A guerra biopolítica

AutorWalter Guandalini Junior
CargoAdvogado da Companhia Paranaense de Energia
Páginas55-73
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Revista da Faculdade de Direito da FMP – nº 11, 2016, p. 55-73
A GUERRA BIOPOLÍTICA:
estudo sobre as ameaças de licenciamento compulsório das
patentes de medicamentos antirretrovirais
Walter Guandalini Jr.*1
Resumo: Este é um estudo sobre as ameaças realizadas pelo governo federal de promover o
licenciamento compulsório das patentes de antirretrovirais, levando-se em consideração a crise
da sociedade de normalização e as transformações por que passam as práticas biopolíticas na
atualidade. Tratando essas ameaças jurídicas como acontecimento, foi possível enxergá-las como
resultado de uma disputa por poder, na qual Estado-nação e empresa multinacional se utilizaram
dos instrumentos jurídicos vigentes de modo a obter controle sobre as práticas que transpassam o
corpo vivo e administram suas forças visando à produtividade. Essa disputa é emblemática da crise
da sociedade de normalização, que sofre o assédio de uma nova forma de gestão da vida, organi-
zada de acordo com uma lógica empresarial: a sociedade de controle.
Palavras-chave: Biopolítica. Aids. Licenciamento compulsório de patentes.
Abstract: This is a study on the threats, made by the brazilian federal government, of compulsory
licensing anti-retroviral drugs’ patents, taking into account the crisis of normalization society and
the changes suffered by biopolitical practices nowadays. Approaching those juridical threats as a
happening, we could see them as the result of a struggle for power, in which State and international
companies make use of established juridical tools in order to control those practices which fall upon
the living body and allow the management of its forces, seeking productivity. This struggle is a sym-
bol of the normalization society’s crisis, as it has been harassed by a new way of life management,
arranged according to a business logic: the control society.
1. O acontecimento: as ameaças de licenciamento compulsório de
patentes de antirretrovirais
Conforme o relatório anual do Programa Conjunto das Nações Unidas
sobre HIV/Aids, existem no mundo aproximadamente 40 milhões de pessoas
vivendo com HIV ou Aids, e mais de 90% desse total se encontra em países em
desenvolvimento, especialmente a África e a América Latina (UNAIDS, 2004).
*1Artigo baseado nas pesquisas realizadas para a dissertação de mestrado intitulada A crise da
sociedade de normalização e a disputa jurídica pelo biopoder: o licenciamento compulsório de
patentes de antirretrovirais, defendida em agosto de 2006 na Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Paraná. Walter Guandalini Jr. é advogado da Companhia Paranaense de Energia, doutor
em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), membro do Núcleo de Pesquisa
Direito, História e Subjetividade (UFPR) e professor da Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Paraná. Contato: prof.walter.g@gmail.com.
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Desde 1980, quando foi identicado o primeiro caso no Brasil, até junho de
2005, foram noticados ao Ministério da Saúde aproximadamente 371 mil casos
de Aids, e estima-se que haja no país, atualmente, cerca de 593 mil pessoas
contaminadas pelo vírus HIV.2 A despeito de avanços marcantes no tratamen-
to, a taxa de mortalidade real das pessoas infectadas se aproxima de 100%
(COTRAN, 2000, p. 211).
A infecção por HIV pode ocorrer tanto no sistema imune quanto no sis-
tema nervoso central, tendo por consequência uma imunossupressão profunda
que afeta a imunidade celular. A imunodeciência gerada pela infecção leva
ao aparecimento de outras doenças, como infecções oportunistas, neoplasias
secundárias e manifestações neurológicas designadas como “complexo de de-
mência da Aids”. Todos esses sintomas provocam graves alterações na vida do
paciente, o que acarreta consequências até mesmo econômicas: segundo o in-
forme anual de 2004 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(UNDP, 2004), 20 países estão hoje menos desenvolvidos do que em 1990 em
razão da Aids; como a doença afeta as pessoas em seus anos mais produtivos,
os países que têm grande parte da população contaminada são obrigados a
tratar o combate à Aids não apenas como uma questão de saúde pública, mas
como parte da política de desenvolvimento econômico.
Apesar dos avanços na compreensão do distúrbio desde 1981, e da re-
dução da taxa de mortalidade pelo uso de combinações de antirretrovirais, mes-
mo com a utilização desses medicamentos o DNA viral permanece nos tecidos
linfoides dos pacientes tratados – ou seja, não há cura. Dessa maneira, a luta
contra a Aids continua sendo baseada na prevenção e em medidas de saúde
pública, como campanhas educacionais, além da utilização de drogas antirretro-
virais para a contenção dos efeitos da doença no nível individual.
São justamente esses os focos de ação do governo brasileiro no combate
à epidemia. Com uma política que combina prevenção, diagnóstico, tratamento
e manutenção da saúde, o Programa Nacional de DST e Aids atua em diversos
frontes, realizando campanhas educativas de prevenção e mudança de compor-
tamento, distribuindo preservativos em postos de saúde, fornecendo material
de redução de danos para usuários de drogas injetáveis3, e assegurando o
2 Esses dados foram obtidos em 19 de abril de 2006, no website ocial do Ministério da Saúde sobre
Aids, situado no endereço eletrônico
htm>.
3 O “kit de redução de danos” do Ministério da Saúde para usuários de drogas injetáveis
contém duas seringas, água destilada para injeção, sachê de álcool, um copo de medição
e um fôlder explicativo sobre redução de danos. Fonte:
Walter Guandalini Jr.
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acesso a medicamentos. De todas essas práticas, porém, o acesso universal e
gratuito aos medicamentos antirretrovirais é a política prioritária do programa.
Tudo começou em 1988, quando o governo deu início à distribuição de
medicamentos para infecções oportunistas em pacientes com Aids. Em 1991
tornou-se disponível a terapia antirretroviral, mas apenas a partir de 1996 a
distribuição de medicamentos anti-HIV pelo sistema público de saúde se tornou
obrigatória (GALVÃO, 2002, p. 215). Contrariando recomendações do Banco
Mundial, a Lei 9.313/96 estabeleceu, em seu art. 1º, o direito dos portadores
do HIV e doentes de Aids a receber gratuitamente, através do Sistema Úni-
co de Saúde, toda a medicação necessária ao seu tratamento.4 A lei garante
mais que o recomendado pela Organização Mundial de Saúde, ao assegurar o
acesso a medicamentos mesmo aos portadores do HIV que ainda não tenham
manifestado a Aids clínica (WHO, 2003). Apesar das advertências do Banco
Mundial, essa estratégia se mostrou não apenas mais ecaz, com a redução
da taxa de mortalidade, mas também poupadora de recursos, pois o tratamento
dos estágios iniciais da Aids produz muito menos despesas que as repetidas
internações de pacientes em estado grave.5
Todavia, mesmo com as inúmeras vantagens que o fornecimento gratuito
de antirretrovirais gera para a política de saúde e para a política econômica,
o custo desses medicamentos ainda é muito alto. Em 1999 o governo federal
gastou 336 milhões de reais na aquisição de antirretrovirais sucientes para
o tratamento de 75 mil pacientes – mesmo com a substituição de alguns dos
medicamentos do coquetel por genéricos nacionais, o que já havia gerado, no
período entre 1997 e 2001, uma economia de 300 milhões de reais. Nessa épo-
ca, apenas dois dos produtos utilizados consumiam sozinhos mais de um terço
do total gasto com a compra do coquetel, que era composto por 14 medicamen-
tos. Em 2000, o Efavirenz respondia por 11% da quantia gasta com o coquetel
antiviral, enquanto os gastos com o Nelnavir representavam 28,15% do total
despendido.6
LUMIS2472655FPTBRIE.htm>, acessado em 19 de abril de 2006.
4 “Art. 1º. Os portadores do HIV (vírus da imunodeciência humana) e doentes de Aids
(Síndrome da Imunodeciência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde,
toda a medicação necessária para o seu tratamento.”
5 Entre 1995 e 1999 houve uma queda de aproximadamente 50% na taxa de óbito entre
homens portadores da Aids no país, e o número de internações por doenças oportunistas sofreu
uma redução de 80%, gerando, apenas no período entre 1997 e 2001, uma economia de 1,1 bilhão
de dólares – a incidência de tuberculose foi reduzida em 60%, a de citomegalovírus em 54%, e a de
sarcoma de Kaposi em 38% (MS, 2005).
6 Dados do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), disponíveis em 15 de setembro
de 2003 no endereço da web .
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Assim, em fevereiro de 2001, buscando reduzir os altos preços dos
medicamentos importados para o coquetel antiviral, o governo federal enco-
mendou ao Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fundação Oswaldo Cruz
(Farmanguinhos) a realização de pesquisas que possibilitassem a sua produ-
ção em território nacional. Simultaneamente, com fundamento no art. 71 da Lei
9.279/967 e no art. 2o do Decreto 3.201/998, e com o respaldo do art. 31 do
acordo TRIPs9, ameaçou conceder a licença compulsória das patentes desses
medicamentos caso os laboratórios não aceitassem reduzir os seus preços.
A Merck Sharp & Dohme, procurando evitar o licenciamento compulsó-
rio, reduziu o preço do Efavirenz em aproximadamente 70%. Mas, nas pala-
vras do então ministro da Saúde, José Serra, “o laboratório Roche não teve
a mesma compreensão” (SERRA, 2001a), o que levou a que o governo de-
cidisse, em agosto de 2001, dar início ao processo de concessão de licença
compulsória do Nelnavir. O Farmanguinhos/Fiocruz já estava produzindo o
medicamento com sucesso, faltando apenas a realização de testes de bioe-
quivalência para que ele pudesse ser comercializado, quando a Roche aceitou
reduzir em 40% o seu preço, sendo suspensa a produção pelo laboratório
estatal – segundo Serra, “economicamente saiu mais vantajoso, porque se
a Fiocruz fosse produzir teríamos que pagar royalties, entre 5% e 10% mais
que o preço de custo” (2001b, grifos no original). Após as negociações com
7 “Art. 71. Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder
Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade,
poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração
da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular.”
8 “Art. 2o. Poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória de patente, para uso público
não comercial, nos casos de emergência nacional ou interesse público, assim declarados pelo
Poder Público, desde que constatado que o titular da patente ou seu licenciado não atende a essas
necessidades.” O parágrafo 2º do mesmo artigo considera de interesse público os fatos relacionados
à saúde pública, à nutrição, à defesa do meio ambiente e ao desenvolvimento tecnológico ou
socioeconômico do país.
9 “Article 31. Where the law of a Member allows for other use of the subject matter of a patent
without the authorization of the right holder, including use by the government or third parties
authorized by the government, the following provisions shall be respected:
[…]
(b) such use may only be permitted if, prior to such use, the proposed user has made efforts to
obtain authorization from the right holder on reasonable commercial terms and conditions that such
efforts have not been successful within a reasonable period of time. This requirement may be waived
by a Member in the case of national emergency or other circumstances of extreme urgency or in
cases of public non-commercial use. In situations of national emergency or other circumstances of
extreme urgency, the right holder shall, nevertheless, be notied as soon as reasonably practicable.
In the case of public non-commercial use, where the government or contractor, without making a
patent search, knows or has demonstrable grounds that a valid patent is or will be used by or for the
government, the right holder shall be informed promptly.”
Walter Guandalini Jr.
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a indústria farmacêutica e o incremento da produção nacional de genéricos,
passaram a ser gastos apenas 250 milhões de reais para o atendimento anual
de 110 mil pacientes – uma redução de custos que permitiu que mais pessoas
fossem beneciadas pelo programa.
Todavia, esses debates não solucionaram o problema de maneira deni-
tiva. Apenas quatro anos após as disputas com a Roche e a Merck, o licencia-
mento compulsório retornou à pauta de discussões, dessa vez em virtude dos
altos preços praticados pela Abbott na venda do medicamento Kaletra. Em mar-
ço de 2005 esse medicamento, sozinho, era responsável pelo gasto de quase
30% do orçamento anual de 945 milhões de reais de que dispunha o Ministério
da Saúde para a aquisição de antirretrovirais, consumindo 257 milhões desse
total. A persistência dessa situação fez com que o governo chegasse a anunciar,
em junho de 2005, o que poderia ter sido o primeiro licenciamento compulsório
da patente de um medicamento na história do país, com o Ministério da Saúde
editando portaria em que declarava o Kaletra um medicamento de interesse
público e determinava o seu licenciamento compulsório. Acreditava-se que no
nal de 2005, quando fosse iniciada a sua produção como genérico pelo Far-
manguinhos, o preço unitário do medicamento seria reduzido de US$ 1,17 para
US$ 0,68, acrescido de royalties equivalentes a 3% do preço do produto, o que
poderia gerar uma economia anual de 130 milhões de reais aos cofres públicos
(CRISTINA, 2005). No entanto, as negociações foram retomadas em julho, e
em outubro de 2005 o governo acabou fechando um acordo com a Abbott, que
reduziu o preço da cápsula do Kaletra para 63 centavos de dólar.
Essa polêmica não deve acabar tão cedo, pois o preço dos medicamen-
tos é um fator essencial para a ecácia do programa de combate à Aids, e existe
uma tendência muito forte a se encarar a produção nacional de antirretrovirais
como a única forma de se viabilizar a distribuição universal e gratuita de me-
dicamentos para os portadores de HIV. Desde o início da vigência do acordo
TRIPs no território nacional, quando o país passou a reconhecer as patentes de
produtos farmacêuticos, a aquisição de medicamentos tem onerado cada vez
mais o orçamento destinado à aquisição de antirretrovirais, comprometendo a
sustentabilidade do PN-DST/Aids. O custo médio anual da terapia antirretrovi-
ral, que em 1997 era de 6.240 dólares por paciente, e logo após as negociações
de 2001 havia chegado a quase 1.300 dólares por paciente, enfrenta em 2005
uma nova tendência de crescimento, atingindo o valor de 2.500 dólares por
paciente – em consequência da incorporação de novos medicamentos patente-
ados ao consenso terapêutico.
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Ilustração 1 - Custo médio anual da terapia antirretroviral no Brasil por paciente/ano
(MS, 2005, p. 3)
De acordo com informações recentes do Ministério da Saúde (MS, 2005,
p. 4), cerca de 80% do orçamento anual de 1 bilhão de reais destinados à com-
pra de antirretrovirais é consumido com a importação de nove medicamentos
patenteados, enquanto apenas 20% desse orçamento já é suciente para a
compra dos sete medicamentos de fabricação nacional.10 E essa desproporção
tende a se agravar: com a ampliação do atendimento a novos portadores do
HIV11, prevê-se que o gasto total para a aquisição universal de apenas três an-
tirretrovirais patenteados (Efavirenz, Lopinavir e Tenofovir) deve se elevar subs-
tancialmente, passando de 144,57 milhões de dólares, em 2006, para 247,96
milhões de dólares, em 2011 (MS, 2005, p. 5). Levada em consideração a even-
tual inclusão de novos medicamentos ao consenso terapêutico, o custo anual
do programa pode vir a se tornar incompatível com o orçamento de que dispõe
o Ministério da Saúde para o combate e o tratamento da Aids.
Por todos esses fatores, a estratégia de licenciamento compulsório tende
a ser mais e mais utilizada, cada vez menos como instrumento de chantagem e
negociação, e cada vez mais com o objetivo real de obter a licença para a sua
10 São distribuídos gratuitamente na rede pública 16 antirretrovirais, dos quais sete são produzidos
no Brasil como genéricos (não apenas pelo Farmanguinhos/RJ, mas também pelos laboratórios
estatais Furp/SP, Lafepe/PE, Iquego/GO, Funed/MG e IVB/RJ, além das empresas privadas Nortec,
Genvida e Cristália): didanosina, lamivudina, zidovudina, estavudina, indinavir, ritonavir e nevirapina,
além da associação zidovudina + lamivudina em um mesmo comprimido. Fazem parte do coquetel
também os seguintes medicamentos, protegidos por patentes detidas por multinacionais: abacavir,
amprenavir, atazanavir, efavirenz, enfuvirtida, lopinavir, nelnavir, saquinavir, tenofovir.
11 Cerca de 161 mil pessoas são beneciadas, atualmente, pelo tratamento gratuito fornecido
pelo Ministério da Saúde (dados obtidos em 19 de abril de 2006, no endereço eletrônico
gov.br>).
6240
5486
4603
3464
2210
1500 1359 1336
2500
0
1000
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7000
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005*
Year
Thousands (US$)
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fabricação em território nacional – não apenas em virtude da economia direta
e indireta de recursos, mas também porque a garantia de acesso universal à
terapia antirretroviral reete diretamente no aumento da qualidade de vida dos
portadores do HIV.
2. Situando o acontecimento: entre a biopolítica e o controle
Os dados econômicos ligados ao tratamento da Aids indicam que a dis-
puta em torno das patentes dos antirretrovirais não tem interesse apenas co-
mercial ou jurídico. Na medida em que se relaciona intimamente ao crescimento
das forças do Estado, procurando reduzir a epidemia de Aids a uma curva de
normalidade ótima, o PN-DST/Aids põe em funcionamento uma tecnologia cen-
trada na vida, controlando a série de eventos na população para compensar os
seus efeitos e assegurar a sua homeostase. O Programa é uma ferramenta do
dispositivo de biopoder, pois promove uma gestão biopolítica das populações
com o objetivo de manter a sua segurança contra os perigos internos. Garantin-
do o tratamento gratuito e universal aos portadores de HIV e doentes de Aids, o
governo põe em prática uma tecnologia centrada na vida:
Uma tecnologia que agrupa os efeitos de massas próprios de uma população,
que procura controlar a série de eventos fortuitos que podem ocorrer numa massa
viva; uma tecnologia que procura controlar (eventualmente modicar) a probabili-
dade desses eventos, em todo caso compensar os seus efeitos. É uma tecnologia
que visa, portanto, não ao treinamento individual, mas, pelo equilíbrio global, a
algo como uma homeostase: a segurança do conjunto em relação aos seus peri-
gos internos (FOUCAULT, 2000, p. 297).
