O futuro dos métodos alternativos de solução de conflitos no Brasil

AutorValéria Ferioli Lagrasta Luchiari
Ocupação do AutorJuíza de Direito da 2ª Vara da Família e das Sucessões da Comarca de Jundiaí
Páginas313-320

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A atividade legislativa no Brasil teve início em 7 de setembro de 1822, com a independência, sendo promulgada, em 1824, a primeira Constituição do Império.

Tal Constituição incentivava expressamente a solução de litígios por outros meios, que não a decisão judicial, emanada do Estado-juiz. O art. 160, por exemplo, autorizava a nomeação de árbitros pelas partes, permitindo a execução de suas sentenças sem recurso, se assim fosse convencionado. Também no seu art. 161 estimulava abertamente a conciliação1, condicionando o recurso à via judicial à tentativa prévia de composição do litígio. A tentativa prévia de conciliação, portanto, era entendida como condição de procedibilidade, sendo sua ausência fator inviabilizador do desenvolvimento do processo, ou seja, ter-se-ia verdadeira falta de interesse de agir a obstaculizar o prosseguimento do processo.

Ainda, o art. 162 dessa mesma Constituição instituiu a figura do juiz de paz, que, entre outras funções, tinha a finalidade precípua de promover atividade conciliatória prévia.

Segundo os historiadores, o estímulo à conciliação e a criação da figura do juiz de paz representaram uma reação dos liberais contra os conservadores, pois com esses institutos procuravam fazer frente ao excessivo autoritarismo do Estado. O raciocínio era de que, como todos os conflitos eram solucionados pelos funcionários do Judiciário, o juiz de paz, pessoa eleita pelo povo, portanto, teoricamente, de sua confiança, ao atuar, quebraria um pouco do autoritarismo estatal.2

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Em 15 de outubro de 1827, com o propósito de regular a figura do juiz de paz, foi promulgada a Lei Orgânica das Justiças de Paz, que estabeleceu no § 1º, do seu art. 5º ser atribuição do juiz de paz conciliar as partes, que pretendem demandar, por todos os meios pacíficos que estiverem ao seu alcance.

No que diz respeito à eleição, a mesma Lei estabelecia que os juízes de paz eram eleitos segundo as mesmas regras vigentes para a eleição dos vereadores e, em seu art. 3º, previa que podia se candidatar a juiz de paz aquele que fosse eleitor. Portanto, não se exigia do juiz de paz formação jurídica; era um juiz leigo, eleito por seus pares, com função eminentemente conciliatória e voltada à pacificação social.

Mas, apesar da Constituição do Império ter estabelecido ao juiz de paz, como função precípua, a conciliatória, como o seu art. 162, deixou a cargo da Lei a regulação de suas atribuições e distritos, a Lei Orgânica das Justiças de Paz ampliou bastante as funções do juiz de paz, conferindo ao mesmo atribuições judiciárias e policiais, e até autoridade pública em seu distrito, sendo, muitas vezes, o único elo existente entre o distrito e os demais órgãos estatais.

Ainda no período imperial, o Código Comercial de 1850, que disciplinava as relações comerciais, estabeleceu normas referentes à conciliação e à arbitragem, mantendo a obrigatoriedade da conciliação prévia. E o Regulamento n. 737, de 25 de novembro de 1850, que se destinava a regular o processo nas causas comerciais, previa expressamente, no seu art. 23, a conciliação previa obrigatória, sendo que a tentativa de composição podia ser realizada por convocação do juiz ou comparecimento espontâneo das partes.

A Lei n. 2.033, de 1871, através da qual Antonio Joaquim Ribas consolidou as normas processuais até então existentes e que, por isso, ficou conhecida como Consolidação das Leis de Processo Civil do Conselheiro Ribas, repetiu as disposições anteriores e, em seus arts. 185 a 200, tratou da conciliação, mantendo a tentativa prévia perante o juiz de paz como condição para o ajuizamento da ação.

Com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, o primeiro ato legislativo referente à conciliação foi o Decreto n. 359, de 26 de abril de 1890, que afastou a obrigatoriedade da tentativa de conciliação prévia para o ajuizamento da ação, justificando tal conduta na "onerosidade do instituto nas demandas e inutilidade como elemento de composição dos litígios".3

Desta forma, aboliu-se a tentativa obrigatória de conciliação previamente ao processo judicial, porém, foi mantido o reconhecimento de efeito aos acordos celebrados pelas partes que estivessem na livre administração de seus bens, sob a forma de escritura pública ou termo nos autos, e às decisões proferidas em sede de juízo arbitral. Ou seja, a conciliação continuava tendo seu valor, mas o Estado não mais disponibilizava estrutura própria para sua promoção. Assim, seguindo as ideologias vigentes no final do Século XIX e início do Século XX, período marcado pelo Estado Liberal, a Constituição Federal de 1891 não tratou, em nenhum momento, da conciliação ou da Justiça de Paz.

