Mercados globais, reguladores nacionais. A internacionalização do mercado de capitais e o caso do insider trading

AutorRafael Ribeiro Visconti
Páginas308-329

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Introdução

Os últimos trinta anos assistiram à acelerada internacionalização dos mercados de valores mobiliários. Enquanto investidores negociam ativos ao redor do mundo, empresas listam suas ações em diversas bolsas de valores simultaneamente. A atual estrutura de regulação do mercado de capitais, desenhada para regular mercados predominantemente nacionais, requer reavaliação, pois as atividades ilegais no mercado de capitais também se internacionalizaram. Se há três décadas os reguladores nacionais podiam eficazmente aplicar a regulação no mercado de capitais isoladamente, hoje os reguladores dependem da cooperação constante de reguladores de outros países. Qual seria a estrutura regulatória adequada para o mercado de capitais globalizado? De que forma a globalização afeta a regulação do mercado de capitais? Se o mercado de capitais globalizou-se, os reguladores continuam presos às fronteiras nacionais. Desta maneira, a internacionalização impõe novos desafios para os reguladores.

De forma geral, propostas para adaptar a estrutura regulatória à internacionalização do mercado de capitais enquadram-se dentro de dois extremos: de um lado, a harmonização regulatória e, do outro, a competição entre jurisdições. Uma terceira abordagem, a cooperação entre reguladores, enquadra-se em algum ponto entre os dois extremos da harmonização e da competição, mas não se confunde com nenhuma delas.

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Esse debate se origina na pesquisa de juristas norte-americanos sobre a dinâmica entre estados dos Estados Unidos da América (EUA) e atualmente opõe àqueles que defendem a harmonização ou a competição como forma de atingir a forma mais adequada de regulação do mercado de capitais global. Não se trata de descrever qual seria a forma mais eficiente de regulação, ou qual a medida de eficiência, mas apenas apontar qual abordagem seria mais adequada para gerar essa regulação eficiente no mercado globalizado.

As três abordagens (harmonização, competição e cooperação), embora distintas, são altamente interconectadas e podem complementar-se, conforme discutiremos nos capítulos abaixo. Somos levados, então, a nos questionar em que situações a harmonização da regulação do mercado de capitais resultaria em maior eficiência do mercado de capitais? Ou então, a competição entre reguladores nacionais levaria a uma regulação mais eficiente do que o modelo proposto pela harmonização? Qual o estado atual e qual a importância da cooperação entre reguladores na aplicação da regulação do mercado de capitais?

Este trabalho vai analisar criticamente os principais argumentos que sustentam a harmonização, a competição e a cooperação como paradigmas da regulação do mercado de capitais internacionalizado. Procuramos descrever e confrontar cada uma das três abordagens, refletindo sobre a extensa literatura que trata do tema, no-tadamente estrangeira. Contudo, a análise no capítulo um equaciona as questões de maneira inevitavelmente teórica. Tentamos contornar essa situação, pesquisando no capítulo dois de que forma a harmonização, a competição e a cooperação podem ser observadas na regulação do uso indevido de informações privilegiadas no mercado de capitais, o insider trading. Qual abordagem terá prevalecido sobre essa parte da regulação do mercado de capitais?

1. Internacionalização do mercado de capitais e conseqüências para a regulação
1. 1 O processo de internacionalização do mercado de capitais

Os mercados de valores mobiliários ao redor do mundo estão cada vez mais integrados. Desde a década de 1980, a internacionalização do mercado de capitais acelerou o ritmo e se tornou mais fácil negociar valores mobiliários ao redor do mundo. Nas últimas três décadas, um número crescente de países - emergentes e desenvolvidos - abriu seu mercado de capitais para investidores estrangeiros e eliminou restrições que desincentivavam seus cidadãos a investir no exterior. A internacionalização do mercado de capitais significa que um volume substancial de transações financeiras envolve participantes e ativos de diferentes países. Esse processo requer a remoção de barreiras legais e regulatórias ao fluxo internacional de capital e implica em integração dos mercados, mobilidade dos agentes e interco-nectividade. Um mercado de capitais internacional puro seria aquele onde investidores e emissores não teriam incentivos para restringir suas atividades ao seu país de origem (Zandt, 1991). Scott (2006) propõe uma forma de medir a globalização do mercado de capitais através da correlação de preços entre mercados. Quanto maior a correlação de preços entre ativos similares em vários mercados, mais integrados são esses mercados. Dentro desse processo de interdependência dos mercados, muitas empresas mantêm seus títulos em negociação em mais de uma jurisdição simultaneamente enquanto investidores passam a operar globalmente (Licht, 1998a).

