsideração para fins de responsabilidade situa-se o caso mais comum no Brasil, pelo qual se busca o afastamento da autonomia patrimonial para fins de responsabilização dos sócios, tornando ineficazes as regras de autonomia patrimonial e limitação de responsabilidade. Dentre as causas motivadoras para tal hipótese de desconsideração, menciona-se no direito comparado a mistura de patrimônios (a denominada confusão patrimonial), os casos de subcapitalização e do abuso da pessoa jurídica.

A confusão patrimonial ou mistura de patrimônios corresponde ao caso em que não se respeita a autonomia patrimonial, de modo que os sócios misturam os patrimônios individuais com o social, não se estabelecendo, na prática, a divisão patrimonial entre sociedade e sócios. Na medida em que a sociedade viabiliza a obtenção do patrimônio autônomo, destinado à atividade da sociedade, é obrigação dos sócios respeitarem a divisão patrimonial, de modo a não comprometer a devida identificação do patrimônio social, dado que este, individualizado na sociedade, representa a garantia dos credores sociais. Aliás, o sócio é o maior interessado no respeito a essa regra de separação patrimonial, para poder usufruir do benefício da autonomia patrimonial e da limitação de responsabilidade, quando previsto. Nesse sentido, inclusive, como observado por Fábio Konder Comparato, ao tratar da separação patrimonial, "se o controlador, que é o maior interessado na manutenção desse princípio, descumpre-o na prática, não se vê bem porque os juízes haveriam de respeitá-lo, transformando-o, destarte, numa

Page 148

regra puramente unilateral"16 - 17. Logo, a inobservância de tal regra, por comprometer o patrimônio exclusivo da sociedade, admite a desconsideração, para não permitir prejuízo de terceiros credores. Destaque-se que tal aspecto é tema de especial preocupação da doutrina e jurisprudência europeia no que se refere às sociedades unipessoais, em que a existência de um único sócio tende a fragilizar as delimitações entre os patrimônios de sócio e sociedade. A confusão patrimonial é hipótese de desconsideração expressamente prevista no ordenamento jurídico brasileiro, como se verá adiante.

Outra hipótese de desconsideração, para fins de responsabilização patrimonial dos sócios, é a figura da subcapitalização. A subcapitalização corresponde ao caso em que se verifica uma desproporção entre o capital atribuído à sociedade e os negócios que ela explora, de forma que o capital se mostra insuficiente, diminuto em relação às reais necessidades sociais, sendo escasso diante dos objetivos sociais.18 - 19

Page 149

Note-se que a subcapitalização, embora tema objeto de omissão pela legislação brasileira, é foco dentre os de maior preocupação no direito estrangeiro. Em Portugal, o tema é colocado como protagonista no contexto da desconsideração por inúmeros auto-res (como se verifica das...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT