Captação ilícita de votos nas eleições proporcionais: uma interpretação para a generalidade do artigo 175, parágrafo 4º, da lei 4.737/65 à frente da aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada e a relativização do princípio do aproveitamento de sufrágio

AutorKleber Cazzaro
CargoMestre e doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí/SC - Professor do Curso de Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)
Páginas17-22

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Enquanto sistema, o Direito Eleitoral é um conglomerado de normas jurídicas que visa, dentre outras funções, principalmente disciplinar o processo de votação e contagem desta, a ser feito a cada eleição. Por seu turno, cada processo eleitoral, que deve ser democrático, tem que ser encerrado com legitimidade. Isso, inclusive, está posto na Constituição Federal. Ela contempla o voto direto e secreto para todos, como garantia da soberania nacional1 .

Nessa sorte, qualquer desvio que fira tais preceitos macula todo o processo, notadamente quando há ingerência na liberdade do exercício do voto, seja pelo uso do poder econômico, seja pelo abuso de autoridade dos concorrentes ao pleito. Aliás, o próprio Código Eleitoral2 traz, na regra do artigo 237, que “a interferência do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade do voto, serão coibidos e punidos”.

E dentro desse sistema tem a regra do artigo 175, parágrafo 4º, que faz parte da seção que trata da contagem dos votos. A (re)interpretação dele é o objeto do presente estudo. Feita durante o tempo em que vigia no país o regime de exceção, tal regra trouxe o seguinte comando genérico: os votos dados a candidatos declarados inelegíveis ou que tiverem seus registros cancelados por sentença proferida após a realização da eleição a que concorreu serão contados para o partido pelo qual tiver sido feito o seu registro.

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O artigo não distinguiu, e nem hoje isso é feito com precisão, o que fazer quando ocorre, por exemplo, cassação por fatos graves como a captação ilícita de votos onde o eleitor, não raro, é copartícipe da fraude indireta das eleições.

Por isso, sem a pretensão de esgotar o tema por aqui, impera-se uma (re)análise detalhada de tal dispositivo, combinada com a evolução do próprio Direito Eleitoral, junto da nova era constitucional implantada com o advento da atual Carta da República e mais os diversos mecanismos criados até hoje para reprimir qualquer investida que tenha por fim ferir o livre exercício do voto.

Conforme se verá, o referido dispositivo não mais tem assento na forma genérica em que está posto e vem sendo aplicado pelas cortes do país quando o assunto é eleição proporcional e afastamento ou cassação do concorrente que pratica atos ilícitos na busca do voto.

Isso, inclusive, pode ter reflexo até na contabilidade das eleições majoritárias, se restar demonstrado que tal fato implicou o resultado delas. Tudo porque a regra do artigo 175, parágrafo 4º, do Código Eleitoral não pode incidir nos casos de ser necessária a punição do candidato por captação ilícita de votos, ou seja: não se pode admitir que os votos conseguidos de forma ilícita por candidatos a posto legislativo deixem de servir para o próprio candidato que os angariou ilicitamente, mas sejam utilizados pelo partido político pelo qual ele disputou o pleito, ou até mesmo para a coligação com a qual ele se uniu para o concurso.

Se houver captação ilícita de votos, estes não poderão ser utilizados para qualquer finalidade senão o descarte.

E esse é o marco teórico objeto deste ensaio – a captação ilícita de votos e sua implicação no resultado das eleições proporcionais: uma (re)interpretação do artigo 175, parágrafo 4º, da Lei 4.737/65 frente à relativização do Princípio do Aproveitamento do Voto e a incidência da Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada.

Os fundamentos que sustentam tal assertiva são muitos e, conforme seguem, estão firmados em passos firmes que demonstram a necessidade da revisão teórica de interpretação do referido comando legislativo quando se tem na frente a captação ilícita de votos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama, no artigo XXI, que “todo homem tem o direito de tomar parte no governo do próprio país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. A vontade do povo é a base da autoridade do poder público; esta vontade deverá ser expressa mediante eleições autênticas que deverão realizar-se periodicamente, por sufrágio universal e igual, e por voto secreto ou outro procedimento equivalente que garanta a liberdade de voto”. De seu turno, o Direito Eleitoral “é instrumento da democracia, pois que assegura a liberdade de sufrágio e a legalidade na proclamação dos resultados eleitorais”3 .

Por conseguinte, à Justiça Eleitoral cabe a nobre e sempre desafiadora missão de buscar, com vigor, a “verdade eleitoral”, traduzindo a liberdade democrática hoje existente no país, enumerada especialmente desde a abertura do processo de redemocratização paginado com vigor a partir dos idos de 1985.

É numa eleição que o cidadão, previamente alistado e, portanto, titular da capacidade eleitoral ativa, por intermédio do voto livre e pessoal, manifesta sua vontade na escolha de um representante ou uma proposta que a ele é apresentada pelos políticos concorrentes.

Nesse campo, gize-se que, entre outros, são princípios importantes no Direito Eleitoral o da lisura das eleições, que preserva a intangibilidade dos votos4 , e o da moralidade eleitoral. Ambos, porque impõem a mesma respeitabilidade. Aliás, a Constituição Federal traz, no artigo 1º, parágrafo 1º, que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição, sempre primando pela democracia e liberdade de manifestação do sufrágio, longe de qualquer interferência ilícita usada para dirigi-lo.

Porém, tanto a doutrina, quanto a jurisprudência pátrias, hoje, continuam adotando a regra do artigo 175, parágrafo 4º, do Código Eleitoral, sem fazer qualquer distinção se o candidato foi cassado ou declarado inelegível, antes ou depois da contagem do pleito; se ele foi cassado ou declarado inelegível por condição que viciou o seu registro, ou por força de captação ilícita de voto. E o pior: mesmo os votos que não venham prestar para ele porque tenham restado colhidos com vício, continuam vigindo para servirem de base para o partido ou a coligação a que ele fez parte no concurso.

Por isso, não obstante todo o esforço hermenêutico que vem sendo desenvolvido hoje, a aplicabilidade do referido dispositivo, quando se trata de eleição proporcional (que é o caso em estudo), corre na contramão do sistema democrático brasileiro quando mantém tal regra sem qualquer reforma ou aplicabilidade distinta para cada caso concreto.

A sustentar tais assertivas de (re)interpretação estão robustos marcos históricos, políticos, legislativos e jurídicos que aconteceram ao longo do tempo. Todos, conjugados entre si, demonstram, presente e incontestavelmente, a imprestabilidade de tal dispositivo na forma em que se encontra e está sendo aplicado, especialmente porque já foi vencido tacitamente pelo tempo e pelo Direito.

Capitaneado pelo Tribunal Superior Eleitoral, que insiste na manutenção do referido dispositivo em caso de eleição proporcional, com decisão que alcance candidato que participou dela e foi julgado depois da contagem das urnas, a doutrina e a jurisprudência dos Tribunais Regionais Eleitorais seguem a mesma direção.

Na maioria das vezes que interpretou a regra do artigo 175, parágrafo 4º, da Lei 4.737, de 15 de julho de 1965, criada em 1983, através da Lei 7.179, de 19 de dezembro, para aplicá-la a situações envolvendo o resultado de eleições proporcionais, o TSE manteve a sua aplicabilidade a fim de, entre outros resultados, validar os votos conseguidos por quem tenha sido declarado inelegível ou tenha tido cancelado seu registro de candidatura, em prol do partido ou coligação a que ele tenha feito parte no pleito respectivo.

Segue um exemplo (TSE): a) Recurso especial. Representação judicial eleitoral. Art. 41-A da Lei 9.504/97. Partido político que disputou a eleição em coligação. Legitimação para as ações pertinentes após as eleições. Violado o art. 41-A da Lei 9.504/97. Necessidade do reexame da matéria fáticoprobatória. Pleito Majoritário. Código Eleitoral. Art. 224. Declarados nulos os votos por captação indevida (Art. 41- A da Lei 9.504/97) que, no conjunto, excedem 50% dos votos válidos, determina-se a realização de novo pleito, não a posse do segundo colocado. Pleito proporcional. Vereador. Declarada a nulidade de voto de candidato a vereador, em razão da captação ilícita, aplica-se o disposto no art. 175, do CE5 .

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Igual caminho está sendo adotado pelos Tribunais Regionais Eleitorais do País. Por exemplo: a) Inelegibilidade declarada após a eleição. Aproveitamento dos votos do candidato alcançado pela sentença (CE 175, 4º) – Recurso improvido. Os votos dados a candidato declarado inelegível após a eleição são contados para o respectivo partido, nos termos da exceção prevista no art. 175, par. 4º, do Código Eleitoral6 . b) Recurso – Ação de Impugnação de Mandato Eletivo. Abuso do Poder Econômico. Provas incontroversas. Cassação do Diploma. Pleito proporcional. Destinação dos votos. Sentença posterior às eleições. Exegese do art. 175, par. 4º, do Código Eleitoral. Em se tratando de sentença de cassação de diploma proferida após a realização das eleições proporcionais, aplica-se o disposto no art. 175, , do Código Eleitoral, computando-se os votos atribuídos ao candidato para a legenda partidária pela qual obteve seu registro e concorreu ao pleito7 . c) Captação de sufrágio. Terceiros. Oferecimento de vantagem. Voto. Nulidade. Vereador. Cassação posterior a eleição. Contagem do voto ao partido político. Nos dias precedentes a eleição, o recorrido, diretamente e através de uma interposta pessoa, capitaneou esquema de compra de votos em prol de sua candidatura, sob promessa de facilidades à obtenção de CNH e pagamento de R$ 20,00. Prova Robusta8 . d) Recurso Inominado. Representação eleitoral. Art. 41-A da...

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