Fundamentos da tutela possessória dos particulares ocupantes de bens públicos no ordenamento jurídico brasileiro

AutorCarla Ribeiro Tulli
Páginas83-150
INTRODUÇÃO
A abordagem principal deste Trabalho de Conclusão de Curso pautou-se
na análise se, no ordenamento jurídico brasileiro, a posse é o instituto aplicável
na hipótese de ocupação, por particulares, dos bens públicos de qualquer natu-
reza. Dessa forma, este estudo adotou uma linha de pesquisa pragmática, com
especial enfoque nos fundamentos que permitem a extensão da tutela possessó-
ria aos ocupantes de bens públicos, caracterizados como detentores pela maioria
da doutrina e jurisprudência pátrias.
Destarte, não constituíram objeto de análise mais profunda as diversas
teorias clássicas que discutem a natureza jurídica da posse, nem tampouco o
direito de propriedade propriamente dito. Igualmente, este estudo fundou-se
eminentemente na perspectiva civilista, de modo que a abordagem do Direito
Administrativo sobre o tema não foi estudada de forma mais aprofundada.
A escolha do tema deste estudo foi motivada, inicialmente, por um des-
conforto pessoal com relação à tese fazendária que sustenta que os particulares,
ocupantes de bens públicos sem qualquer título que legitime juridicamente a
ocupação, não fazem jus a qualquer tipo de proteção possessória.
A referida tese encontra amparo na jurisprudência e em grande parte da
doutrina, como será demonstrado ao longo dos Capítulos II e III, reconhe-
cendo-se ao particular a situação de mero detentor da coisa pública. Nessas
circunstâncias, por exemplo, não é reconhecido o direito do particular de obter
indenização pelas benfeitorias realizadas no bem nem de percepção dos seus
frutos, o que, em certas situações, pode con gurar enriquecimento sem causa
por parte da Administração Pública.
Nesse sentido, foram o estudo da função social da posse e o entendimento
do referido instituto como autônomo à propriedade sob a perspectiva civil cons-
titucional que possibilitaram, em um primeiro momento, vislumbrar a situação
desses particulares de outra forma, de modo a proporcionar-lhes, na linha dos
fundamentos estudados ao longo do Capítulo IV, a extensão da tutela possessória.
II. Fundamentos da tutela possessória dos particulares ocupantes de
bens públicos no ordenamento jurídico brasileiro
CARLA RIBEIRO TULLI
84 COLEÇÃO JOVEM JURISTA
Assim, o objetivo maior deste Trabalho foi, sem dúvida, examinar os fun-
damentos que possibilitam a con guração da posse na hipótese de ocupação,
por particulares, de bens públicos no Brasil, de modo a criar uma linha argu-
mentativa alternativa para a sua defesa, quer em âmbito judicial, quer em âm-
bito administrativo. Desta forma, o desenvolvimento dos fundamentos capazes
de sustentar a proteção possessória – e, por conseguinte, de afastar a detenção –,
dá azo à revisão da orientação dos Tribunais, ainda tão apegada à idéia de posse
como mera visibilidade do domínio.
Para atingir o objetivo acima descrito percorrer-se-á um longo caminho.
Iniciaremos o estudo traçando o per l histórico da ocupação dos bens públicos
no Brasil desde as Sesmarias, com a  nalidade de demonstrar que a propriedade
pública, na sua origem, nunca foi objeto intocável e impassível de apropriação
por particulares. Em última análise, buscar-se-á desmisti car a visão de pro-
priedade como direito absoluto. Percorreremos também o conceito de domínio
público, salientando a classi cação dos tipos de bens públicos.
Posteriormente, discutiremos o estágio do pensamento juscivilista acer-
ca da função social da posse e da propriedade, no escopo de compreender a
doutrina que caracteriza a situação dos particulares ocupantes de bens públi-
cos como detenção, bem como a jurisprudência dominante que se posiciona
no mesmo sentido. Nesse contexto, será fundamental avaliar a mudança de
perspectiva inaugurada com a Constituição de 1988 no que tange ao aspecto
funcional do domínio, por entender-se que somente esta análise torna possí-
vel a compreensão da função social como elemento integrante e limitador do
direito de propriedade.
