A fundamentação das decisões judiciais e a legitimidade da atuação jurisdicional

AutorCilene Ferreira Amaro Santos
Páginas25-34

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Cilene Ferreira Amaro Santos

Desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da Décima Região. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília.

1. Introdução

O art. 93, IX, da Constituição da República estabelece que todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas, sob a cominação de nulidade, o que revela a importância da exposição dos motivos e fundamentos que produziram o resultado. O art. 489 do Código de Processo Civil de 2015 explicitou não apenas os aspectos estruturais das sentenças e acórdãos, mas também o conteúdo mínimo para sua validade.

A autoridade se apresenta como o aspecto formal da decisão judicial enquanto que a legitimidade é o seu aspecto material, de compatibilidade axiológica e de aceitação racional não só pelos seus destinatários, mas pela sociedade.

Por meio das decisões judiciais o Poder Judiciário exterioriza o seu pensamento sobre as leis aplicáveis e soluciona o conflito a ele submetido, logo, a fundamentação das decisões está intimamente ligada à interpretação e aplicação do direito. A exigência de fundamentação não é mera retórica constitucional, mas tem o objetivo de atender o anseio do ser humano de obter uma explicação para o resultado alcançado.

Nosso objetivo, portanto, é refletir de forma breve sobre a fundamentação das decisões judiciais e seus efeitos na legitimação da atuação jurisdicional.

2. Requisitos estruturais e de conteúdo das decisões judiciais

As decisões judiciais são os pronunciamentos de conteúdo decisório emitidos pelos órgãos do Poder Judiciário de qualquer instância, independentemente da nomenclatura utilizada pelo legislador.

Dos conceitos enunciados pelo legislador (arts. 203 e 204 do CPC) verificamos que os atos decisórios por excelência são as sentenças e os acórdãos, contudo, verifica-se a necessi-dade de fundamentar todos os atos de julgamento, o que está inscrito nos arts. 93, IX, da CF e 489 do CPC.

Para Vincenzo Cavallo, sentença “é o ato mediante o qual se individualiza o direito”.1 Eugênio Florian traz à baila o conceito de Plank de que “sentença é a decisão judicial daquilo que constitui o Direito num caso concreto2, revelando que o ato decisório é a produção de uma norma individual que regerá o caso concreto submetido ao Judiciário, tanto assim é que a sentença tem força de lei entre as partes, nos limites da lide e das questões decididas (art. 503 do CPC).

A decisão judicial é todo o pronunciamento decisório do Poder Judiciário, mas neste trabalho dar-se-á maior ênfase à sentença e ao acórdão, não só em face da estrutura legal que lhes foi dada em nosso ordenamento jurídico, mas também pelos seus efeitos processuais.

O nosso ordenamento jurídico exige das sentenças e acórdãos uma estrutura mínima, qual seja, relatório, fundamentação e dispositivo (art. 489 do CPC), ressalvadas as hipóteses do procedimento sumaríssimo (art. 852-I, da CLT), mesmo assim, exige-se o resumo dos fatos relevantes ocorridos em audiência. Os acórdãos também devem possuir ementa que deverá ser publicada no órgão oficial (art. 205, § 3º, do CPC).

A razão de exigência do relatório ou do resumo dos fatos relevantes decorre da necessidade de identificar o objeto de litígio e compreender os exatos limites da demanda, aos quais o julgador está adstrito.

O art. 489 do CPC dispõe que o relatório deve conter o nome das partes (para identificá-las), a identificação do pedido (o que pretende o autor?), a resposta do réu (qual a oposição do réu ao pedido?) e o registro das principais ocorrências (qual a prova pretendida, as provas produzidas e demais

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incidentes relevantes para a solução do processo). Essa é uma importante etapa para compreender o objeto e os limites do caso a ser decidido. Como se vê, o relatório é a preparação do ato de julgar.

Na fundamentação o julgador irá demonstrar o percurso decisório, ou seja, parte dos fatos trazidos por ambas as partes e o enquadramento legal a eles pertinente para construir a norma individual aplicável ao caso concreto. É ato complexo e delicado.

A obrigação de motivação das decisões judiciais como direito da parte surgiu em 1790, com a Revolução Francesa, mas as Ordenações Filipinas (Livro III, Título LXVI, §§ 7º e 8º)3, promulgadas por Felipe II de Espanha e I de Portugal em 1603, e que foram aplicadas no Brasil mesmo após a sua independência,4 previam não só a obrigação de fundamentar as decisões judiciais, como também a aplicação de multa aos julgadores, de qualquer nível, que desrespeitasse a Ordenação.

