Guarda compartilhada sob a perspectiva da lei 13.058/2014

AutorDonner Rodrigues Queiroz/Vasco Fernandes Alvarenga Mamede
Páginas327-350

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Ver Nota12

Apresentação

A instituição familiar brasileira passa por constantes transformações. Por consequência, a legislação pátria do Direito de Família também é objeto de alterações signiicativas. Nesse sentido, considerando que a família é a base estrutural da sociedade, não há dúvidas de que a sua proteção é medida a ser sempre almejada pelo Direito. A guarda dos ilhos de pais separados é tema que vem causando, na doutrina e jurisprudência, grandes discussões e divergências de entendimento. Entretanto, como ponto convergente dentre as divergências, se encontra o princípio do melhor interesse do menor, extraído do art. 227, da Constituição Federal, ao qual deve observância a sociedade, os pais, o legislador e os operadores do Direito. Com a recente publicação da Lei 13.058/2014, que altera dispositivos do Código Civil e, principalmente, apresenta novos parâmetros de aplicação da Guarda Compartilhada no Direito Brasileiro, estar-se-á diante de uma patente quebra de paradigmas, o que é tema de estudo do presente trabalho.

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1 A entidade familiar e sua relação com o princípio da dignidade da pessoa humana

A Constituição da República Federativa do Brasil (CF) destinou Capítulo especíico à família, ante sua importância para a Constituição e consolidação de um sistema social e do Estado Democrático de Direito.

Referido preceito fundamental se encontra delineado no art. 226, da Constituição Federal brasileira de 1988, em que se reconhece e protege as diversiicações de entidades familiares existentes na sociedade, veja-se:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...)

§ 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 4º – Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. (...)

§ 7º – Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paterni-dade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e cientíicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oiciais ou privadas.

§ 8º – O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Ressalte-se, todavia, que a diversiicação das relações familiares sofreu inluências variadas das culturas e legislações romanas, canônicas e germânicas, se atrelando, porém, aos vínculos afetivos, que, por sua vez, se tratam de prerrogativas dos seres vivos, pois estes optam, instintivamente, por viverem em conjunto.

A autora Giselda Hironaka, neste ponto, conceitua, com a devida propriedade, as relações afetivas perpetradas entre o indivíduo e a família, senão veja-se: não importa a posição que o indivíduo ocupe na família ou qual a espécie de grupamento familiar a que ele pertence, o que importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores, e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade.3

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Desta feita, a família se encontra envolta pelo cuidado exercido reciprocamente pelas pessoas que a constituem, independente de laços sanguíneos.

O tema da afetividade e família foi tratado, também, por Maria Berenice Dias, porém, da seguinte forma:

Cada vez mais a ideia de família se afasta da estrutura do casamento. O divórcio e a possibilidade de novo casamento, o reconhecimento da existência de outras entidades familiares, bem como a liberdade de reconhecer ilhos havidos fora do casamento ensejaram verdadeira transformação no próprio conceito de entidade familiar. A família pluralizou-se. Já não se vincula aos seus paradigmas originários: casamento, sexo e procriação. O movimento de mulheres, a disseminação dos métodos contraceptivos e os resultados da evolução da engenharia genética evidenciam que esse tríplice pressuposto deixou de servir para balizar o conceito de família. Caiu o mito da virgindade. A concepção não mais decorre exclusivamente do contato sexual, e o casamento deixou de ser o único reduto da conjugalidade. As relações extramatrimoniais até dispõem de assento constitucional, e não se pode mais deixar de albergar no âmbito do Direito de Família as relações homoafetivas. O desaio dos dias de hoje é buscar o toque diferenciador das estruturas familiares que permita inseri-las no Direito de Família. Mister isolar o elemento que enseja delimitar o conceito de entidade familiar. Para isso, é necessário ter uma visão pluralista das relações interpessoais. Induvidosamente são o envolvimento emocional, o sentimento de amor, que fundem as almas e confundem patrimônios, fazendo gerar responsabilidades e comprometimentos mútuos, que revelam a presença de uma família. Assim, não se pode deixar de reconhecer que é o afeto que enlaça e deine os mais diversos arranjos familiares. Vínculo afetivo e vínculo familiar se fundem e se confundem.4

Consoante os conceitos até então apresentados, veriica-se que a entidade familiar está amparada, inclusive, pelo Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, na medida em que, independente da forma como ela se formou, a sociedade e o Estado devem tratá-la de forma parcimoniosa e igualitária.

