A garantia e seus fundamentos jurídicos

AutorCarlos Pinto Del Mar
Páginas152-182

Page 152

A garantia é um instituto que resguarda o contratante ou consumidor contra riscos que se manifestam após a instauração da relação jurídica negocial302.

Pelo princípio da garantia, o alienante se obriga a assegurar ao adquirente a título oneroso o uso da coisa por ele adquirida e para os fins a que é destinada, atendidas as condições necessárias (uso adequado e realização da manutenção).

A garantia é inerente à própria compra e venda, inspirada no princípio da boa-fé, e delimita as responsabilidades do fornecedor e do consumidor. A garantia é obrigação contratual que gera o dever de indenizar, de modo que, embora por fundamentação diversa, assemelha-se, no resultado, às consequências do inadimplemento das demais obrigações contratuais.

Existem duas espécies de garantia: a legal e a contratual.

De acordo com o disposto nos arts. 24 e 25, do Código de Defesa do Consumidor303, a garantia legal, por decorrer da lei, não pode ser suprimida, total ou parcialmente, pela vontade das partes. Em contrapartida, a garantia contratual tem livre conteúdo (art. 50 do CDC304) e se manifesta em termos escritos em um contrato. Os termos da garantia podem dizer respeito ao direito (garantia por evicção, por exemplo) ou podem abranger os vícios (de qualidade e quantidade).

Simão, em seu livro Vícios do Produto no Novo Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, faz uma síntese da doutrina sobre as teorias que exis-

Page 153

tem para explicar os fundamentos da garantia, que merece ser reproduzida. O citado autor inicia por Orlando Gomes305, que busca esses fundamentos em três teorias: teoria da evicção parcial, teoria do erro e teoria do risco. A teoria que fundamenta a garantia no princípio da evicção parcial é criticada pelo mestre baiano, acentuando que, se (a garantia) fosse semelhante à evicção, ao alienante restaria a obrigação de indenizar (como ocorreria em casos de evicção), o que não se aplicaria aos casos de incidência de vícios, cuja regulamentação, em regra, prevê apenas a redibição do contrato com a devolução da coisa e do preço (e não a indenização). A teoria do erro considera a vontade do alienante viciada quando baseada em erro sobre as qualidades essenciais do objeto. Contudo, para Orlando Gomes, os fundamentos dessa teoria não seriam os mais próprios para a garantia, por receberem tratamentos legais diferenciados: no caso do erro, a consequência é a anulação do contrato e, no caso dos vícios ocultos, há a possibilidade de abatimento do preço. Por fim, a teoria do risco, que se fundamenta na imposição legal ao alienante da responsabilidade pelos vícios da coisa. Esta é afastada por Orlando Gomes sem maior fundamentação, por entender que não se aplica aos vícios.

A teoria do erro – que considera a vontade do alienante viciada quando baseada em erro sobre a qualidade essencial do objeto – constitui um dos principais fundamentos da garantia, não podendo ser afastada pela mera consideração de que o erro implicaria necessariamente anulação. Ou seja, sempre que possível, deve-se preservar o negócio, reservando-se ao contratante o direito de reclamar a indenização, e não necessariamente buscar a anulação do negócio. Esse raciocínio parte da máxima de que, quem pode o mais pode o menos, isto é, se é possível postular a anulação do negócio, que é o mais, parece razoável que se possa postular o menos, que é manter o negócio com o recebimento de indenização correspondente ao vício.

Serpa Lopes306 classifica as teorias em dois grupos: (a) responsabilidade do contratante como um consectário necessário da natureza jurídica do contrato; e (b) a teoria eclética, que tem por base a ideia do erro.

Silvio Rodrigues307, secundado por Simão308, afasta-se da noção de erro e de inexecução do contrato e fundamenta a garantia na boa-fé, que constitui princípio informador do direito contratual. Com efeito, o princípio da boa-fé

Page 154

previsto no art. 422 do Código Civil309, constitui, a nosso ver, o fundamento da responsabilidade por vícios ocultos e deve nortear todos os contratos, quer decorrentes de uma relação de consumo, quer decorrentes de uma relação apenas civil. Assim, é de ser prestigiada a expectativa de se estar contratando ou adquirindo algo que se pressupõe ter determinados requisitos básicos de qualidade que lhe são intrínsecos, pois é justamente nessa expectativa que reside a boa-fé do contratante ou adquirente.