A exigência de motivar a decisão judicial visava possibilitar que a parte promovesse a impugnação para efeito de reforma, não tendo a motivação a função política que hoje lhe é atribuída. Como dito anteriormente, os destinatários da sentença não são apenas as partes, mas incluem a sociedade e a motivação é requisito essencial para aferir a obediência aos princípios legais instituídos.5

As Ordenações Filipinas, embora revogadas em Portugal, vigoraram no Brasil até 1832, quando foi editado o Código Criminal do Império, o qual continha um título destinado aos procedimentos civis. Seguiu-se o Decreto n. 763, de 19.09.1890 que mandou aplicar o Regulamento n. 737 às causas cíveis, o qual continha regra de fundamentação das decisões no art. 232.6

Com a dualidade de legislação, federal e estadual, contida na Constituição de 1891, surgiram os Códigos de Processo Civil dos Estados do Maranhão (art. 322), Bahia (art. 308), Pernambuco (art. 388), Rio Grande do Sul (art. 499), Minas Gerais (art. 382), São Paulo (art. 333), Distrito Federal (art. 273), Ceará (art. 330) e Paraná (art. 231), os quais mantiveram a exigência de fundamentação.7

Em 1937 foi unificada a competência legislativa da União, advindo em 1939 o Código de Processo Civil Brasileiro, que trouxe em seus artigos 118 e 280 a obrigação de fundamentar as decisões judiciais.8

O Código de Processo Civil de 1973, com algumas modificações, acolheu em seu artigo 131 o princípio da persuasão racional, segundo o qual a apreciação da prova é livre (não mais tarifada), mas a convicção deve se firmar nos fatos e circunstâncias constantes dos autos e não poderá dispensar as regras legais quanto à forma dos atos jurídicos (art. 366 do CPC/73). O art. 371 do CPC de 1973 contém a garantia de que o juiz apreciará a prova (retirou o vocábulo “livremente”) e indicará na decisão as razões de formação do seu convencimento. A utilização dos imperativos “analisará” e “indicará” evidenciam a importância de apresentar, de forma expressa, as razões que levaram o julgador a decidir.

O art. 489 do CPC estabelece a estrutura das sentenças e acórdãos, fixando como parte essencial a fundamentação. A mesma obrigação de fundamentar as decisões é encontrada no Código de Processo Penal (art. 381) desde 1941. A

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Consolidação das Leis do Trabalho também exige a fundamentação das decisões judiciais (art. 832).9

Culminando a tradição legislativa sobre o assunto, o dever de fundamentar as decisões judiciais foi inscrito na Constituição Federal de 1988, quando constou no art. 93, IX, que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”.

Embora nosso País possua leis que exigem a fundamentação das decisões judiciais desde a sua descoberta, o art. 93, IX, da CR constitui novidade política, mas não jurídica. Por esses motivos é que a determinação do art. 489 do CPC de 2015 não deveria causar tanta polêmica, posto que o dever de fundamentar as decisões judiciais sempre existiu. O fato de o legislador ter entendido necessário explicitar alguns aspectos e atualizá-los quanto à aplicação ou não dos precedentes, deve ser encarado como meio de aperfeiçoamento das decisões judiciais e de respeito às decisões das Instâncias Extraordinárias que têm a missão constitucional de uniformizar a aplicação da legislação existente.

Estabelecida a obrigatoriedade da fundamentação, a discussão sobre a convicção interna do julgador ou sobre o processo decisório individual, o certo é que o convencimento deve se exteriorizar por uma decisão fundamentada. Nesse aspecto, Cappelletti afirma que: “em muitas ocasiões a motivação verdadeira, real, efetiva de uma sentença não é completamente revelada na fundamentação da decisão do Juiz, mas sobretudo encontra-se nas ocultas inclinações – mais ou menos ocultas – do ânimo do julgador10, revelando que entre a convicção inter-na do julgador e o texto escrito da decisão existe um itinerário que nem sempre é revelado. Isso ocorre pelo fato de que as decisões devem ser justificadas e não explicadas. A explicação se situa nas causas psicológicas e no contexto social enquanto que a justificação nas razões apresentadas pelo julgador para o resultado produzido.

Para Ernane Fidélis, “a motivação da sentença é a garantia da própria administração da Justiça, para que não só as partes, mas todos os cidadãos possam saber, exatamente, que a sentença não foi pura e simples aplicação do arbítrio11.

Também Barbosa Moreira afirma que deve ser assegurado não apenas o controle endoprocessual, mas deve ser possibilitado “um controle generalizado e difuso sobre o modo como o juiz administra justiça; e isso implica que os destinatários da motivação não sejam somente as partes, seus advogados e o juiz da impugnação, mas também a opinião pública entendida, seja no seu complexo, seja como opinião do quisquis de populo.12

Tendo em mente a afirmação de que a decisão judicial tem como destinatários as partes...

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