A greve no direito coletivo

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas1551-1586

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I Introdução

A negociação coletiva, ao cumprir seus objetivos gerais e específicos, alcança uma situação de pacificação no meio econômico-profissional em que atua. Entretanto, no transcorrer de seu desenvolvimento ou como condição para fomentar seu início, podem os trabalhadores veicular instrumento direto de pressão e força, a greve, aparentemente contraditório à própria ideia de pacificação.

A greve é, de fato, mecanismo de autotutela de interesses; de certo modo, é exercício direto das próprias razões, acolhido pela ordem jurídica. É, até mesmo, em certa medida, “direito de causar prejuízo”, como indica o jurista Washington da Trindade1.

Os conflitos coletivos trabalhistas, regra geral, podem passar por três modalidades de encaminhamento para sua solução: autocomposição, em que se situa a negociação coletiva; heterocomposição, em que se situam o processo judicial (dissídio coletivo), a arbitragem e a mediação (há certo debate sobre o correto enquadramento destas duas últimas figuras); por fim, autotutela, em que se encontram a greve e o lock-out.

A autotutela traduz, inegavelmente, modo de exercício direto de coerção pelos particulares. Por isso tem sido restringida, de maneira geral, nos últimos séculos pela ordem jurídica, que vem transferindo ao Estado as diversas (e principais) modalidades de uso coercitivo existentes na vida social. O Direito Civil, nesse quadro, preservou, como esporádicas exceções, poucas situações de veiculação coercitiva por particulares, tais como a legítima defesa (art. 160, I, CCB/1916; art. 188, I, CCB/2002), o desforço imediato, no esbulho possessório (art. 502, CCB/1916; art. 1.210, § 1º, CCB/2003), a apreensão pessoal do bem, no penhor legal (art. 779, CCB/1916; art. 1.470, CCB/2002).

O Direito do Trabalho apresenta, porém, essa notável exceção à tendência restritiva da autotutela: a greve.

Embora proibida nos primeiros tempos do sindicalismo e do Direito do Trabalho, assim como nas distintas experiências autoritárias vivenciadas ao

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longo dos últimos dois séculos, a greve afirmou-se nas sociedades democráticas como inquestionável direito dos trabalhadores. Essa sua afirmação, em um quadro de restrição geral à autotutela, justifica-se do ponto de vista histórico e lógico. É que se trata de um dos principais mecanismos de pressão e convencimento possuído pelos obreiros, coletivamente considerados, em seu eventual enfrentamento à força empresarial, no contexto da negociação coletiva trabalhista. Destituir os trabalhadores das potencialidades de tal instrumento é tornar falacioso o princípio juscoletivo da equivalência entre os contratantes coletivos, em vista da magnitude dos instrumentos de pressão coletiva naturalmente detidos pelos empregadores2.

No Direito Coletivo do Trabalho há, na verdade, um segundo instrumento de autotutela, porém situado no polo empresarial: o lock-out (ou locaute). Este instrumento, entretanto, ao contrário da greve, tem sido genericamente repelido pelas ordens jurídicas democráticas ocidentais3.

II Locaute

Locaute é a paralisação provisória das atividades da empresa, estabelecimento ou seu setor, realizada por determinação empresarial, com o objetivo de exercer pressões sobre os trabalhadores, frustrando negociação coletiva ou dificultando o atendimento a reivindicações coletivas obreiras.

Trata-se, como se vê, de fechamento provisório, pelo empregador, da empresa, estabelecimento ou simplesmente de algum de seus setores, efetuado com objetivo de provocar pressão arrefecedora de reivindicações operárias.

1. Caracterização

A tipicidade do locaute envolve quatro elementos combinados: paralisação empresarial; ato de vontade do empregador; tempo de paralisação; objetivos por ela visados.

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Efetivamente, trata-se de uma paralisação das atividades empresariais. Esta ocorre seja no âmbito amplo de toda a empresa, seja no plano mais restrito de um de seus estabelecimentos ou, até mesmo, de uma simples subdivisão intraempresarial.

A paralisação envolvida há de resultar de decisão do próprio empresário, sob pena de escapar à tipicidade do locaute.

De maneira geral, a paralisação que se enquadra na figura do locaute é temporária. É que, sendo instrumento de pressão sobre os respectivos empregados, visando frustrar ou enfraquecer reivindicações coletivas, há de ter, em princípio, duração limitada no tempo. Contudo, não é inviável imaginar-se a possibilidade de uma falsa paralisação definitiva do estabelecimento, como meio de estabelecer pressão ainda mais eficaz sobre os trabalhadores.

