A genealogia de um litígio: um relato sobre o caso idec versus viaquatro

AutorRafael A. F. Zanatta
Ocupação do AutorDiretor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa
Páginas493-510
A GENEALOGIA DE UM LITÍGIO: UM RELATO
SOBRE O CASO IDEC VERSUS VIAQUATRO
Rafael A. F. Zanatta
Diretor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa. Mestre pela Faculdade de Direito
da USP e doutorando pelo Instituto de Energia e Ambiente da USP. Mestre em direito
e economia pela Universidade de Turim. Alumni do Privacy Law and Policy Course da
Universidade de Amsterdam. Research Fellow da The New School (EUA). Membro da
Rede Latino-Americana de Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits). Membro do
Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil (Iberc). Foi coordenador do programa de
direitos digitais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (2015-2018). Líder de
projetos do InternetLab e pesquisador da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas.
Sumário: 1. Introdução – 2. O planejamento para o litígio; 2.1 O contexto de redes de ativismo
que apoiou a elaboração da ação; 2.2 A formação do grupo de trabalho que elaborou o litígio – 3.
A relação de reforço mútuo entre proteção de dados e fundamentos da defesa do consumidor; 3.1
Utilizando a LGPD de forma correta mesmo sem sua entrada em vigor; 3.2 Retornando ao básico:
a força do direito do consumidor nas relações com os serviços públicos – 4. Conclusão – 5. Refe-
rências bibliográcas.
1. INTRODUÇÃO
Este ensaio tem como propósito promover uma ref‌lexão bastante modesta, em
primeira pessoa, sobre o surgimento de um dos litígios mais emblemáticos do emer-
gente campo da proteção de dados pessoais no Brasil: a ação civil pública promovida
pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) contra a concessionária
ViaQuatro, da Linha Amarela do metrô de São Paulo, pela instalação das Portas Inte-
rativas Digitais (PIDs), dispositivos de publicidade que coletavam dados biométricos
dos passageiros do metrô, inferindo quatro tipos de emoção diante da reação perante
peças publicitárias.1
Meu objetivo neste ensaio é suprir uma lacuna, na literatura especializada,
sobre o surgimento deste litígio, a partir de uma narrativa sobre os bastidores de
elaboração da ação, o modo como a tese foi construída e o processo de colaboração
entre academia e sociedade civil na construção desta ação civil pública.
Esse tipo de produção de narrativa se mostra relevante na medida em que mais
estudos jurídicos sobre proteção de dados pessoais reconhecem a importância deste
litígio – para alguns, o primeiro grande caso sobre reconhecimento facial no Brasil;
para outros uma primeira grande experiência de advocacia de interesse público em
proteção de dados pessoais em menos de 15 dias de aprovação da Lei Geral de Proteção
1. Para uma introdução sobre a ação civil pública e acesso direto à petição inicial, ver https://idec.org.br/noticia/
idec-vai-justica-contra-coleta-de-emocoes-de-usuarios-do-metro-de-sp
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de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018).2 Mesmo diante da crescente relevância deste
caso,3 que obteve decisão liminar favorável, conf‌irmada posteriormente em juízo
de mérito em primeira instância, inexiste um relato abrangente sobre o surgimento
do caso e sobre as táticas mobilizadas na elaboração da ação civil pública. Apesar
de lecionar constantemente sobre responsabilidade civil4 e por utilizar esse caso
como uma das discussões em sala de aula, até hoje não tinha tido a oportunidade de
organizar as ideias sobre o surgimento do caso, transformando essas ideias em texto
minimamente coerente.5 Eis o esforço deste ensaio genealógico.
É importante, de partida, avisar o(a) leitor(a) sobre o que não pretendo neste
ensaio. Diria, em síntese, que não pretendo três coisas. Primeiro, não pretendo fazer
uma apologia da ação civil pública ou de suas teses, em tom parecerístico, como
se houvesse a necessidade de convencer alguém sobre as virtudes da ação ou da
robustez das teses jurídicas apresentadas. Segundo, não pretendo explicar os des-
dobramentos judiciais do caso, em especial a decisão do Tribunal de Justiça de São
Paulo.6 Terceiro, não pretendo realizar generalizações a partir do relato deste caso ou
tirar lições jurídicas mais gerais sobre ações civis públicas,7 responsabilidade civil e
danos morais coletivos.8
2. Como exemplos do impacto do caso na literatura especializada, ver DA SILVA, Lorena Abbas; FRANQUEIRA,
Bruna Diniz; HARTMANN, Ivar A. O que os olhos não veem, as câmeras monitoram: reconhecimento facial
para segurança pública e regulação na América Latina. Revista Digital de Direito Administrativo, v. 8, n. 1, p.
171-204, 2021. LOUREIRO, Maria Fernanda Battaglin; CARNEIRO, João Víctor Vieira. Problematizando
o direito à privacidade e à proteção de dados pessoais em face da vigilância biométrica. Teknokultura, v.
17, n. 2, p. 204-213, 2020. SOUZA, Michel RO; ZANATTA, Rafael A. F. The Problem of Automated Facial
Recognition Technologies in Brazil: Social Countermovements and the New Frontiers of Fundamental
Rights. Latin American Human Rights Studies, v. 1, 2021.
3. Em comunicação privada, o professor Rodrigo Firmino, da PUC-PR, me informou que o caso chamou aten-
ção do Prof. David Lyon, que o incluiu em seu último trabalho sobre resistências à vigilância no Sul Global.
Infelizmente não possuo os detalhes da obra, pois imagino que ela está em vias de edição e publicação em
2022. Incluo esta nota sobre Lyon em razão de sua importância para os chamados surveillance studies, um
campo interdisciplinar que tem apresentado crescimento expressivo nos últimos anos.
4. As aulas são ministradas na Data Privacy Brasil Ensino, escola de formação em proteção de dados pessoais
sediada em São Paulo. Minha participação em universidades públicas, como a Universidade de São Paulo,
tem ocorrido como professor convidado.
5. Sou grato à Roberta Densa e Nelson Rosenvald pelo convite e pela paciência em aguardar uma primeira
versão deste ensaio. Sou profundamente grato ao Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil (Iberc) pela
experiência constante de trocas sobre esses assuntos.
6. HIGIDIO, José. ViaQuatro deve indenizar por implantar sistema de detecção facial nas estações, Conjur,
10 de maio de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mai-10/viaquatro-indenizar-implan-
tar-sistema-deteccao-facial. Para a versão integral da decisão da 37ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, ver https://www.conjur.com.br/dl/viaquatro-indenizar-implantar-sistema.pdf
7. Para uma análise, em profundidade, sobre tutela coletiva em proteção de dados pessoais, ver ZANATTA,
Rafael AF; SOUZA, Michel RO. A tutela coletiva em proteção de dados pessoais: tendências e desaf‌ios. DE
LUCCA, Newton; ROSA, Cíntia. Direito & Internet V: proteção de dados pessoais. São Paulo: Quartier Latin,
2019.
8. Este não é um artigo científ‌ico e tampouco um estudo de caso. Mesmo se fosse, uma das regras básicas dos
estudos de caso é evitar a generalização (a construção de uma teoria geral) a partir de experiências situa-
das e operadas no nível micro. É um erro comum de pesquisadores promover um salto entre experiências
específ‌icas e socialmente situadas e teorias gerais e abstratas.
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