Essa tecnologia é vital para a proteção e o aumento das forças do Es-
tado, no contexto de desenvolvimento do capitalismo industrial, uma vez que,
ao assegurar a saúde e a utilidade da população, é ela que garante a inserção
controlada dos corpos no aparelho de produção, o ajustamento dos fenôme-
nos de população aos processos econômicos e, em última instância, a própria
reprodução da força de trabalho. Fica ainda mais clara a importância desses
aspectos quando se analisa os documentos editados pela Organização Mundial
de Saúde e pela ONU a respeito da Aids: a Organização Mundial de Saúde ma-
nifesta preocupação com a possibilidade de redução das forças úteis, ao armar
que “without access to antiretroviral therapy, people living with HIV/Aids cannot
attain the fullest possible physical and mental health and cannot play their roles
as actors in the ght against the epidemic, because their life expectancy will be
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too short12 (WHO, 2003); também a ONU demonstra interesse no problema, ao
indicar a Aids como um obstáculo relevante para o desenvolvimento econômico
de 20 países ao redor do mundo – consequência do fato de a doença afetar as
pessoas em seus anos mais produtivos (UNDP, 2004).
O Ministério da Saúde se expressa no mesmo sentido, ao proclamar
como principais objetivos da terapia antirretroviral “retardar a progressão da
imunodeciência e/ou restaurar, tanto quanto possível, a imunidade, aumentan-
do o tempo e a qualidade de vida da pessoa infectada” (MS, 2000); objetivo si-
milar se torna explícito quando se ressalta a eciência do fornecimento gratuito
e universal de antirretrovirais na redução da taxa de mortalidade, na diminuição
da quantidade de internações, e na contenção dos efeitos da doença sobre a
população economicamente ativa (MS, 2005).
Percebe-se, em todos os documentos analisados, as mesmas preocu-
pações: reduzir os riscos de contágio, prolongar a vida dos indivíduos, diminuir
os custos da doença, produzir e conservar as forças da população, preservar
a saúde dos indivíduos “tanto quanto possível”, e assegurar a sua utilidade du-
rante a maior parte de sua existência. Assim, o Estado desenvolve uma forma
de intervenção sobre a realidade que visa à redução do fenômeno da contami-
nação pelo HIV a riscos aceitáveis, fazendo com que as curvas de normalidade
diferenciais dos grupos de risco se aproximem o máximo possível da curva de
normalidade global, promovendo a normalização biopolítica. Desse modo as-
segura a utilidade geral da população, garantindo a sua inserção no sistema
produtivo e promovendo a ampliação contínua e segura das forças do Estado.
Contudo, apesar do caráter predominantemente biopolítico das práticas
de combate à Aids, a sociedade de normalização passa por um período de tran-
sição: assistimos à emergência das sociedades de controle, nas quais as formas
de sujeição do indivíduo não são mais interdições, prescrições ou regulações,
mas variáveis inseparáveis, que formam um sistema de geometria variável e
operam em linguagem digital, plurívoca e matizada (DELEUZE, 1992a, p. 216).
Essa transformação é consequência de transformações ocorridas na es-
trutura produtiva da sociedade; o capitalismo do século XIX era um capitalismo
tipicamente de concentração, para a produção, e de propriedade. Desse modo,
erige a fábrica como meio de connamento, sendo o capitalista o proprietário
dos meios de produção e de outros espaços concebidos por analogia (a famí-
12 “Sem acesso à terapia antirretroviral, as pessoas vivendo com HIV/Aids se tornam incapazes
de atingir o ponto máximo de sua saúde física e mental, e não podem desempenhar seus papéis
como atores na luta contra a epidemia, pois a sua expectativa de vida será muito curta” (tradução
livre).
Walter Guandalini Jr.
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lia, a escola). Mas atualmente o capitalismo central não é mais dirigido para a
produção, relegada a países de Terceiro Mundo; ele se tornou um capitalismo
de sobreprodução: “o que ele quer vender são serviços, e o que ele quer com-
prar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a produção, mas para o
produto, isto é, para a venda ou para o mercado. Por isso ele é essencialmente
dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa” (DELEUZE, 1992b, p. 224).
Nesse capitalismo de sobreprodução, organizado segundo a lógica da
empresa, as práticas biopolíticas não visam mais à formação de sujeitos-produ-
tores, mas à formação de sujeitos-consumidores. Mais importante que aumen-
tar a sobrevida do indivíduo é garantir a existência de mercado consumidor para
a sobreprodução, de modo que o indivíduo deixa de ser o “produtor connado”
e se torna “consumidor endividado”.
Em consequência da crise da sociedade de normalização, do gradual de-
senvolvimento da sociedade de controle, e da progressiva colonização dos an-
tigos mecanismos biopolíticos e disciplinares pelos mecanismos de controle, as
práticas de prevenção e tratamento da Aids também têm sofrido modicações.
O tratamento da Aids é o representante por excelência do que Deleuze denomi-
na a “nova medicina” (DELEUZE, 1992, p. 225), que substitui o disciplinamento
do corpo individual nos hospitais pelo controle permanente dos comportamen-
tos de risco no interior das populações.
A própria substituição da noção de “grupos de risco” pelo conceito de
“comportamentos de risco” já é um indício do desenvolvimento de uma tecno-
logia de poder de controle substituindo a biopolítica nas práticas de combate à
Aids. Anal, se o que coloca um indivíduo em situação de risco é o seu próprio
comportamento, e não mais o seu pertencimento a um grupo determinado, isso
signica que qualquer indivíduo capaz de se conduzir de acordo com o compor-
tamento perigoso pode representar um risco para a população, devendo, por-
tanto, ser controlado. Conforme a Aids deixa de estar associada a grupos de ris-
co, toda a humanidade passa a ser repartida digitalmente em grupos de matizes
variados e diversos graus de risco; a própria população se torna “modulável”,
sofrendo a incidência do controle de maneira variável, conforme a variabilidade
do risco representado pela pluralidade de elementos existentes em seu interior.
Não cabe mais a pergunta sobre o pertencimento ou não a um grupo de risco,
ou a localização do indivíduo em uma zona de perigo; mais importante é veri-
car o grau de risco que ele corre em virtude de seus próprios comportamentos,
modulando-o no interior de um sistema de geometria variável compreendido
não mais de forma analógica (“doente x são”; “alto risco x risco inexistente”),
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mas no interior de uma escala degradée, numérica e não binária.
Assim, se do ponto de vista do Estado o programa nacional de combate à
Aids desempenha uma função biopolítica, aumentando a utilidade e prolongan-
do a vida das populações contaminadas pelo HIV, as companhias farmacêuticas
enxergam o programa como uma oportunidade para despejar a sobreprodução
de medicamentos, constituindo os indivíduos como sujeitos consumidores. Com
a formação do capitalismo pós-industrial, mais importante que organizar as mul-
tidões e aumentar a sua utilidade no interior da fábrica é garantir a existência de
mercado consumidor para a sobreprodução.
3. O signicado do acontecimento: a guerra biopolítica
Com a compreensão dos vários signicados de que pode se revestir o
Programa Nacional de DST/Aids, torna-se possível compreender também o sig-
nicado da batalha em que estão engajados o Estado e as multinacionais far-
macêuticas pelo controle dos preços dos medicamentos. No contexto de crise
da sociedade de normalização, as ameaças de licenciamento compulsório de
antirretrovirais representam uma disputa por poder, em que essas personica-
ções da sociedade de segurança e da sociedade de controle – “Estado” e “em-
presa” – se utilizam dos instrumentos jurídicos vigentes como forma de obter o
domínio sobre as práticas que transpassam o corpo vivo e possibilitam a gestão
de suas forças visando à produtividade: de um lado o Estado-nação, atuando
em defesa da sociedade de segurança e procurando manter o domínio sobre as
patentes de antirretrovirais para utilizá-las com objetivos biopolíticos; do outro
lado as empresas multinacionais, agindo no registro da sociedade de controle e
procurando fazer com que o tratamento antirretroviral se submeta ao esquema
de uma relação de consumo. O licenciamento compulsório de patentes tem, em
suma, o signicado de uma guerra biopolítica: é a manifestação de superfície
da profunda crise por que tem passado a sociedade de normalização, vítima
do assédio cada vez mais intenso de uma nova forma de combate ao inimigo
interno, que gere a vida de acordo com uma lógica modulável e exível, com
base no poder de controle.
Mas se há luta entre biopoder e controle, é porque nem a sociedade de
segurança segue incontestada nem a sociedade de controle se instalou de for-
ma denitiva em nosso país. As transformações pelas quais tem passado o
capitalismo contemporâneo não se manifestam da mesma forma no centro e na
periferia: enquanto os países desenvolvidos mantêm uma produção informati-
zada de alta tecnologia, os países situados na periferia do sistema econômico
Walter Guandalini Jr.
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mundial ainda têm suas economias baseadas nas fábricas tradicionais de mea-
dos do século XX, que exigem mão de obra barata, disponibilidade de matéria
-prima, e uma população disciplinada para ser utilizada no interior da fábrica. E,
embora Hardt e Negri tenham razão ao armar que a fábrica de automóveis ex-
portada para o Brasil na década de 1990 não é a mesma fábrica de automóveis
da Detroit dos anos 30 (HARDT; NEGRI, 2004, p. 308), isso não altera o fato
de que a Ford paulista continua dependendo, como dependia a Ford detroiter,
da permanente constituição de “sujeitos-trabalhadores” para a manutenção de
seus níveis de produtividade.
Hardt e Negri têm razão quando procuram evitar a interpretação evolu-
cionista que tende a enxergar a presença de fábricas tradicionais nos países
periféricos como apenas uma etapa de seu desenvolvimento, que naturalmente
os conduziria ao estágio em que atualmente se encontram os países avança-
dos. De fato, elas são sinais da nova hierarquia da produção mundial, no interior
da qual se atribui aos países desenvolvidos a responsabilidade pela produção
de alto valor (de informação e serviços), enquanto os países subdesenvolvidos
permanecem tendo suas economias baseadas nas fábricas tradicionais, produ-
toras de bens de baixo valor e geradoras de uma série de problemas urbanos.
No entanto, a armação de que toda a atividade econômica tende a ser
transformada pela economia da informação deve ser relativizada: embora as
fábricas tradicionais efetivamente incorporem as novas tecnologias criadas na
fase pós-industrial, elas apenas o fazem na medida em que essa incorporação
não inuencie na dinâmica do próprio processo produtivo, e para aumentar e
eciência de uma produção que não perde o seu caráter industrial. Em outras
palavras, o emprego da tecnologia pós-industrial no capitalismo periférico dos
países subdesenvolvidos não interfere nas redes de poder que asseguram a
continuidade de seu funcionamento, de modo que as suas relações econômi-
cas, políticas e sociais continuam submetidas a um regime normalizador.
Nesse contexto, o Brasil se encontra subordinado a um grupo de países
centrais cuja economia privilegia os setores de informação e serviços, em um
capitalismo de sobreprodução que se utiliza das técnicas de controle para a
constituição de sujeitos-consumidores. Essa subordinação não implica na trans-
formação radical do dispositivo político de sujeição existente em nosso país
em um dispositivo de controle, até porque a própria relação de dominação in-
ternacional exige, para que continuemos cumprindo a nossa função na divisão
internacional do trabalho, a organização de nossa economia nos moldes do
dispositivo de segurança.
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É normal que ocorram conitos quando esses regimes distintos se en-
contram, pois cada um deles tem um modo de funcionamento especíco e visa
a objetivos especícos. E é exatamente isso o que acontece em relação às
patentes dos antirretrovirais: o Estado e as empresas multinacionais, constituí-
dos por dispositivos de poder distintos, entram em conito a respeito da função
que o PN-DST/Aids deve desempenhar, e procuram resolver esse conito com
todas as armas que têm à sua disposição – pressões políticas internacionais,
reclamações perante organismos de proteção da propriedade industrial, busca
de apoio junto a organizações não governamentais, mobilização popular, e até
mesmo o direito positivado.
É nesses pontos de contato, portanto, na superfície da luta entre a so-
ciedade de segurança e a sociedade de controle, que aparece o problema do
licenciamento compulsório das patentes de antirretrovirais. Para o Estado, tra-
ta-se de um instrumento para a redução de um risco, a partir do momento em
que ele se torna intolerável: o risco de não possuir recursos em quantidade su-
ciente para fazer com que o dispositivo de segurança alcance a totalidade da
população, garantindo a manutenção das suas forças e da sua utilidade para o
desenvolvimento do capitalismo industrial. Para as empresas multinacionais, é
um obstáculo a ser superado na constituição de um mercado consumidor para a
sua sobreprodução intelectual (novos antirretrovirais são criados com cada vez
mais velocidade – segundo Arns da Cunha, existem atualmente mais de 30 dro-
gas em fase de pesquisa [2005, p. 5] –, e é claro que existe uma preocupação
quanto ao retorno do investimento realizado).
É esse, portanto, o real signicado das ameaças de licenciamento com-
pulsório de patentes de antirretrovirais. No contexto de transição da sociedade
de normalização para a sociedade de controle há dois entes distintos, cada um
atuando de acordo com uma racionalidade especíca, que entram em conito
em virtude das diferenças nos modos como veem a realidade. Enxergando o
tratamento da Aids como autoadministração de indivíduos-empresa, as multina-
cionais farmacêuticas o submetem à lógica do consumo, aumentando os preços
dos medicamentos, porque não consideram relevante que o tratamento seja
disponibilizado a toda a população – basta que ele seja acessível àqueles indi-
víduos que desejam realizar esse investimento em seu próprio capital humano.
Só o que interessa é a constituição de um sujeito consumidor da sobreprodução
de medicamentos, compreendido como empresa que investe para assegurar a
rentabilidade de seu capital pessoal (FOUCAULT, 2004b, p. 232).
Já o Estado-nação, enxergando o tratamento da Aids como instrumento
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para a diminuição dos riscos e a ampliação das forças úteis, considera o alto
preço dos medicamentos um grave perigo para a manutenção das forças da
população, utilizando-se do licenciamento compulsório para reduzir esse perigo
novamente aos níveis de normalidade. Assim, assegura o acesso universal aos
antirretrovirais, protegendo a população do perigo interno representado pelo ví-
rus HIV, e garantindo a constituição dos sujeitos produtores necessários para o
desenvolvimento do capitalismo e o aumento das forças do Estado.
As ameaças de licenciamento compulsório representam, então, uma
disputa por poder, em que o Estado brasileiro e os laboratórios multinacionais
utilizam os instrumentos jurídicos à sua disposição, na tentativa de submeter
as práticas que transpassam o corpo vivo e administram as suas forças à sua
própria racionalidade – biopolítica ou de controle.
4. Subjetividades ativas no interior do acontecimento: recusa e resis-
tência às práticas de sujeição
Com a compreensão do signicado político das ameaças de licenciamen-
to compulsório de patentes de antirretrovirais, resta uma questão a ser res-
pondida: o que fazer em face dessa disputa? A resposta imediata, mais fácil e
comum, parece ser aquela que arma a necessidade imperiosa de se proteger
a vida, contra os interesses econômicos dos laboratórios multinacionais, resis-
tindo-se ao advento da sociedade de controle com todas as armas que nos
oferece o dispositivo biopolítico da sociedade de segurança.
No entanto, se o dispositivo de controle cria formas de sujeição extremas,
ao transformar os indivíduos em unidades-empresas submetidas à lógica do
consumo, não se pode esquecer que também a sociedade de normalização
organiza dispositivos de sujeição, incidindo sobre a vida de modo a prolongá-la
indenidamente e maximizar as suas forças, aumentando a utilidade da popu-
lação em benefício da produção capitalista. Apesar do que armam o político
orgulhoso e o bacharel altivo, o licenciamento compulsório das patentes de an-
tirretrovirais não representa a defesa dos valores mais elevados do ser humano
em face dos interesses mesquinhos do capital internacional; trata-se apenas de
outra forma de sujeição, que prolonga a vida e aumenta a saúde das popula-
ções porque precisa delas para o fortalecimento do Estado e para a defesa da
sociedade.
Percebem-se, então, as diculdades existentes na busca de uma res-
posta adequada a essa questão – que sociedade devemos defender? Controle
ou normalização? Ora, se não existe resposta certa, talvez isso seja culpa da
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própria pergunta, que pressupõe a necessidade de nos alistarmos em um dos
exércitos em combate, ignorando a multiplicidade de forças que também fazem
parte desse campo de batalha – que não é binário, mas plural. Desse modo, a
única resposta razoável a essa interpelação chantagista é a recusa de qualquer
resposta, a negação da própria pergunta, seguida da armação da resistência
inarredável em face de todas as formas de sujeição.
