A garantia dos direitos humanos na reconstrução do Estado de Direito: A luta contra a exclusão

AutorJosé Ricardo Cunha e Nadine Borges
Páginas11-50
1. Introdução
A garantia dos direitos humanos no Brasil e no continente latino-americano
como um todo é uma realidade ainda recente, pelo menos no que concerne a
dois aspectos importantes: 1) incorporação normativa ao direito interno dos
tratados e pactos do Direito Internacional dos Direitos Humanos; 2) cons-
tituição de uma cultura de utilização de tais normativas tanto por parte das
instituições de defesa dos direitos humanos como, principalmente, do Poder
Judiciário brasileiro. Para entender o quão difícil é a garantia desses direitos,
principalmente para aqueles que de fato não os possuem, é necessário que se
tenha em mente um panorama histórico do processo de af‌i rmação dos direitos
humanos. A ideia aqui é buscar uma ref‌l exão crítica sobre os obstáculos que
circundam essa temática desde as primeiras declarações de direitos. Isso, por si
só, já demonstra tal dif‌i culdade, embora não justif‌i que as falências de realização
dessas garantias em um Estado que se pretenda de Direito.
Diga-se logo que a hipótese em curso é que a não garantia dos direitos
humanos historicamente consagrados e a inexistência ou existência inef‌i caz de
um sistema de proteção dos direitos humanos fere de morte qualquer pretensão
político-jurídica de constituição de um Estado de Direito. Isso signif‌i ca que de
acordo com a tradição jurídica e moral das sociedades ocidentais, um Estado
que possa ser considerado de direito não se realiza apenas pela existência de um
sistema formal de regras jurídicas e pela substituição da discricionariedade da
vontade do soberano pela discricionariedade da vontade do legislador. Além
disso, é preciso que existam, ao menos, outros dois elementos fundamentais,
quais sejam: 1) um conjunto de normas garantidoras de direitos fundamentais
de natureza civil, política, econômica e social; 2) um sistema efetivo de promo-
ção e garantia desses direitos que alcance toda a população. Portanto, um Esta-
do de Direito apenas se realiza quando é capaz de proteger os direitos humanos
e concretizá-los nas diversas realidades particulares de um país ou nação. Essa
realização é, de efeito, incompatível com qualquer forma de exclusão civil, polí-
I. A garantia dos direitos humanos na reconstrução
do Estado de Direito: A luta contra a exclusão
JOSÉ RICARDO CUNHA
NADINE BORGES
12 DIREITOS HUMANOS E O PODER JUDICIÁRIO NO BRASIL
tica, econômica e social. Um Estado de Direito deve ser para todos ou não será
um Estado de Direito, mas sim apenas um arremedo que pretende sustentar o
que apenas pode ser tolerado por aqueles que não são vitimados pelas diversas
formas de violência que resultam da violação de direitos fundamentais.
2. Das primeiras garantias dos direitos humanos até um Estado de Direito universal
O que chamamos hoje de Estado de Direito e que nos é tão caro na cultura
política e jurídica mundial não é uma invenção milagrosa do mundo hodierno,
mas o resultado de sucessivas conquistas históricas que af‌i rmaram a impor-
tância e o valor dos direitos humanos. Contudo, muitos desses direitos, como
veremos, surgiram para proteger apenas grupos específ‌i cos e só ulteriormente
alcançaram (pretenderam alcançar) a característica de universalidade ao def‌i ni-
rem, por exemplo, que todos teriam os direitos iguais, ainda que vivessem em
um sistema desigual de classes sociais.
Um dos expoentes modernos mais relevantes, seguramente, é a Declaração
de Virgínia, proclamada em 1776, nos Estados Unidos, seguida das declarações
francesas do período das revoluções, em especial, as “déclaration dês droits de
l’homme et du cytoyen”, em 1789, e a déclaration dês droits de l’homme”, em
1795. Esses documentos, em maior ou menor escala, são os alicerces de uma
concepção moral e jurídica dos direitos humanos preservados nos mais diversos
tratados e pactos internacionais sobre essa temática.
Dentre esses estudos sobre o “histórico dos direitos humanos”, há uma ten-
dência em af‌i rmar que a consciência clara e universal de tais direitos é própria
dos tempos modernos.1 Seguramente, a Revolução Francesa trouxe à tona essa
discussão, mas no campo jurídico-positivo a história constitucional da Inglaterra
sugere alguns instrumentos claramente vinculados à história de formação do
Estado de Direito. Esse debate de cunho constitucionalista não será tratado aqui,
mas para demonstrar a longevidade da discussão dos direitos humanos, pode-
se aludir à Magna Carta de 1215, conhecida como a Carta de João Sem-Terra.
Uma de suas cláusulas previa que os homens livres devem ser julgados por seus
pares, conforme a lei da terra. Esse dispositivo, em sua essência, pode ser consi-
derado como a semente do devido processo legal, o qual também está expresso
na Constituição Federal do Brasil, de 1988, em seu artigo 5º, LIV: ninguém será
privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Segundo Fábio
Konder Comparato, a Magna Carta, na Inglaterra, pode sim ser considerada
como o embrião dos direitos humanos pelo fato de buscar o valor da liberdade.
1 — SERRA, Antonio Truyol y. Los Derechos Humanos. Madrid: Editorial Tecnos S.A., 1977.
A GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS NA RECONSTRUÇÃO DO ESTADO DE DIREITO 13
Para o autor, não se tratava de uma liberdade em benefício de todos, sem dis-
tinções de condição social, pois esses direitos só seriam declarados no f‌i nal do
século XVIII — no período das revoluções —, mas de liberdades específ‌i cas.2
Importante lembrar que a Magna Carta foi uma declaração solene em que o rei
João da Inglaterra logrou deixar implícito, pela primeira vez na história política
medieval, a possibilidade de o rei submeter-se às suas leis. Além disso, inaugurou
a existência de direitos próprios, na linha dos atuais direitos subjetivos, permi-
tindo aos nobres e à Igreja alguns direitos que, além de não dependerem do
consentimento do rei, também não poderiam ser modif‌i cados por ele.
Dentre outros documentos e declarações históricas incipientes dos direitos
humanos, destacam-se também a Lei de Habeas Corpus, de 1679, seguida dez
anos depois por outra Declaração de Direitos — Bill of Rights —, em 1689, am-
bas promulgadas na Inglaterra. Essas cartas também não eram voltadas igual-
mente para todos os súditos. Obviamente, priorizavam e elencavam benefícios
e direitos do clero e da nobreza. O que difere essas declarações da carta de João
Sem-Terra, datada de 1215, são os pontos referentes às garantias das liberda-
des individuais. Isso, em certa medida, contribuiu para f‌i rmar o “novo estatuto
das liberdades civis e políticas”.3 A Lei de 1679 teve uma grande importância
enquanto matriz histórica de garantia judicial voltada para proteger o direito
de ir e vir. Sobretudo, no que concerne à possibilidade de utilizá-lo em caso de
prisão efetiva e garantir ao paciente o direito de impetrar um “writ” — habeas
corpus — contra a autoridade coatora. Já a Bill of Rights era um documento que
previa, dentre outras normas, a participação do Parlamento na condição de ór-
gão competente para legislar e instituir impostos. Essa Carta, além de fortalecer
a instituição do júri, lançou as bases dos direitos fundamentais atuais que estão
expressos nas constituições modernas, como, por exemplo, o direito de peticio-
nar e a proibição de penas cruéis e degradantes.4
Nesse cenário, mesmo sendo otimistas, não deve nos faltar discernimento
para perceber que os direitos oponíveis ao Estado, no caso da Bill of Rights,
eram direitos de alguns homens, não de todos. Por isso, o domínio formal da
lei, muitas vezes, pode mascarar o domínio de uma classe. Sendo assim, é neces-
sário que os direitos humanos transcendam as desigualdades do poder de classe
e sirvam para todas as pessoas (sejam inclusivos), sob pena de perpetuarem a
violência que mantém jugos e nega tanto a liberdade como a igualdade. O Rule
2 — Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A Af‌i rmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 46.
3 — COMPARATO, Fábio Konder. Op. Cit., p. 49.
4 — COMPARATO, Fábio Konder. Op. Cit., p. 96.

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