O giro democrático

AutorDardo Scavino
Ocupação do AutorProfessor Titular de Filosofia
Páginas63-99
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II. O GIRO DEMOCRÁTICO
1. A comunicação política
Crítica da revolução
Num artigo de 1987, O horizonte da modernidade se des-
loca, Jürgen Habermas caracterizava o mundo moderno por
quatro rupturas: o pensamento pós-metafísico, o giro linguís-
tico, a razão situada e a inversão do primado da teoria com
respeito à prática. De certo modo, e ao longo da primeira par-
te, tentamos expor estas quatro transformações a partir da
problemática do “giro linguístico”: crise da razão iluminista,
aceitação da finitude humana e primado do “mundo da vida”
com respeito ao discurso teórico ou objetivo. E decidimos
apresentá-lo dessa maneira, porque o chamado “giro linguís-
tico” somente foi aceito pela maior parte dos filósofos nas três
últimas décadas. Tal como afirmava o próprio Habermas, “de-
pois do giro epistemológico produzido na semântica da verdade,
já não é possível considerar a questão da validade de uma pro-
posição como uma questão da realização objetiva entre lingua-
gem e mundo, questão que seria independente do processo de
comunicação”. A adoção deste giro, no entanto, está muito
longe de ser unânime: para um filósofo como Alain Badiou, o
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DARDO SCAVINO
giro linguístico não é mais que um regresso aos antigos sofis-
tas e, por isso, “deve-se romper com o giro linguístico que se
apoderou da filosofia”; a tarefa da filosofia consiste em cons-
truir, apesar de tudo, uma metafísica; o pensamento é infinito
e se subtrai, justamente, ao chamado “mundo da vida”, ainda
quando sempre diga uma verdade sobre essa “situação” ou
esses saberes.
E, no entanto, Habermas parece ter razão em um ponto:
aquelas quatro rupturas caracterizavam a filosofia pós-kan-
tiana, sobretudo quando nos deslocamos da ciência ao domí-
nio do pensamento político. Quê acontecia com a filosofia pré-
-kantiana? Inspirando-se na física de Galileu, por exemplo,
Sir Thomas Hobbes havia-se proposto, em princípios do sécu-
lo XVII, fundar uma ciência do político. Como haveriam sur-
gido as sociedades e os Estados?, perguntava-se. E para res-
ponder a essa questão, Hobbes imaginava os indivíduos
como um conjunto de átomos que se movem em um espaço
vazio, ou seja, em um estado pré-cultural desprovido de cos-
tumes, hábitos, linguagens, leis e laços sociais. Cada um des-
tes átomos é movido por uma sorte de princípio de “inércia”
animal: o amor próprio ou o interesse pessoal, essa pulsão
egoísta que Hobbes, em seu Leviatã, havia chamado de cona-
tus. Os outros, por esta perspectiva, apresentavam-se ante o
indivíduo como um obstáculo ou um limite para seus apetites
egoístas, mas, também, e dado que se trata de indivíduos mo-
vidos por essas mesmas pulsões, como uma ameaça cotidiana
contra sua integridade e seus interesses pessoais. Por isso, o
“estado de natureza”, ao qual se refere Hobbes, era também
uma “guerra de todos contra todos”. Para não viver nesse es-
tado de terror permanente, os indivíduos decidem chegar en-
tão a um acordo, o contrato social, e para mantê-lo, põem
como garantidor o Estado, uma sorte de poder totalitário en-
carregado de fazer respeitar, mediante a dissuasão, esse con-
trato. De modo que o Estado deve ter a partir desse momento
o monopólio da violência, a única “legítima”, como se dirá mais
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A FILOSOFIA ATUAL: PENSAR SEM CERTEZAS
tarde. Sem Estado, segundo Hobbes, não haveria sociedade
porque os átomos careceriam de coesão.
Como tomava como modelo a física galileana, pode
comparar-se a “ficção” de Hobbes com o gesto inicial do mé-
todo cartesiano: no estado de natureza o indivíduo carece de
preconceitos, de costumes, de crenças. Logo ao colocar en-
tre parênteses todos esses pressupostos, Descartes encon-
trava o “eu penso”, o cogito, aquilo sobre o qual já não se
podia duvidar, porque se duvidava, era evidente que pensa-
va. Hobbes, por sua vez, terminou por achar o amor próprio,
o interesse pessoal ou o conatus, dado que, em última instân-
cia, o ser humano era um ser vivo e, como tal, buscava antes
de mais nada satisfazer seus apetites egoístas. A razão, se-
gundo este filósofo, não era mais que um instrumento a ser-
viço do amor próprio. Daí que Hobbes possa ser considerado
também como o fundador do utilitarismo moderno. Em todo
caso, os seres humanos podem compreender, graças à razão,
que um contrato será mais conveniente para seus próprios
interesses que o estado de guerra permanente: a violência é
substituída pela comunicação, a negociação ou a resolução
jurídica dos conflitos.
Pois bem, para um filósofo pós-kantiano como Hegel,
esse “estado de natureza”, a partir do qual Hobbes pretendia
fundar racionalmente uma ciência do político, não era mais
que uma ficção, entendida, dessa vez, no sentido de uma ilu-
são da consciência. Os seres humanos sempre viveram numa
sociedade, com seus preconceitos, seus costumes, sua lingua-
gem, seu “mundo”. Com efeito, como poderiam os indivíduos
de Hobbes chegar a um acordo, ou redigir os termos daquele
contrato, se não tivessem, ao menos, uma linguagem comum,
se não compartilhassem um sistema de significações e valo-
res? Precisamente, se os indivíduos vivem em um estado de
guerra, é porque não se entendem, ao carecer de uma lin-
guagem comum a todos eles. Daí que uma das funções do
Estado, segundo Hobbes, consistiria em fixar as significações,

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