De certa forma, a boa-fé objetiva congrega todas as outras teorias que, cada qual com a sua visão, buscam fundamentos para a garantia, como é o caso da teoria do erro, da teoria do risco, do princípio da evicção parcial, que, a nosso ver, resistem às críticas de Orlando Gomes e servem de fundamento para a garantia.

A boa-fé objetiva opera seus efeitos nas hipóteses de redibição ou abatimento do preço, pois a garantia circunscrita ao derredor dos vícios redibitórios visa a proporcionar estabilidade aos negócios jurídicos relacionados à transferência de bens de um contratante ao outro, fazendo com que o adquirente de certa coisa sinta-se tranquilo quanto à utilidade objetivada no bem adquirido, razão pela qual a questão da “culpa” perde um pouco o seu sentido310.

A boa ou má-fé é relevante para efeito de reparação, pois, se o alienante não conhecia o vício ou defeito da coisa, restituirá o que recebeu mais as despesas do contrato, ao passo que, se conhecia, restituirá o que recebeu mais perdas e danos, conforme dispõe o artigo 443 do CC311.

O Código Civil não fixa um prazo mínimo de garantia para os negócios de direito privado não abrangidos pelo direito do consumidor. Mas Caramuru ressalva que é evidente que esse silêncio não poderá representar a exoneração completa e absoluta da garantia, até porque a existência de tal exigência é algo que está de acordo com a função social do contrato312. Com efeito, tendo em vista a função social do contrato, mesmo que o Código seja silente e não haja estipulação de prazo de garantia no negócio jurídico, é de considerar-se

Page 155

um prazo de garantia pelo qual se responsabilize o alienante, devendo tal lapso de tempo ser estabelecido tendo por base os usos e costumes aplicáveis aos contratos ou, não havendo, devem-se aplicar por analogia os prazos do Código de Defesa do Consumidor.

Garantia legal

A garantia legal consiste em alternativas fixadas na própria lei, como meios de proteção e segurança outorgados ao contratante ou adquirente, para se ver recomposto do prejuízo trazido pelo vício313.

9.1. 1 A garantia legal no cc

O construtor responde pela boa qualidade da obra que realizou, responsabilizando-se pelos defeitos que possa apresentar.

Na construção civil, os vícios normalmente são ocultos, pois os aparentes se presumem conhecidos pelo dono da obra quando do seu recebimento. Por isso a lei estabelece o prazo de 5 (cinco) anos, instituindo em favor do dono da obra garantia pela qual o empreiteiro responde, por culpa presumida, pelos vícios ocultos que ponham em risco a solidez e segurança da obra.

Alguns doutrinadores consideram essa garantia do empreiteiro como uma responsabilidade excepcional. A excepcionalidade decorre do fato de que, normal-mente, quem recebe uma obra encomendada libera a pessoa que a entregou –

Page 156

importando, em princípio, na cessação da responsabilidade – o que não ocorre no caso do art. 618314, que abre exceção à regra315.

A importância – até social – desse prazo foi salientada por Hely Lopes Meirelles:

É generalizada a convicção de que esse prazo não foi estabelecido para atender exclusivamente aos interesses do proprietário, mas também, e principalmente, ao interesse de toda a coletividade. Trata-se, destarte, de prazo imperativo, de ordem pública, não sendo possível ao construtor dele se eximir, nem reduzir a sua amplitude por meio de cláusula contratual. Resulta da lei, independente de cláusula que o consigne, e não admite modificação pela vontade das partes316.

Ainda sobre o prazo de garantia previsto no art. 1.245 do Código Civil de 1916317

e no seu correspondente art. 618 do Código de 2002, comentava Hely Lopes Meirelles:

O prazo quinquenal dessa responsabilidade é de garantia, e não de prescrição, como erroneamente têm entendido alguns julgados. Desde que a falta de solidez ou de segurança da obra apresente-se, dentro de cinco anos de seu recebimento, ação contra o construtor e demais participantes do empreendimento subsiste pelo prazo prescricional comum (...), a contar do dia em que surgiu o defeito318.

No fundo, a responsabilidade do construtor decorre antes do princípio geral da responsabilidade civil, do dever de reparação dos danos, dos direitos que são assegurados aos adquirentes, da proteção à sociedade, enfim, decorre antes desses princípios, do que da garantia estabelecida expressamente no texto legal.

Page 157

A jurisprudência firmou o conceito de que, no prazo de garantia referente à solidez e...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT