O que e geografia juridica critica? Origens, trajetorias e possibilidades/What is Critical Legal Geography? Origins, Trajectories, and Possibilities.

AutorKonzen, Lucas P.

1 INTRODUÇÃO

O que é geografia jurídica crítica? Há algum tempo tenho sido confrontado com esta indagação. (1) A pretensão de transcender a divisão do trabalho entre juristas e geógrafos (BLOMLEY; BAKAN, 1992: 662), por meio de um diálogo com viés declaradamente interdisciplinar, pode se mostrar desconcertante, especialmente para quem está habituado a áreas do conhecimento estabelecidas como são o Direito e a Geografia. Por isso, para responder a essa pergunta não basta apresentar a geografia jurídica como "[...] uma corrente de estudos que faz das interconexões entre direito e espacialidade, especialmente a sua construção recíproca, seu objeto central de investigação" (BRAVERMAN et al., 2014: 1, tradução minha). Para que essa definição possa ter dinamicidade é preciso discutir as suas origens, trajetórias e possibilidades.

A gênese da geografia jurídica é discutida na seção 2 deste artigo. Procuro explicar como emergiram, ao longo dos anos 1980, sobretudo no contexto do Reino Unido e dos países da América Anglo-saxônica, os trabalhos pioneiros que viriam a ser reconhecidos, já na década seguinte, como estudos de Critical Legal Geography, no sentido hodierno desta expressão. Desenvolvo o argumento de que essa vertente de pesquisa surgiu em um momento de intensa agitação político-cultural, a partir da convergência de duas tradições de pensamento social crítico que despontaram de modo relativamente independente entre finais dos anos 1960 e princípios dos anos 1970, os Critical Legal Studies e a Critical Geography.

Na seção 3, as trajetórias da geografia jurídica são retratadas. Busco revisar, ainda que de maneira não sistemática e exaustiva, a vasta literatura produzida nas últimas duas décadas desde que a geografia jurídica consolidou-se internacionalmente como linha de pesquisa, com a publicação de uma série de coletâneas de estudos teóricos e empíricos. Examinando o estado da arte da geografia jurídica, identifico os principais trabalhos que foram publicados e assinalo algumas das lacunas e insuficiências remanescentes. Comento a questão acerca do quão crítica tem sido, efetivamente, a pesquisa em geografia jurídica para, ao final dessa sucinta revisão de literatura, destacar as trajetórias percorridas pela geografia jurídica na América Latina. Afinal, toda forma de conhecimento tem a sua geografia.

A seção 4 enfoca, entre as múltiplas possibilidades que a geografia jurídica oferece, a sua contribuição específica para os estudos sociojurídicos. Pretendo mostrar como categorias teóricas desenvolvidas a partir da perspectiva da geografia jurídica podem ser úteis para investigar as relações entre normatividade e espacialidade empiricamente, tornando possível a compreensão da experiência jurídica como uma dimensão da produção social do espaço e vice-versa. Ilustro essa explicação apresentando um conjunto de pares conceituais que conformam uma teoria da regulação do espaço: normas ideológicas e representações do espaço, normas jurídicas e espaços jurisdicionais, práticas jurídicas e táticas espaciais, e normas sociais e espaços territoriais. (2)

2 DE ONDE VIEMOS: A GÊNESE DA GEOGRAFIA JURÍDICA CRÍTICA

Desde o segundo pós-guerra, há registro de trabalhos doutrinários esparsos que procuraram, de algum modo, discutir as relações entre as áreas do Direito e da Geografia. No Brasil, são exemplos os textos do jurista e geógrafo paranaense José Nicolau dos Santos (1954, 1955). Porém, tais estudos doutrinários estão distantes não só temporal, mas sobretudo epistemologicamente do que se conhece hoje por geografia jurídica, uma vez que foram desenvolvidos sob a influência da Teoria do Estado e do Direito Comparado, vertentes tradicionais do conhecimento jurídico que em considerável medida reproduzem os fundamentos do paradigma dogmático na pesquisa em direito. Assim, é preciso reconhecer a descontinuidade dessa literatura brasileira dos anos 1950 com a perspectiva da geografia jurídica contemporânea: definitivamente, daí não viemos.

Na verdade, a geografia jurídica emergiu décadas depois, como resultado do entrecruzamento de duas tradições intelectuais bem diferentes: a Critical Geography e os Critical Legal Studies. Ambas são correntes de pensamento crítico radical, com matizes materialistas e inclinações políticas de esquerda, que despontaram em universidades do Norte global anglófono entre finais dos anos 1960 e princípios dos anos 1970. Isso ocorreu em um momento histórico de efervescência político-cultural nas grandes cidades dos países centrais do capitalismo ocidental, que impulsionou novos ativismos sociais como o movimento afro-americano pelos direitos civis, os protestos contra a Guerra do Vietnã, as lutas pelos direitos das mulheres e as mobilizações contra a poluição ambiental. Nesse sentido, desde o princípio essas correntes estiveram expostas à influência do pensamento pós-estruturalista e das teorias críticas racial, decolonial, feminista e ambientalista.

