Fundamentos alternativos ao risco na legitimação da responsabilidade objetiva

AutorFelipe Teixeira Neto
Páginas53-98
CAPÍTULO 2
FUNDAMENTOS ALTERNATIVOS AO RISCO NA
LEGITIMAÇÃO DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA
Constatada a insuf‌iciência do risco para f‌ins de legitimar a responsabilidade
objetiva como um todo (assim entendida enquanto regime geral), não obstante cons-
titua-se, quiçá, no mais frequente nexo de imputação das várias situações legalmente
estabelecidas, é de se buscar a satisfação de tal intento em fundamento mais alargado.
Isso se justif‌ica porque a histórica fragmentariedade que marcou – e ainda
marca – o seu tratamento legislativo permitiu a predisposição de uma variada gama
de situações postas sob um mesmo regime, de modo que apenas um fundamento
mais alargado poderá fazer as vezes de legitimador de um pretenso regime geral a
ser estruturado a partir da responsabilidade objetiva enquanto categoria jurídica.
Nesta linha é que três princípios podem ser identif‌icados como, em tese, li-
gados de algum modo à imputação de danos e à consecução dos f‌ins esperados da
responsabilidade civil objetiva1. Exatamente por isso é que poderiam ser capazes de
se habilitarem a constituir fundamento do dever de indenizar para além das situações
legitimadas na culpa.
O exame da pertinência ou não de cada uma destas alternativas predispostas pela
jurisprudência e pela doutrina bem permitirá, em uma perspectiva atual e alargada,
para além do estigma inerente a uma vinculação absoluta entre responsabilidade
objetiva e risco, aferir a viabilidade de se encontrar um fundamento uniforme de
legitimidade para a imputação e, a vista disso, poder-se pretender um regime unitário
de estabelecimento do vínculo obrigacional.
1. O PRINCÍPIO DA EQUIDADE
O primeiro dos fundamentos que se apresenta como carecedor de uma análise
mais acurada com vistas a identif‌icar uma possível legitimação uniforme da impu-
tação objetiva de danos é o princípio da equidade.
1. As hipóteses que, na sequência, passam a ser examinadas são atribuídas a SCOGNAMIGLIO, Renato.
Responsabilità civile..., cit., p. 46-48, que fala, respectivamente, nos princípios do risco, da equidade e da
prevenção, sem prejuízo, ainda, do princípio da solidariedade, com igual potencial para o f‌im ora buscado.
Igualmente, com especial alusão aos princípios da solidariedade e da prevenção como princípios gerais
da responsabilidade civil, o que autorizaria a hipotisar qualquer um deles como possível fundamento de
legitimação do surgimento de um dever de indenizar, FARIAS, Cristiano Chaves; NETTO, Felipe Braga;
ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado de Responsabilidade Civil. 2ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 47 e ss.
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RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA FRAGMENTARIEDADE À RECONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA
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E isso exatamente tendo em conta a necessidade de um fundamento que, ao
mesmo tempo, mostre-se mais alargado do que o risco propriamente dito – que se
revelou apenas critério de imputação – e com algum conteúdo teórico já desenvol-
vido, inclusive por diversos ramos das ciências sociais aplicadas, como ocorre com
a equidade.
Examinar o seu conteúdo2, a sua relação com a responsabilidade civil e as suas
possibilidades num espaço de legitimação do dever de indenizar para além da culpa
é, pois, medida que se impõe no caminho investigativo proposto.
1.1 Equidade e responsabilidade civil
Não é recente a associação entre equidade e imputação de danos, podendo-se
antever a sua gênese já no direito romano, antes mesmo do desenvolvimento das
centelhas que redundariam, séculos depois, da estruturação e na consagração ab-
soluta do princípio da culpa. Neste cenário, a equidade veio concebida enquanto
fundamento – mesmo que indireto – da possibilidade de impor a terceiro a obrigação
de assumir os ônus dos prejuízos suportados por outrem3.
Dita realidade tende a se alterar sobremaneira com todos os desenvolvimentos rela-
cionados ao reconhecimento da culpa que, após diversos séculos de elaboração, deságuam
na redação do artigo 1.382 do Código Civil francês e de toda uma geração talhada pela
codif‌icação oitocentista, nas suas três sistemáticas. E a posição por ela assumida enquan-
to autêntico fundamento de legitimidade da imputação tendia, assim, por obscurecer a
importância de qualquer recurso à equidade para este f‌im, salvo em algumas situações
de ajuste da indenização devida, quando já reconhecido o dever de reparar4.
Até mesmo porque os inf‌luxos positivistas incorporados pelo direito civil a partir
deste momento, de modo a antever no Código Civil a sua manifestação exclusiva e
excludente, tenderiam mesmo a incompatibilizar o recurso à equidade – já enquan-
to manifestação da justiça no caso concreto – para f‌ins de justif‌icação do dever de
2. A temática é riquíssima e profunda. Daí que, por certo, qualquer abordagem que possa vir a receber no curso
da presente investigação será, no mínimo, simplista, tendo em vista todos os desenvolvimentos possíveis
(inclusive distintos), a partir das variadas escolas que lhe dispensaram especial atenção. Contudo, o estudo
restaria incompleto e, quiçá, de algum modo descontextualizado se não fossem tecidas algumas conside-
rações acerca da noção de equidade que se pretenda invocar enquanto fundamento da responsabilidade
civil, especialmente na sua feição objetiva. Por isso é que as considerações de cunho geral a serem postas
tenderão a conectarem-se com o que interessa ao exame da imputação de danos. Sem prejuízo, pela síntese
que contém e pela profundidade que desenvolve, f‌ica a referência a estudo que serviu de base a algumas
das considerações que se seguirão; assim, PEREIRA, Alexandre Libório Dias. Da equidade (fragmentos).
Disponível em: . Acesso
em 28 ago. 2016.
3. MARTINS-COSTA, Judith. Os fundamentos..., cit., p. 34.
4. MARTINS-COSTA, Judith. Os fundamentos..., cit., p. 37. A este respeito, destaca a autora a importância do
reconhecimento posterior do princípio neminem laedere que, ao se colocar entre as noções de equilíbrio
e de culpa, irá inf‌luenciar de modo vivo toda a problemática da responsabilidade civil – mas sob o viés da
imputação já como violação de uma norma de conduta (de não fazer mal a ninguém) – e se revelar enquanto
norte da ordem social, de modo a incorporar-se às instâncias metajurídicas.
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CAPÍTULO 2 • FUNDAMENTOS ALTERNATIVOS AO RISCO NA LEGITIMAÇÃO
indenizar que, neste ambiente, decorria da vontade livre do indivíduo juridicizada
pelo preceito legal de regência (no caso, a célebre cláusula geral que, num primeiro
momento, tendeu a replicar-se no direito continental, vendo a sua soberania abalada
pela proposta metodológica consagrada, quase cem anos depois, pelo BGB)5.
Como tudo na ciência jurídica vem marcado por ciclos, as novas necessidades
reveladas pelas profundas mudanças econômicas e sociais verif‌icadas a partir do f‌im
do século XIX reavivaram a retomada da ideia de equidade enquanto fundamento
da responsabilidade civil, especialmente tendo em conta que a reparação passa a ser
uma vez mais reconhecida enquanto uma necessidade inerente aos novos ideários
de justiça então vigentes.
Justamente nesta perspectiva – e tendo em vista que os ideários antes aludi-
dos vêm relacionados a situações de responsabilidade sem culpa – é que se impõe
analisar a viabilidade jurídica da equidade enquanto fundamento uniforme de um
regime geral de imputação objetiva. Antes, porém, oportuno que se demarque o seu
conteúdo, especif‌icamente relacionado à sua interface com a responsabilidade civil,
para que, então, examine-se a forma como possa desenvolver este mister e as suas
suf‌iciência e efetividade.
1.1.1 Por uma noção de equidade
A invocação da equidade perpassa de modo muito marcante a experiência
jurídica como um todo, constatando-se alguma variação no seu conteúdo ao longo
dos tempos6. Presente já no direito romano, veio a se desenvolver a partir da noção
de epicikia recebida da experiência grega e representativa da ideia de equilíbrio e de
harmonia7.
Assim, a partir de uma conotação inicial muito próxima do conceito de justiça,
sendo ambos empregados em sentido praticamente idêntico, verif‌ica-se uma con-
cretização dotada de alguma autonomia8, não obstante inter-relacionada, que vem
5. Acerca da inf‌luência da equidade no direito civil codif‌icado, especialmente no que tange ao que denomina
de gestão do seu “espírito rebelde”, ver PEREIRA, Alexandre Libório Dias. Da equidade..., cit., p. 08.
6. Segundo MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 13ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993,
p. 173, esta oscilação ao longo dos tempos, no sentido de adaptar o seu conteúdo aos ditames de cada
momento histórico, político e f‌ilosóf‌ico, permite destacar que a equidade constitui-se em um conjunto
de princípios intrínsecos, de maneira a representar a substância jurídica da humanidade conforme a sua
natureza e o seu f‌im, sendo imutável na essência, porém adaptável à diversidade dos tempos e dos locais
em que se concretiza. De igual modo, assinalando não apenas a complexidade e a mutação do conteúdo
de equidade, mas a extrema dif‌iculdade de se apontar uma noção unívoca, ver FRADA, Manuel Carneiro
da. A equidade (ou a ‘justiça com o coração’). A propósito da decisão arbitral segundo a equidade. Revista da
Ordem dos Advogados, Lisboa, a. 72, n. 1, (109-145), jan./mar. 2012, p. 111.
7. MARTINS-COSTA, Judith. Os fundamentos..., cit., p. 34, nota 8. Segundo a autora, o termo equidade repre-
senta, na sua gênese, uma ideia de relação harmoniosa entre o todo e as partes, a impor a satisfação de uma
exigência de justiça nas situações em que constatada a sua violação, tal qual sucede nas hipóteses associadas
à responsabilidade civil.
8. Partindo-se de uma visão aristotélica, tem-se que enquanto a justiça é medida genérica e abstrata, pois pre-
cisa, de algum modo, mostrar-se suscetível de aplicação a todas as situações, a equidade “é a justiça no seu
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