Furto

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas469-520

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13.1. Conceito, ação típica e meios de execução

"A história do Direito Penal é a história da própria humanidade. Ele surge com o homem e o acompanha através dos tempos, isso porque o crime, qual sombra sinistra, nunca dele se afastou"1448. Assim como boa parte dos delitos que hodiernamente são previstos na legislação penal, também o furto ocorre desde os tempos mais antigos, pois constitui conduta frequente no convívio humano a partir da mais remota Antiguidade. Basta imaginar, para ilustrar, que, já em priscas eras, no tempo das cavernas, colimando forrar-se ao esforço de granjear bens de difícil obtenção, havia quem preferisse subtrair de seus pares tais pertences, assenhoreando-se, verbi gratia, de peles de animais ferozes para abrigar-se do frio e poupar-se, assim, do trabalho de caçar esses animais.

Previsto no art. 155 do CP com suas nuanças, o furto retrata, ab initio, o apossamento de bens ou valores pertencentes a outrem. A nota característica que distingue o furto de outros delitos de natureza patrimonial reside no fato de o ilícito assenhoreamento coincidir com o momento da própria conduta e, sobretudo, ser realizado sem violência ou grave ameaça à pessoa.

O furto consiste na retirada clam et occulte do bem da esfera de disponibilidade do dono ou detentor, vale dizer, no apossamento sub-reptício, melífluo, clandestino ou ardiloso operado com o dissenso do titular do direito, violando o seu direito de propriedade ou, desde que lícito (v. n. 1.9), de posse ou detenção sobre o bem subtraído.

O elemento nuclear típico vem explicitado pela conduta subtrair. Significa tomar e apoderar-se do bem alheio invito domine (com a discordância de quem de direito), mas de forma dissimulada, escondida, disfarçada ou mesmo ousada (ut infra).

A conduta de subtrair apresenta forma livre e tem natureza comissiva. A ação punível não pode ser dissociada duma atuação positiva e dinâmica do sujeito ativo no

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plano físico. O assenhoreamento ilícito pretendido pelo agente só será logrado, sendo válidos quaisquer meios, quando ele mover-se e ativar-se no terreno fático. Ao ladrão será preciso introduzir uma das mãos - mediante destreza - no bolso da calça da vítima para bater-lhe a carteira de dinheiro (punga) ou, para o furto residencial, escalar muro e telhado, arrombar portas e gavetas, apanhar objetos e valores encontrados, transportá-los para local seguro etc. A clandestinidade, porém, embora muitas vezes presente na consecução do furto, não é sua tônica. De tal arte, o crime pode ser praticado tanto na ausência da vítima como, de forma manifesta, até na sua presença, como ocorre, para exemplificar, na punga ou no arrebatamento de inopino. Na subtração por arrebatamento, id est, mediante aplicação de energia física muscular para o apossamento ilícito do pertence alheio, insta verificar, entretanto, se a violência foi praticada contra a própria coisa ou contra a pessoa que a trazia consigo. No primeiro caso, configura-se o furto e, no último, o roubo mediante trombada (v. n. 14.1). Pode ainda o furto, registra Luiz Regis Prado, ser executado por meio da apreensão direta da coisa, com o emprego de instrumentos ou aparelhos (até mesmo um animal adestrado), ou por interposta pessoa que atue sem culpabilidade (autoria mediata)1449, valendo-se o agente, para ilustrar, de uma criança para retirar mercadorias de uma loja1450.

Excepcionalmente o furto pode ocorrer na forma comissiva por omissão. Ilustra Zaffaroni: perpetra o crime por omissão imprópria, pelo descumprimento de dever jurídico decorrente de sua precedente aceitação (v. n. 2.2), o encarregado de vigiar a esteira transportadora de joias em uma fábrica e que, ao perceber uma delas cair e ficar acidentalmente presa em sua calça, ali a deixa com o intuito de apoderar-se do bem, saindo normalmente de seu trabalho como se nada houvesse acontecido1451.

13.2. Sujeitos do delito

O furto pertence à estirpe dos crimes comuns. Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do delito, exceto o proprietário ou o possuidor do bem. O proprietário não pode figurar como agente porque a coisa não é alheia em relação a ele, condição indeclinável para o aperfeiçoamento jurídico do furto (v. n. 13.3). O possuidor não apresenta capacidade delitiva para o furto em razão de já ter legitimamente consigo a posse ou a detenção da res, de sorte que a coisa não é subtraída da esfera de disponibilidade física do dominus, pois já se encontrava sob o legítimo e desvigiado poder do possuidor, de modo que o assenhoreamento que este perpetrar em detrimento do proprietário, quando se recusa a devolver-lhe o bem, perfará o delito de apropriação indébita (v. n. 18.1).