A Critical Geography é tributária da "virada espacial" na teoria social crítica, (3) que ao enfrentar a problemática urbana, deslocou para o centro da reflexão teórico-filosófica a questão da produção material e discursiva da espacialidade do mundo social. (4) Resgatando a herança teórica marxista a fim de teorizar os laços entre o processo de urbanização e os conflitos sociais que permeiam as sociedades capitalistas, as obras seminais do filósofo francês Henri Lefebvre (1968, 1970, 1974), do sociólogo espanhol Manuel Castells (1972) e do geógrafo britânico David Harvey (1973) contribuíram para o desenvolvimento da tese de que a espacialidade da vida em sociedade resulta de um processo social de produção. Segundo essa tese, os espaços refletem e condicionam as relações sociais, constituindo-se em um equívoco teórico a tentativa de reduzi-los a receptáculos passivos dessas mesmas relações, como se fossem palcos sobre os quais se distribuem as distintas ações humanas.

Com a "virada espacial", influentes trabalhos sobre as contradições que permeiam os processos de produção social do espaço urbano no capitalismo--por exemplo, os artigos do próprio Harvey (1972) sobre a formação de guetos e de Neil Smith (1979) sobre a gentrificação nas cidades--começaram a aparecer em periódicos acadêmicos como Antipode: A Radical Journal of Geography, fundado em 1969 nos EUA; e Progress in Human Geography, estabelecido em 1977 no Reino Unido. Se, no início, essas publicações eram consideradas marginais, atualmente estão entre os principais meios de divulgação científica na área da Geografia, disseminando regularmente trabalhos de pesquisa politicamente engajados sobre as relações entre espacialidades, conflitos e desigualdades (em termos de classe, gênero, idade, sexualidade, raça etc.), mas que não deixam de ser rigorosos tanto do ponto de vista teórico quanto empírico.

Ao longo das décadas de 1970 e 1980, em paralelo ao surgimento dos estudos de geografia crítica, emergiram os Critical Legal Studies. Combinando posicionamentos político de esquerda, aportes de filosofia política e insights empíricos sobre uma miscelânea de temas--sistema de justiça, profissões jurídicas, educação em direito etc. --os provocativos escritos de professores de direito como Karl Klare (1979), Mark Kelman (1979, 1984) e Duncan Kennedy (1976, 1982) contribuíram decisivamente para revigorar a crítica na cultura jurídica estadunidense. (5) No contexto dos EUA, essa escola foi a principal expressão do pensamento jurídico crítico, termo que abarca a profusão de correntes críticas surgidas no último terço do século XX que, embora heterogêneas entre si, almejavam a desconstrução dos fundamentos do paradigma dogmático na produção de saberes sobre o direito (WOLKMER, 2012).

Ainda que tenham entrado em franco declínio a partir dos anos 1990, os estudos jurídicos críticos concorreram para consolidar nos EUA, Canadá e Reino Unido uma outra escola de pensamento bem menos eclética, o Law and Society Movement, (6) que acreditava na possibilidade de aproximar o estudo do direito da tradição das ciências sociais. Assumindo paulatinamente premissas como a busca pela compreensão do funcionamento da experiência jurídica na realidade, a contextualização social do direito, a centralidade da pesquisa empírica e o pluralismo jurídico, esse movimento foi responsável por articular o paradigma científico que guia a pesquisa sociojurídica contemporânea. A Law and Society Review, fundada em 1964, nos EUA; o Journal of Law and Society, estabelecido em 1977, no Reino Unido; e o Canadian Journal of Law and Society, lançado em 1986, no Canadá; estão entre os principais periódicos que se especializaram na divulgação de pesquisas sociojurídicas.

Com a ascensão da Critical Geography e dos Critical Legal Studies, estavam dadas as condições de possibilidade para o aparecimento da geografia jurídica crítica. Expoentes do pensamento crítico tanto na área da Geografia quanto na área do Direito haviam começado a questionar seriamente os conceitos centrais de suas respectivas especialidades, bem como seu isolamento em relação às demais áreas do conhecimento (BLOMLEY, 2003: 22). Os geógrafos críticos estavam convencidos de que estudar o espaço era uma tarefa demasiadamente importante para que ficasse apenas sob o seu encargo e, em considerável medida, a mesma opinião era compartilhada pelos juristas críticos com relação ao direito enquanto fenômeno social (BLOMLEY; BAKAN, 1992: 661).

Essa confluência de vertentes críticas de pensamento oportunizou, no decorrer da década de 1980, uma efetiva aproximação dos juristas críticos em relação à problemática do espaço e dos geógrafos críticos em relação à do direito. Novamente, a questão urbana serviu de gatilho para a produção de trabalhos acadêmicos que, anos depois, seriam considerados como precursores da geografia jurídica crítica. Exemplificam essa tendência os estudos do jurista Gerard Frug (1980) e do geógrafo Gordon Clark (1985) sobre governança local e autonomia municipal nos...

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