A forma mais simples de enxergar a internacionalização é através do cross-listing. O cross-listing ocorre quando uma empresa lista suas ações em outro mercado além daqueles localizados no país de sua incorporação. Em julho de 2009 quase

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40% das empresas listadas naLondon Stock Exchange eram estrangeiras. Na mesma data, 35 empresas brasileiras mantinham seus ativos em negociação na New York Stock Exchange, onde também ocorria a negociação de ações ou American Depo-sitary Receipts1 de 105 empresas asiáticas, 153 européias e 86 latino-americanas (Nyse, 2009).

Outra medida da internacionalização é o interesse de investidores por valores mobiliários emitidos fora de seu país de origem. Dados publicados pela Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) revelam que estrangeiros subscreveram 68% do valor captado em ofertas públicas de ações realizadas na Bovespa no período de 2005 até julho de 2009 (Bovespa, 2009). A negociação de valores mobiliários em mercados no exterior tornou-se um processo simples. Bolsas do mundo todo são acessíveis pela internet como resultado da transformação de pregões viva voz em pregões eletrônicos. Além disso, um forte movimento transatlântico de consolidação entre bolsas de valores impulsiona a internacionalização do mercado.

Essas mudanças dramáticas são resultados de forças econômicas, inovações tecnológicas e o processo de desregu-lamentação dos principais mercados de capitais do mundo. Mas de que forma a internacionalização afeta a regulação do mercado de valores mobiliários? Responder a essa questão se torna necessário na medida em que as estruturas de regulação em vigor foram projetadas para regular mercados predominantemente nacionais. O mercado moveu-se para uma plataforma global e os reguladores continuam presos em fronteiras nacionais. É uma nova realidade que exige uma revisão das estruturas regulatórias à luz das mudanças no mercado de capitais. Nesse cenário, a eficácia do regime regulatório de um país é influenciada por todos os outros regimes. Caso uma jurisdição falhe no combate ao uso indevido de informação privilegiada, por exemplo, os agentes econômicos poderão mover suas atividades para essa jurisdição, frustrando os esforços de supervisão dos outros países (Licht, 1998a).

As principais propostas para adaptar a atual estrutura regulatória à internacionalização dos mercados de capitais são: o conceito de harmonização regulatória, a competição entre jurisdições e a cooperação entre reguladores (MacIntosh, 1995). Neste capítulo analisaremos cada uma dessas abordagens e discutiremos qual a melhor maneira de regular o mercado de capitais em um ambiente internacionalizado.

1. 2 Harmonização regulatória

Harmonização, convergência, uniformização. Harmonização não é o único termo que vem sendo utilizado para descrever esforços para tornar mais similares os sistemas de regulação do mercado de capitais de diferentes países. Sob esta definição, harmonização regulatória implica que a regulação do mercado de capitais de dois ou mais países se aproximem ao longo do tempo, mas não implica necessariamente em total uniformização (MacIntosh, 1995). Baseia-se na idéia de uniformizar a regulação do mercado de capitais de diferentes jurisdições, ou ao menos fazer com que sigam padrões internacionais únicos sobre a regulação e aplicação da regulação (enforcement) nesse mercado. A crescente atividade internacional e interdependência dos mercados geram uma demanda por regulação uniforme.

É possível identificar duas formas principais de harmonização regulatória: voluntária e mandatória. Convergência mandatória é o que está ocorrendo nos países da União Européia, dentro de um

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processo de unificação dos mercados dos Estados Membros, e depende da existência de uma autoridade supranacional. A forma voluntária, e mais comum, é aquela em que países participantes de órgãos de discussão internacionais voluntariamente adotam as diretrizes recomendadas por esses órgãos (Licht, 1998b). Talvez o mais relevante exemplo de esforço para harmonização das normas do mercado de capitais seja o trabalho publicado em 1998 pela International Organization of Secu-rities Commissions (IOSCO), intitulado Objectives and Principles of Securities Regulation (Princípios da IOSCO). Este documento é reconhecido como o padrão da regulação do mercado de capitais. A IOSCO reúne as comissões de valores mobiliários de 110 países, e é reconhecida como a entidade criadora dos padrões internacionais para o mercado de...

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