O crime é monossubjetivo, uma vez que basta para sua configuração típica um só autor. Se houver concurso eventual de pessoas (coautoria ou participação) o delito torna-se qualificado (v. n. 13.17).

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Dá-se o nome de famulato ao furto cometido pelo empregado em detrimento do patrão, circunstância insuficiente, entretanto, per se stante, para qualificar o delito pelo abuso de confiança (v. n. 13.12).

No que tange às pessoas jurídicas, estas carecem, pela sua própria estrutura ontológica, de capacidade delitiva. Jamais podem cometer crimes, eis que não agem por si mesmas e, pela ausência de inteligência e raciocínio, não contêm um mínimo de vontade própria para o cometimento de ações criminosas (societas delinquere non potest). Seus membros ou sócios podem, contudo, como pessoas físicas, perpetrar a conduta punível, conforme o caso com subsunção no art. 156 do CP (v. n. 13.3 e 13.20).

Sujeito passivo é o titular do bem jurídico penalmente tutelado. Nesse aspecto, tanto a pessoa natural como a pessoa jurídica, esta também detentora de direitos, podem figurar na posição de vítimas (v. n. 1.9). É irrelevante, no entanto, para o aperfeiçoamento jurídico do furto, a identificação da vítima. Basta a comprovação de serem alheias em relação ao agente as coisas de que ele se apoderou. Isso porque o legislador protege o patrimônio das pessoas, em geral, não o de alguém, em particular. Portanto, a questão de saber quem é o proprietário não é fundamental1452.

13.3. Objeto material

Objeto material representa o ponto de incidência da ação típica. No caso do figurino típico em comento (art. 155, CP) é a coisa alheia móvel.

Recebe a designação jurídica de coisa o bem corpóreo, ou seja, aquele que pode ser tocado (quae tangi possunt).

A coisa é alheia quando se encontra na esfera jurídica de interesses de outra pessoa.

E o bem é móvel quando admite remoção e transporte, por movimento próprio (semovente) ou força alheia.

Em contraposição aos bens móveis, há a classe dos imóveis, que adquirem esta qualidade por natureza (CC., art. 79), acessão física (CC., art. 79) ou intelectual (CC., art. 79) e por expressa disposição de lei (CC., art. 80, caput). Dos bens imóveis não se ocupa o art. 155 na incriminação do furto. Por força de lei, o avião é bem imóvel, uma vez que sobre as aeronaves recai a hipoteca como direito real de garantia (CC., art. 1.473, n. VII), somente incidente sobre imóveis. Nessa conjuntura, quid juris se alguém, que sabe pilotar, comete o assenhoreamento de um avião ao subtraí-lo da esfera alheia de propriedade? Haveria tipicamente o delito de furto? É indagação para a qual insta conflua uma resposta. Urge, pois, seja fixado o conceito de coisa alheia móvel a que se refere o art. 155 do CP. Nesse passo, o Direito Penal discrepa do Direito Civil na consideração do bem móvel. Para o primeiro, é bem móvel qualquer coisa suscetível de remoção física. Assim, pontifica Nélson Hungria, o Direito Penal não se concilia com

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as fictiones ou presumptiones juris et de jure do Direito Civil, pois é incondicionalmente realístico1453. Somente os imóveis por natureza estão excluídos do preceito típico que emana do art. 155. Desse modo, os imóveis por acessão, uma vez mobilizados, podem constituir objeto material de furto. As árvores, os frutos, os acessórios do imóvel, exemplifica Magalhães Noronha, sujeitam-se à subtração, desde que desplantadas, colhidos, tirados ou arrancados de seu ponto de fixação, o que permitirá a remoção1454.

Para efeitos penais, portanto, o caráter de mobilidade da coisa é essencial ao furto, ainda que esse não seja o seu estado no momento da subtração. Mobilizada a coisa, ela adquire o caráter de bem móvel. Quem quer que subtraia de terreno alheio um pouco de terra, pratica o crime de furto. No entanto, essa terra era coisa imóvel, pois nada é mais imóvel do que a própria terra1455. O mesmo acontece na hipótese de subtração de uma estátua, de portas ou janelas arrancadas das molduras da casa, do mineral extraído de uma mina etc. Por conseguinte, quem subtrai avião comete furto.

Além de móvel, a coisa deve ser alheia (art. 155, CP). Nesse rumo, não há furto no assenhoreamento da res nullius e da res derelicta, eis que a primeira não tem dono e a segunda foi voluntariamente abandonada, de modo a não poderem ser consideradas...

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