Cumpre destacar que a expressão “Dignidade da Pessoa Humana” começou a ser desvendada por Immanuel Kant no começo do século XIX, ocasião em que a vinculou a uma compreensão ética da natureza humana.5Segundo a concepção

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kantiana, a dignidade torna o homem superior às coisas materiais (que podem receber preço) e, consequentemente, um ser dotado de consciência racional e moral, que possui responsabilidade e liberdade.6Desenvolvido o escorço teórico de Kant, o Direito, visando delinear a personalidade de determinada pessoa, relativiza o termo dignidade, que, mais adiante, perante uma ordem global insculpida na cultura mundial, se atrela, essencialmente, ao capital, ou seja, à fortuna relacionada a cada indivíduo.

É fato, no entanto, que, apesar do conceito de capital supramencionado, o im teleológico almejado pela Constituição Federal brasileira, quando designa a Dignidade da Pessoa Humana como garantia de direitos válidos para o ser humano e a sociedade em geral, é a instituição da própria democracia que, por seu turno, possui como Princípio basilar a igualdade.

Neste contexto, portanto, se encontra a afetividade familiar acima referida, bem como o melhor interesse da criança e do adolescente, a diversiicação das famílias e a intervenção estatal em questões de interesses privados que, porém, se vinculem a problemas sociais de ordem familiar, pois tais princípios se atrelam ao Direito de Família e se encontram emoldurados pelo Princípio Macro da Dignidade da Pessoa Humana.

Concatenar o Direito de Família com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana revela, apenas, a compreensão da autonomia dos sujeitos e de suas liberdades, o que se fundará, como dito alhures, no tratamento igualitário entre todo e qualquer vínculo afetivo, com a sobreposição especíica de importância da família e de valores atinentes ao próprio Estado Democrático de Direito, como a felicidade, a intimidade e a afetividade.

2 Evolução histórica da família e do instituto de guarda

A família, concebida como a primeira célula de organização social, tem evoluído gradativamente e sobrevivido, com as devidas adaptações, às mutações culturais da humanidade.

Segundo se encontra delineado em doutrinas das mais variadas espécies, a primeira forma de família a se constituir socialmente é a consanguínea, a qual se atrelava à divisão da entidade familiar basicamente em dois grupos, ou seja,

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aquele formado pelos pais e o que se constituía pelas mães, estando os ilhos vinculados a ambos os grupos. Dessa forma, nem sempre se revelava possível a distinção do parentesco fundado em laços de sangue daquele atrelado à ainidade. Neste sistema, o casamento era tido como inadmissível, diante da possibilidade de mistura na ordem das relações sexuais.

Mais adiante, surge a família Punaluana, em que não se admitiam as relações sexuais entre pais e ilhos, bem como o casamento entre irmãos e colaterais (primos). Como evolução natural da própria sociedade, se estabelece a família Sindiásmica, em que o homem passa a viver com uma mulher, mas sem se esvair as relações poligâmicas eventuais por parte daquele e estabelecendo-se castigos cruéis para adultérios femininos.

Da família Sindiásmica alora a família Monogâmica, baseada no predomínio do homem e na procriação de ilhos, cuja paternidade seja indiscutível, pois a hereditariedade se atrelará, diretamente, à posse dos bens deixados pelo genitor. A mulher passa, portanto, a exercer papel de submissão plena ao homem sob forma de escravização.

Em meio a um abismo consolidado entre as relações maritais até o inal do século XX, surge a família Patriarcal, em que a família se reúne sob o poder do ascendente masculino mais velho, com franco...

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