O futuro do direito comercial no Brasil

AutorHaroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Páginas16-23

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No livro do Êxodo é narrado o episódio da transformação do cajado de Moisés em uma serpente, diante do faraó. O milagre foi copiado logo em seguida pelos magos do governante egípcio, que produziram duas outras cobras, mas a serpente do líder hebreu as devorou logo em seguida. Isto vem a propósito quanto ao entendimento de desavisados juristas no sentido de que, com a promulgação do Código Civil de 2002 e mediante a unificação do Direito das Obrigações, o Direito Comercial teria sido incorporado pelo primeiro se não em seu todo, ao menos de uma forma bastante significativa.

Ledo engano, como já procuramos demonstrar nos textos que temos publicado (especialmente nos volumes do nosso Curso de Direito Comercial1 e em outros trabalhos nesta Revista), na mesma linha de diversos outros comercialistas. Pelo contrário, é o Direito Comercial que, como a serpente de Moisés, em um processo lento, mas contínuo, já notado no passado e denominado de comercialização do Direito Civil, vem progressivamente aumentando o campo de sua atuação, o que resulta em haver o primeiro devorado um grande naco do Direito Civil.

Conforme se sabe, ao haver regulado expressamente a partir do art. 966 do Código Civil de 2002 o chamado Direito de Em-presa, sem dúvida alguma o legislador brasileiro passou a reger o Direito Comercial sob um novo parâmetro, de maneira muito criticada por boa parte da doutrina especializada. Isto significa dizer que aquele ramo do direito atuou, na vigência do Código Comercial de 1850 e do Código Civil de 1916 sobre certo espectro da atividade mercantil, transformada recentemente em certos limites pelo Código Civil de 2002 e que, certamente, merecerá um novo equa-cionamento no futuro, seja pela evolução própria que tem sido uma das características essenciais do Direito Comercial, seja outra vez pela atuação direta do legislador, o qual será obrigado a reconhecer certas realidades que já se mostram presentes e que se encontram em processo de desenvolvimento mais profundo. É em relação a este futuro que pretendemos fazer algumas considerações, a partir da verificação de fatores que já se encontram presentes, identificando-se existir em gestação um novo embrião jurídico, que se revelará o futuro Direito Comercial. A análise prende-se ao direito brasileiro, entendido que ele se integra substancialmente no direito continental europeu, ou romano-germâni-co, diferente de sua configuração e evolução nos países da common law.

O fenômeno diz respeito fundamentalmente à adoção da empresa como instrumento do exercício da atividade econômica, o que se dá não somente no campo do direito privado estrito senso, mas também no das sociedades de economia mista

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e nas empresas públicas,2 unindo-se em certa medida esses dois ramos do direito sob tal prisma. Está aí para demonstrar a tese das parcerias público-privadas. Observe-se, a propósito que, mesmo deixando o Estado moderno cada vez mais de exercer a atividade econômica diretamente (o Estado Empresário), a sua presença como regulador dessa mesma atividade é cada vez mais intensa. O efeito no plano jurídico é o enorme crescimento de um ramo do direito que poderia ser chamado de direito comercial público-privado, com uma nuance bastante diversa das características que informam o Direito Econômico. Este, como se sabe, padece de uma crônica crise de identidade.

Mas a preocupação deste momento é com o avanço do Direito Comercial na di-reção de outras atividades tradicionalmente inerentes ao Direito Civil, para além da atração que, em relação a elas, o legislador do Código Civil estabeleceu com o instituto do elemento de empresa no parágrafo único do art. 966. Neste sentido, como se sabe, a atividade intelectual (de natureza científica, literária ou artística), mesmo quando realizada com o concurso de auxiliares ou colaboradores, remanesce no campo do Direito Civil, exceto quando se tornar elemento de empresa.

Há certa sutileza indecifrável no conceito acima (ou, ainda, uma contradição), que já havíamos identificado anteriormente.3 Isto porque o fato de que alguém exerça profissionalmente uma atividade econômica naqueles setores, buscando o lucro como resultado final e se utilizando de empregados ou de outros tipos de colaboradores (prestadores de serviços administrativos, técnicos e/ou liberais) somente será consi-derado de natureza mercantil quando essa mesma atividade puder ser identificada como elemento de empresa, ou seja, integrada ou subsumida em outra daquela mesma natureza.

Para podermos enfrentar o problema de forma mais adequada, precisaremos analisar, ainda que muito brevemente, como o Direito Comercial se caracterizou no passado (distante e mais recente), de que forma ele pode ser atualmente identificado, de maneira a se vislumbrá-lo em sua evolução. Sim, porque fundamentalmente é de evolução de que se trata (sabe-se que também no Direito, e no Direito Comercial em particular, praticamente pouco ou quase nada se cria, tudo se aproveita), mas também de certo rompimento de paradigmas, representando esta circunstância um salto qualitativo no processo evolutivo.

Como se sabe, o Direito Comercial na sua configuração como um ente jurídico autônomo, surgiu na Idade Média, no âmbito das corporações de ofícios, como um direito exclusivamente aplicável aos membros daquelas, a partir da construção de institutos nascidos da insuficiência do direito comum (fosse ele o Direito Romano ou o direito local) e provocados pela batalha que os comerciantes travaram diante do obscurantismo do Direito Canônico no que dizia respeito ao exercício do comércio, a partir de uma visão e aplicação deturpadas de fundamentos do cristianismo (os quais, por sua vez, em grande parte originam-se do Antigo Testamento hebraico).

Como se sabe, o enfrentamento que os comerciantes faziam ao Direito Canônico foi provocado por causa das determinações que aquele apresentava especialmente em relação à proibição da cobrança de juros e ao ganho no câmbio. Pode-se afirmar que o Direito Canônico operava contra algumas leis econômicas, que foram reveladas somente em época muito distante no futuro (desta forma, o anacronismo é aparente e não real porque tais leis já existiam e coube aos economistas identificá-las e entendê-las, ainda dentro de um processo

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de descobertas progressivas). É claro que em cada tipo de economia aplicam-se as leis próprias, em cada lugar e em cada momento histórico.

Os institutos já então regulados de forma satisfatória...

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