É inútil questionar se as sociedades de controle são mais ou menos li-
beradoras que as sociedades de normalização, ou qual forma de sujeição é a
mais suportável, pois cada um dos dispositivos de poder é simultaneamente e
indissociavelmente liberador e opressor. Defender um deles contra os outros é
defender tanto as suas possibilidades de liberação quanto as suas possibilida-
des de opressão, o que torna a estratégia claramente inadequada. É em cada
um dos regimes que se enfrentam as liberações e as sujeições cotidianas, de
modo que não se deve lutar a favor da segurança e contra o controle, ou vice-
versa, mas contra ambos, por outra disposição de forças que ainda não somos
capazes de conceber. Como arma Deleuze, em frase que, por sua agudeza, já
se tornou lugar-comum:
Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em
cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. Por exemplo, na
crise do hospital como meio de connamento, a setorização, os hospitais-dia, o
atendimento a domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas também
passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros
connamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas (DELEUZE,
1992b, p. 220).
Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas, adequadas ao
terreno sobre o qual se desenrola a luta interminável. Assim, o fundamental não
é a armação de qualquer proposta, mas a negação, a rejeição das práticas de
sujeição, a resistência em face do poder, o repúdio das formas de dominação, e
a recusa em permanecermos sendo aquilo que somos.
Mesmo essa resposta, porém, talvez ainda não seja satisfatória. Pois, se
pode ser razoavelmente fácil compreender a necessidade de se resistir às prá-
ticas de sujeição da sociedade de controle, não parecem tão claros os motivos
e as formas que assume a resistência contra um poder que se exerce sobre
a própria vida. Desse modo, ainda que tenhamos consciência das limitações
da pesquisa cientíca quanto ao seu poder de modicar o equilíbrio de forças
da luta política, e ainda que saibamos que cabe primordialmente aos grupos
sujeitados a tarefa de construir, no decorrer de suas lutas, as estratégias de
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sua própria libertação, assumimos a parcela de responsabilidade que cabe ao
acadêmico e nos aventuramos na missão de tentar compreender de que formas
somos capazes de resistir a um poder que apenas deseja o nosso bem – man-
ter-nos vivos! –, buscando a produção de efeitos de verdade que possam ser
utilizados por aqueles dispostos a travar a batalha.
Para isso, porém, é preciso antes de tudo ter em mente o que talvez te-
nha sido a principal contribuição de Foucault para a teoria do poder: a ideia de
que o poder só existe em ato, como relação de forças (2000, p. 21). Na medida
em que se compreende, com Foucault, a natureza irrevogavelmente relacional
do poder, percebe-se que todo exercício de poder é também possibilidade de re-
sistência ao poder. Não há poder sem recusa em potencial; anal, se o poder é
um enfrentamento de forças, a própria armação de que existe uma relação de
poder já pressupõe o exercício da força em ambos os lados dessa relação. Não
faz sentido a ideia de que uma das partes da relação “possui” poder, enquanto a
outra parte apenas “se submete” ao poder por ela exercido; o poder é relação de
forças, o que signica possibilidade semelhante de determinar a própria conduta
e a dos outros para todos os que participam dessa relação. Dessa forma, toda
relação de poder já contém, em si, as suas possibilidades de resistência.
A existência de relações de poder em toda a sociedade cria possibilida-
des de resistência innitas, na medida em que o equilíbrio provisório de forças
vigente em um determinado momento sempre pode ser desestabilizado, rever-
tido em favor daqueles que anteriormente se encontravam submetidos. Não há
relação de poder sem resistências, e elas são tanto mais ecazes quanto mais
se formem ali mesmo onde o poder se exerce. Se o mero exercício do poder
já suscita uma perspectiva de resistência, como possibilidade de oposição es-
tratégica às forças de sujeição, devemos procurar nas próprias manifestações
do poder os interstícios e fraturas por meio dos quais pode ser possível alguma
forma de liberação. É na própria relação de poder que se encontram as formas
de resistência a ele.
Assim, se as práticas de prevenção e tratamento da Aids veiculam for-
mas de poder que se exercem diretamente sobre a vida, é na própria vida que
deveremos encontrar o ponto de partida de toda resistência. É o que Foucault
já havia percebido:
E contra esse poder ainda novo no séc. XIX, as forças que resistem se apoiaram
exatamente naquilo sobre que ele investe – isto é, na vida e no homem enquanto
ser vivo. Desde o século passado, [...] o que é reivindicado e serve de objetivo às
grandes lutas [que põem em questão o sistema geral de poder] é a vida, entendida
como as necessidades fundamentais, a essência concreta do homem, a realiza-
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ção de suas virtualidades, a plenitude do possível. Temos aí um processo bem
real de luta: a vida como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e
voltada contra o sistema que tentava controlá-la (FOUCAULT, 1999, p. 136).
Mas não devemos nos enganar, acreditando que estamos resistindo ao
poder sobre a vida com a mera aceitação das práticas que incidem sobre nos-
so corpo e nos fazem permanecer vivo. Permanecer vivo não é resistir, mas
consentir cegamente com o exercício do poder e cumprir a função que nos é
atribuída pelo dispositivo político. Resistir é voltar a vida contra o poder, ar-
mando a liberdade da potência criadora da multidão contra as regulamentações
exercidas sobre o indivíduo e a população.
Submeter-se ao tratamento e às prescrições de conduta que asseguram
a proteção da vida em face dos riscos de contaminação é aceitar a sujeição im-
posta pelo dispositivo de poder, e se tornar útil para os objetivos por ele estabe-
lecidos (a inserção na produção, o fortalecimento do Estado ou o incremento do
consumo); no entanto, arrancar do Estado aquilo de que necessitamos para a
vida que desejamos é, sim, uma forma de resistência, uma tentativa de reverter
a relação de forças em nosso benefício, de assegurar a obtenção de recursos
que nos permitam nos autoconstituirmos como sujeitos.