Por fim, a paralisação intentada tem o objetivo de produzir pressões sobre os trabalhadores, visando enfraquecer ou frustrar suas reivindicações grupais ou a própria negociação coletiva. Na verdade, o objetivo específico de estabelecer especial pressão sobre os trabalhadores é que será a principal diferença entre o locaute e outras paralisações empresariais decididas pelo empregador. Pode-se dizer que a causa e os objetivos anticoletivos da atitude do empregador são que demarcam o ponto distintivo dessa paralisação em contraponto a outras ocorridas no ambiente empresarial.

A razão de ser dessa paralisação, sua causa e objetivo antissociais, permitem, por interpretação extensiva, enquadrar-se na figura do locaute certo tipo de paralisação empresarial voltada a produzir uma pressão social ou política ainda mais ampla: trata-se da sustação temporária de atividades do estabelecimento ou da empresa com fins de provocar pressão política no plano municipal, regional ou, até mesmo, federal. Desse modo, o locaute político (ou por razões políticas) recebe o mesmo tratamento conferido à figura padrão regulada pela ordem constitucional e justrabalhista.

2. Distinções

O locaute não se confunde com outros tipos de paralisações empresariais.

Não se confunde, por exemplo, com o fechamento da empresa por falência (art. 449, CLT) ou em virtude de factum principis (art. 486, CLT). Nestes casos, a paralisação tende a ser definitiva (embora não necessariamente) — o que a distancia, regra geral, do locaute. Porém, mais importante do que isso, a paralisação deriva de causa própria, muito diversa daquela inerente ao locaute: ela não é, em síntese, atada ao intuito malicioso do empregador de provocar pressão arrefecedora de reivindicações operárias.

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É claro que no contexto da falência, principalmente, podem ter se apresentado reivindicações obreiras em confronto com a vontade empresarial. Entretanto, as causas falimentares, regra geral, são muito mais amplas do que as estritamente vinculadas ao Direito Coletivo do Trabalho.

Em princípio, também não caracteriza locaute o fechamento definitivo de certo estabelecimento ou empresa, por decisão interna de seus controladores. Esta decisão (fechamento de agências ou filiais, por exemplo) tem sido considerada inerente ao poder empregatício (caput do art. 2º, CLT).

Neste caso, apenas se ficar comprovado de que se trata de artifício malicioso para provocar incabíveis pressões sociais (pressões intra ou extraempresariais), é que se poderia, por interpretação extensiva, excepcionalmente, falar na prática de locaute. Esta possibilidade, contudo, é rara, pois demandaria evidenciar que o intuito de encerrar, definitivamente, a atividade empresarial, não foi verdadeiro, sendo mero simulacro para propiciar indevida pressão.

O locaute também não se confunde, é óbvio, com a paralisação empresarial temporária resultante de causas acidentais, ou de força maior (art. 61, § 3º, CLT). Muito menos confunde-se com paralisações por férias ou licenças remuneradas coletivas, determinadas pelo empregador em vista de situações adversas do mercado econômico ou outro fator relevante (art. 133, II, CLT). Todas estas situações ora enfocadas são meras interrupções contratuais, que não trazem efetivo prejuízo contratual ao empregado. Por isso, englobam-se, em princípio, no jus variandi do empregador4.

Conforme se percebe, a diferença específica do locaute em face de outras paralisações lícitas da empresa ou do estabelecimento, ou de parte destes, encontra-se, em sua essência, no objetivo socialmente malicioso da paralisação: arrefecer pleitos coletivos dos empregados. A causa antissocial da atitude do empregador é que demarca o ponto distintivo do locaute em contraponto a outras paralisações ocorridas no ambiente empresarial.

Pode-se indicar, é claro, regra geral, uma segunda distinção: o caráter provisório da paralisação caracterizadora do locaute. Contudo, a presente diferença não é absoluta, uma vez que existem paralisações também temporárias que são francamente lícitas (como as resultantes de causas acidentais ou força maior, já citadas).

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3. Regência Jurídica

O locaute tende a ser genericamente proibido, mesmo em se tratando de ordens jurídicas democráticas5.

É que este mecanismo de autotutela empresarial é considerado uma maximização de poder, um instrumento desmesurado, desproporcional a uma razoável defesa dos interesses empresariais. Afinal, os empregadores já têm a seu favor, cotidianamente, inúmeras prerrogativas de caráter coletivo asseguradas pela ordem jurídica (poder empregatício, poder resilitório contratual, etc.), o que os coloca, do ponto de vista de potência e pressão, em perspectiva de franca vantagem perante os empregados. Além disso, eles contam, ainda, com poderoso instrumento de pressão ofertado pelo próprio mercado de trabalho, com sua concorrência acirrada e crises de emprego e de empregabilidade.

Por tudo isso, o locaute é...

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