Ainda neste ponto do estudo, percorreremos as duas teorias clássicas acerca
da posse: a teoria subjetiva de Savigny e a teoria objetiva de Ihering. Mais uma
vez, utilizar-se-á do recurso da análise histórica para a compreensão de uma
nova perspectiva. Nesse caso, as teorias serão abordadas para que se perceba
como a chamada “teoria sociológica da posse” vem sendo desenvolvida e de
que modo ganha destaque independentemente do instituto da propriedade,
passando a posse a ser compreendida como situação jurídica autônoma. Além
disso, essas teorias são de grande relevância, dado que serviram como ponto
de partida para a formulação do conceito de posse por diversos doutrinadores,
sendo, inclusive, uma delas incorporada ao ordenamento jurídico pátrio no
Código Civil de 2002.
No Capítulo III, por sua vez, avaliaremos em que medida a compreensão
da noção de posse como mera visibilidade do domínio dá ensejo a que a Ad-
ministração classi que como detenção a situação dos particulares que ocupam
FUND. DA TUTELA POSSESSÓRIA DOS PARTIC. OCUP. DE BENS PÚBLICOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRAS. 85
bens públicos independentemente de título jurídico, isto é, sem qualquer auto-
rização, permissão ou concessão do Poder Público. Aqui será possível veri car
que, imbuída dos dogmas da supremacia do interesse público e do princípio
da legalidade estrita, a Administração nega a proteção possessória pelo simples
fato dos bens públicos não serem passíveis de usucapião, confundindo, portan-
to, os conceitos de posse ad interdicta e posse ad usucapionem. Nesse sentido,
caracterizada a conduta do particular como mera detenção, são a ele negados
todos os meios de proteção da situação instaurada no imóvel, ainda que a Ad-
ministração tenha permanecido inerte ao longo de anos sem dar função social a
sua propriedade e que tal conduta venha a ser classi cada como uma espécie de
comportamento contraditório.
A situação não é diferente no âmbito da jurisprudência do Superior Tri-
bunal de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais do país. Após a análise das
decisões, será possível constatar que o exame feito pelos intérpretes é de todo
super cial. Isto porque sob o argumento de que não há posse sobre bens públi-
cos e sim mera detenção, os julgadores deixam de veri car o mais importante:
se o Poder Público titular confere função social a propriedade e se, de outro
lado, o particular promove o aspecto funcional de sua posse de modo a satisfa-
zer direitos fundamentais. Por tudo isso, o objeto deste estudo ganha relevância,
atentando-se para a necessidade de construção de fundamentos capazes de sus-
tentar a con guração da posse do ocupante e sua respectiva tutela jurisdicional.
Tais fundamentos serão abordados no Capítulo IV, ressaltando-se, desde o
início, que os mesmos só poderiam ser plenamente compreendidos se concebi-
dos no contexto da releitura do Direito Civil à luz da Constituição. Posto isso,
a interpretação dada aos institutos jurídicos deve ser aquela que melhor satisfaça
as escolhas constitucionais, não sendo mais possível conceber uma interpreta-
ção de cunho eminentemente individualista e patrimonialista, tal como a que
predominou durante a vigência do Código Civil de 1916.
O primeiro fundamento a ser abordado para garantir a tutela da posse com
função social em detrimento da propriedade sem função social será, justamen-
te, a autonomia entre os institutos da posse e da propriedade. Identi caremos
que a posse não se subordina à possibilidade de con guração da propriedade,
devendo ser protegida conquanto seja utilizada como meio de satisfação de
legítimos valores constitucionais. Paralelamente, destacaremos a noção de que
a propriedade deve ser concebida como relação jurídica complexa, sendo, por-
tanto, o seu conteúdo determinado a partir de ônus, deveres e sujeições, depen-
dendo, igualmente, dos interesses não proprietários que estejam envolvidos no
âmbito de cada estatuto proprietário de nido pela Constituição.

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