Desse modo, um exemplo de resistência em face do dispositivo da Aids é
a ação organizada dos movimentos de combate à Aids, quando exigem ações
governamentais que eles próprios consideram necessárias para viverem suas
vidas como obras de arte. Quando requerem a inclusão de medicamentos mais
atuais ao coquetel distribuído gratuitamente, exigindo o tratamento cirúrgico e
medicamentoso da lipodistroa, postulando o tratamento de outros efeitos co-
laterais causados pelos antirretrovirais etc., eles não estão aceitando a sujei-
ção imposta pelo dispositivo de segurança, mas usurpando o vocabulário desse
dispositivo em nome da própria resistência – verdadeiramente “tomando a vida
ao pé da letra e voltando-a contra o sistema que tentava controlá-la”. Assim, re-
territorializam as práticas discursivo-políticas que prescreviam o prolongamento
da vida e lhe atribuem uma função no interior das práticas de resistência, trans-
formando-as em instrumentos do cuidado de si.
Outro exemplo de resistência é o caso do grupo conhecido como os “re-
beldes da Aids”, surgido em 1991 e liderado por Nozipho Benghu, que questio-
nava a ecácia dos antirretrovirais por acreditar que o verdadeiro causador da
doença não seria o vírus, mas a desnutrição crônica e os próprios medicamen-
tos prescritos. Assim, substituiu o tratamento antiviral por um regime alimentar
que chegou a aumentar a sua contagem de leucócitos, mas acabou falecendo
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de Aids aos 32 anos, em maio de 2006.
Embora possa ser questionável a recusa do tratamento, até mesmo em
termos de ecácia prática, não há como permanecer impassível quando a sin-
gularidade se insurge, intransigente, em face do poder. Trata-se de situação
semelhante à descrita por Foucault, no artigo em que ele procura responder à
pergunta sobre a utilidade da revolta:
Um delinquente arrisca sua vida contra castigos abusivos; um louco não suporta
mais estar preso e decaído; um povo recusa o regime que o oprime. Isso não
torna o primeiro inocente, não cura o outro, e não garante ao terceiro os dias
prometidos. Ninguém, aliás, é obrigado a ser solidário a eles. Ninguém é obrigado
a achar que aquelas vozes confusas cantam melhor do que as outras e falam da
essência do verdadeiro. Basta que elas existam e que tenham contra elas tudo o
que se obstina em fazê-las calar, para que faça sentido escutá-las e buscar o que
elas querem dizer. Questão de moral? Talvez. Questão de realidade, certamente.
Todas as desilusões da história de nada valem: é por existirem tais vozes que o
tempo dos homens não tem a forma da evolução, mas justamente a da “história”
(FOUCAULT, 2004a, p. 80).
A recusa de Nozipho Bengu em se submeter aos interesses dos labora-
tórios farmacêuticos não a curou da Aids, nem a manteve viva por mais tempo
do que os antirretrovirais talvez pudessem fazer. No entanto, o movimento com
que ela se levanta, diz “Não obedeço mais!” e joga na cara do poder o risco de
sua própria vida é irredutível, pois nenhum poder é capaz de torná-lo absoluta-
mente impossível. É em casos como esse que a resistência ao poder sobre a
vida assume o seu caráter mais extremo, pois prefere o risco da morte à certeza
de ter de obedecer.
Deve-se ressaltar, porém, que não era a morte o objetivo da linha de fuga
que Bhengu procurou traçar. A morte era apenas mais um de seus perigos, um
risco que ela optou por correr para escapar do espaço estriado do biopoder. Foi
em nome de uma vida mais saudável que ela abandonou os antirretrovirais, foi
para colocar em prática um discurso que armava a possibilidade de cura que
ela optou por outro tratamento. Como esclarecem Deleuze e Guattari, a morte
ocorre quando a linha de fuga nalmente consegue atravessar o muro e escapar
do espaço estriado, mas, em vez de alcançar seu objetivo, conectar-se com ou-
tras linhas e aumentar suas valências a cada vez, transforma-se em “destruição,
abolição pura e simples, paixão de abolição” (DELEUZE E GUATTARI, 1999,
p. 109). As linhas de fuga sempre ameaçam abandonar suas potencialidades
criadoras para se transformarem em linha de morte, em linha de destruição pura
e simples.
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As práticas de resistência que devemos buscar não se confundem com os
seus riscos; o objetivo não é a morte, mas a criação de um espaço liso no qual
a vida não seja estriada, regulamentada, mas pura potência criadora, resistindo
ao poder sobre a vida com o poder da própria vida, e opondo à biopolítica das
populações uma “biopolítica da multidão”. Uma biopolítica da multidão signica
a vontade de armar a positividade de nossa resistência, a potência criadora da
vida e da subjetividade, e o poder como capacidade de criar o novo a partir da
destruição total do antigo (REVEL, 2003, p. 60). As linhas de fuga devem recu-
perar a potência criadora da multidão, que, opondo sua vida em estado bruto à
vida estraticada e regulada das sociedades de normalização, torna-se capaz
de dissolver a “população” e instaurar em seu lugar um novo espaço liso, pleno
de potências criadoras da vida. Evidentemente, os espaços lisos por si sós não
são liberadores. Mas é neles que a luta se desloca e que a vida reconstitui seus
desaos, modicando os adversários (DELEUZE e GUATTARI, 2002c, p. 214).
É nos espaços lisos que se pode criar e recriar a realidade em que vivemos.
Não é necessário, portanto, reproduzir essa resistência extrema para re-
cusar a incidência das práticas de poder sobre a vida. Basta substituir a série de
prescrições por um conjunto de práticas éticas que permitam ao sujeito se au-
toconstituir como sujeito moral, transformando a sua vida em obra de arte pes-
soal. É possível transformar o código de conduta estabelecido pelo programa
de combate à Aids em uma estética da existência, no interior da qual o sujeito
encare os cuidados necessários para evitar a contaminação e assegurar a sua
saúde como um olhar sobre si mesmo, um cuidado de si que o constitui como
sujeito responsável por suas opções éticas. A moral de renúncia encontrada nos
regimes alimentares, nas tomadas de medicamentos, nos exercícios físicos e
na série de cuidados prescritos deve ser transformada em uma prática de auto-
formação, através da qual o sujeito se torne capaz de se elaborar, de se trans-
formar, e de atingir um certo modo de ser, em uma prática reetida da liberdade.
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