Fundamentos jurídicos da proteção dos direitos de crianças e adolescentes

AutorJadir Cirqueira de Souza
Páginas19-153

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1. À guisa de explanação geral

A doutrina jurídica não é a melhor forma de mostrar a necessidade do cumprimento de uma lei. Não somos fanáticos por leis, muito menos positivistas robotizados, pois sabemos como são produzidas. Sabemos, ainda, como o Estado atua na pseudoproteção dos direitos das crianças e adolescentes. A defesa dos fundamentos da nova lei deveria ser feita em propagandas publicitárias, ações governamentais e políticas públicas. A singela defesa que fazemos da Lei n. 13.431/17, que pode ser contestada do ponto de vista científico, busca trazer o mínimo de funcionali-dade em relação aos seus objetivos.

Conhecemos a força do Estado na tentativa de cumprimento das leis. Não partilhamos da ideia de que as leis, sozinhas, por melhores que sejam, mudem a realidade social, pois são os esforços da sociedade que mudam as leis de um país, na feliz expressão de Jean Cruet.1Entretanto, no caso em apreço, a lei em estudo possui condições, se conhecida, discutida e assimilada, de melhorar a qualidade da defesa dos direitos das crianças e adolescentes, vítimas de violência sexual e dos demais ilícitos civis, penais e administrativos.

Antes de mostrar as diversas facetas do depoimento especial de crianças e adolescentes, o presente capítulo tem como um de seus objetivos traçar os aspectos elementares do sistema de proteção infantojuvenil, bem como trazer algumas características da esfera do Direito,

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especialmente no âmbito de produção das provas criminais, com a apresentação dos respectivos fundamentos estatutários e constitucionais, uma vez que o depoimento especial e a escuta especializada constituem apenas algumas das formas de proteção dos direitos de crianças e adolescentes, vítimas da família, da sociedade e do Estado.

Dentro desse prisma, a ideia central do trabalho concentra-se em apresentar a visão estrutural do sistema de proteção dos direitos das crianças e adolescentes, vítimas da violência primária e secundária, dentro do sistema criminal reforçando-se a necessidade da integração harmoniosa, especialmente na busca da diminuição dos efeitos das diversas formas de violências contra crianças e adolescentes.2Diversamente da doutrina e da própria legislação em vigor que, normalmente separa os campos do Direito Penal, Civil, Processo Penal, Processo Civil, Administrativo e Processo Administrativo, no presente trabalho serão utilizados os principais fundamentos voltados para a defesa dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, especialmente para demonstrar a importância da atuação orquestrada da família, sociedade e Estado, na perspectiva dos direitos criminais, civis e administrativos protetivos dos direitos fundamentais da infância e da adolescência, a partir das características dos diferentes espaços legislativos.

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Evidentemente que pelo recorte doutrinário adotado no enfrentamento das questões, algumas bastante complexas e controvertidas, tendo em vista seus objetivos mais abrangentes, perde-se na profundidade e especificidade de cada um dos ramos do Direito e demais áreas do conhecimento científico, que interagem na esfera infantojuvenil.

No entanto, ganha-se na busca de colocar os novos direitos fundamentais de crianças e adolescentes como um dos centros referenciais das atenções do sistema de justiça criminal, uma vez que, sabidamente e como será demonstrado, os principais obstáculos que provocam a revitimização ou a violência secundária, ainda concentram-se na esfera da proteção criminal, desde os primeiros passos até as ações executivas finais, posto que ainda desconsidera os direitos das vítimas, apesar dos consideráveis avanços.

De início, relembre-se que os conceitos de infância, juventude e menoridade transcendem à análise que será desenvolvida. São efetivamente mais abrangentes na Filosofia, na Sociologia e nas demais áreas do conhecimento científico, sobretudo no tocante à História mundial. Muitos profissionais que se dedicam à prática do Direito, em sua visão empírica, satisfazem-se apenas com o olhar estreito das regras jurídicas postas pelo legislador, embora os estudos sejam muito mais abrangentes, conforme as lições de Philippe Ariés que mostra a interessante evolução da infância mundial.3

Outros clássicos esmeram-se em compreender as bases do Direito, dentro do círculo forense, agregando-se a Filosofia e a Constituição Federal, sobretudo nas relações com as demais áreas do conhecimento científico. Na verdade, Lenio Streck ficaria surpreso se examinasse como o soliptismo e as decisões calcadas na mera vontade subjetiva, que é bastante criticado nas demais áreas do Direito, possui forte conotação moral e religiosa, inclusive ampla aceitação na justiça da infância e da juventude, uma vez que o princípio dos superiores interesses das crian-

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ças vem sendo utilizado equivocadamente para qualquer demanda, e, às vezes, com efeitos contrários à doutrina da proteção integral, exatamente como ocorre com o princípio da dignidade da pessoa humana.4E, por último, a partir das normas internacionais, constitucionais e estatutárias, alguns se dedicam a tracejar sobre os conhecimentos jurídicos para garantir melhor qualidade de vida em sociedade, especialmente para as vítimas de crimes, a partir da visão da prática e da teoria jurídica, cumulativamente, dentro da singela visão do autor do presente trabalho, que, evidentemente não alcança a profundidade e competência dos autores indicados acima, estudos decisivos para a compreensão do sistema de justiça infantojuvenil no país.5Assim, as visões que serão tratadas em relação a cada tema serão desenvolvidas pela análise prática e teórica do autor que, além de estudar, também atua nas atividades profissionais e acadêmicas de defesa dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes. O porto seguro da análise procurará manter, como fio condutor e desenvolvimentista da obra, a legislação infraconstitucional e constitucional que regulamenta os direitos da infância e juventude brasileira, na perspectiva de que o Estado seja o fiador e ao mesmo tempo executor principal das políticas de proteção integral.

É lógico que as modernas bases constitucionais e estatutárias em vigor no Brasil defendem que a atuação do Estado, sempre que possível deverá ser subsidiária, limitada e excepcional, pois cabe às famílias e às demais instituições sociais, primordialmente, o dever de promover de forma mais abrangente possível, as mudanças necessárias para a busca

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da qualidade de vida em sociedade, ou seja, a intervenção do Estado na proteção secundária deve ser pontual, cirúrgica e objetiva, toda voltada para a proteção integral, prioritária e preventiva.6

Entretanto, quando chamado a intervir para evitar a prática de crimes e demais violações de direitos infantojuvenis, e/ou quanto a fixada a regra de que deve agir após os ilícitos recorrentes, realmente constitui um dos deveres do Estado agir nos estritos limites definidos pela legislação em vigor, sob pena de completa subversão sistêmica e retorno inexorável ao passado. O Estado, assim, deve agir, sempre, nos limites das leis e do próprio Direito, sob pena de subversão do princípio da proteção integral, prioritária e preventiva dos direitos infantojuvenis.

Se as intervenções do Estado devem ser cirúrgicas, eficientes e pontuais, outra advertência preliminar se faz necessária. As novidades pertinentes ao depoimento especial não objetivam resolver os principais problemas da infância brasileira, uma vez que são institutos jurídicos que devem ser utilizados, sempre, a partir da consumação dos ilícitos civis, penais e administrativos praticados contra crianças e adolescentes.

Ou seja, os temas trazidos pela nova Lei n. 13.431/17, especial-mente o depoimento especial, foram catalogados para exigirem ações adequadas dos integrantes do Estado, se ultrapassada a necessária prevenção, ou seja, para agir depois dos fatos ilícitos contra crianças e adolescentes, partindo-se da perspectiva de que os crimes ocorreram e é necessária a atuação para a competente redução dos danos psicológicos causados às vítimas.

Na verdade, como será demonstrado no curso do livro, pelas razões destacadas na legislação nacional e internacional, objetiva-se reduzir funcionalmente e/ou pelo menos, tentar impedir o fenômeno da revitimização, violência institucional ou a vítimização secundária por parte dos agentes do Estado, depois da ocorrência dos ilícitos civis, penais e administrativos contra crianças e adolescentes.

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O reforço de convencimento em relação à divisão temática é necessário e muito importante de ser examinado, pois a nova lei não trata da vitimização primária, já examinada na CF, no ECA e nas Leis
n. 12.010/09 (ADOÇÃO) e 12.594/12 (SINASE), muito embora, algumas vezes, a sistematização legislativa seja deficitária.7Veja-se o paradoxo e inexorável, porém real e objetivo. Mais uma vez, normas legais fixadas pelo legislador federal voltam-se para organizar, estruturar e pautar os trabalhos dos integrantes das redes de proteção e/ou de justiça, no sentido de que nas hipóteses em que crianças e adolescentes sejam vítimas da família, da sociedade e do Estado, o próprio Estado não deve cometer as mesmas ilicitudes ou com efeitos similares daqueles que causaram as lesões...

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