Daí para frente, todas as Constituições e também a legislação infraconstitucional, apesar de manterem a figura do juiz de paz, deixaram de mencionar sua função conciliatória, permanecendo ela, portanto, desprestigiada durante todo o período republicano. A Justiça de Paz passou a ser órgão de criação facultativa da organização judiciária estadual, deixando de ser a tentativa prévia de conciliação requisito para o ingresso em juízo. E então, as atribuições do juiz de paz no Século XX limitaram-se à habilitação e celebração de casamentos, passando ele a ser comumente denominado de "juiz de casamento".4

Apenas com a edição do Código de Processo Civil de 1973, que manteve o princípio do impulso oficial e atenuou sobremaneira a oralidade no processo civil, a conciliação voltou a ser disciplinada, mas ainda assim, como forma de se encerrar o processo, não lhe atribuindo a Lei caráter preliminar ou obrigatório. E, no contexto do Código de 1973, assumiu relevo a Lei do Divórcio5, que determinou ao juiz o estímulo à composição das partes, promovendo sua reconciliação ou a transação, com a designação de audiência específica para esse fim.

Mas foi na década de 80 que se iniciou o movimento das reformas processuais, com significativos avanços nessa área, entre eles a promulgação da Lei de Pequenas Causas (Lei n. 7.244/1984), que importou em verdadeira revolução no direito processual, ampliando o acesso ao Poder Judiciário e valorizando a conciliação como forma de solução de conflitos. Até que, em 5 de outubro de 1988, foi promulgada

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a Constituição da República Federativa do Brasil, conhecida como "Constituição Cidadã"6, que atualmente disciplina o Estado brasileiro e é marcada pela consolidação do regime democrático no país e pelo amplo reconhecimento dos direitos fundamentais.

Importante deixar consignado, que o preâmbulo constitucional afirma expressamente o compromisso do Estado Brasileiro com a solução pacífica das controvérsias na ordem interna e internacional e, embora não integre o texto constitucional, representa verdadeira carta de intenções, que demonstra a ruptura constitucional e apresenta a nova ordem, explicitando os fundamentos políticos, ideológicos e filosóficos que lhe deram origem, e orientando sua interpretação.

E o art. 5º da Constituição traz os direitos e garantias fundamentais, individuais e coletivos, apresentando amplo rol de dispositivos relacionados à tutela constitucional do devido processo legal; enquanto o art. 98 trata expressamente da criação, pelos Estados e pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, dos Juizados Especiais e da Justiça de Paz, resgatando esta última e voltando a atribuir ao juiz de paz função conciliatória.

Quanto à Justiça de Paz, apesar da Constituição prever que seja remunerada, composta de cidadão eleitos pelo voto direto, universal e secreto, com mandato de quatro anos e competência para, na forma da lei, celebrar casamentos, verificar o processo de habilitação e exercer atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional, remetendo à Lei para a disciplina dessas atribuições; não existe ainda, entre nós, referida lei, que seria federal.

Por outro lado, diante da experiência bem sucedida dos chamados Juizados de Pequenas Causas, regulamentados pela Lei n. 7.244/1984, que ampliaram o acesso à justiça, respondendo ao que Kazuo Watanabe denominou de "litigiosidade contida"7, é que passaram a ser previstos em nível constitucional os Juizados Especiais que, alguns anos depois, foram disciplinados pela Lei n. 9.099/1995, que retirou a expressão pequenas causas e ampliou a sua competência para a área criminal, estendendo, na área cível, a competência para as causas de valor até 40 salários mínimos.

A sistemática dos Juizados Especiais é orientada pelos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, bem como pela busca incessante da conciliação ou transação (art. 2º, da Lei n. 9.099/1995). Tendo em vista esta última, o procedimento prevê uma sessão de conciliação logo no seu início, conduzida por juízes togados ou leigos ou por conciliadores (art. 22); e apenas permite que se passe à instrução da causa se a conciliação não produzir efeitos e as partes não aceitarem a sugestão de instituir o juízo arbitral (art. 24).

O procedimento é superlativamente oral, desde a propositura da ação, até a apresentação da contestação em audiência e a prolação imediata da sen- tença pelo juiz. Assim, cabe aos juízes togados, aos juízes leigos e aos conciliadores estabelecer um intenso diálogo com as partes, permitindo que falem, ouvindo-as atentamente para entender melhor suas pretensões e...

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