Hegemonia e contra-hegemonia na globalizacao do direito: a "advocacia de interesse publico" nos Estados Unidos e na America Latina/Hegemony and counter-hegemony in legal globalization: "public interest law" in the US and Latin America.

Autorde Sa e Silva, Fabio

Introducao

Em tempos como o que vivemos, quando, mais uma vez, "tudo o que e solido" parece se "desmanchar no ar" (Marx 1998; Berman 1982), a estatura de um autor e de sua obra se deve medir tambem e, sobretudo, por sua capacidade de propor abordagens que ajudem a comunidade cientifica--e a sociedade como um todo--a se posicionar melhor diante daquilo que, sob inumeras perspectivas, emerge como novo. O artigo intitulado "Podera o direito ser emancipatorio?", publicado por Santos ha cerca de 10 anos (Santos 2002b e 2003), e seguramente uma dessas contribuicoes proprias de e para momentos de transicao.

Em trabalhos anteriores, Santos ja havia oferecido enorme contribuicao para qualificar o debate sobre o direito. Preocupado menos em definir o que e direito e mais em compreender como ele funciona, Santos decompos esse elemento social em seus mais elementares aspectos operacionais e o definiu: (a) como um mosaico de retorica, violencia e burocracia, em que a prevalencia de um ou de outro elemento varia conforme a vocacao democratica da sociedade em que opera (Santos 1995 e 2004c) e (b) como o "corpo de procedimentos regularizados e padroes normativos, considerados justificaveis num dado grupo social, que contribui para a criacao e prevencao de litigios, e para a sua resolucao atraves de um discurso argumentativo, articulado com a ameaca de forca" (Santos 2001). Essa decomposicao permitiu perceber que existe uma infinidade de formas pelas quais o direito pode se manifestar; tudo a depender da situacao em que isso ocorre. A reducao que as mais variadas escolas de direito (do positivismo ao realismo) fizeram para torna-lo equivalente a leis e Tribunais esta, pois, muito aquem do que o direito significa sociologica e politicamente. Assim, o direito pode envolver grau maior ou menor de retorica, violencia, e burocracia, em um infinito de possibilidades de articulacao qualitativa e quantitativa, dentre as quais ele distingue a covariacao, a combinacao geopolitica e a interpenetracao estrutural (cf. especialmente Santos 2004c) (1).

Alem de retomar e aprofundar algumas dessas teses, "Podera o direito ser emancipatorio?", resituou a problematica que lhes e de fundo a partir de novos desafios--tanto no plano teorico como no plano politico--, e inaugurou uma agenda de investigacao complexa e ambiciosa que, por isso mesmo, talvez ainda nao tenha sido absorvida e processada em sua plenitude pela academia e por outras comunidades interessadas no tema que, desta vez, o autor elegeu como central: a relacao entre o direito e a possibilidade de construcao de uma sociedade melhor. Revisitar esse escrito, portanto, implica nao apenas retomar-lhe os principais fundamentos e proposicoes, mas tambem verificar em que medida eles continuam uteis para iluminar esforcos atuais e, eventualmente, para orientar esforcos futuros de pesquisa e reflexao.

Buscando equilibrar-se entre tais objetivos, este texto esta dividido em quatro secoes, alem desta introducao. A primeira visa a examinar os aspectos mais gerais do pensamento de Santos, sem os quais a reflexao por ele lancada em "Podera o direito ser emancipatorio?" dificilmente podera ser bem compreendida. A segunda sintetiza os argumentos e problemas desenvolvidos com maior detalhamento naquele artigo, com especial destaque para a maneira pela qual ele articula a relacao entre hegemonia e contra-hegemonia na construcao social de praticas juridicas "cosmopolitas" ou "subalternas". A terceira examina de maneira mais concreta os termos desta relacao, tendo como fio condutor uma analise comparativa do "direito de interesse publico" (DIP) nos Estados Unidos e na America Latina. A quarta sintetiza os argumentos mais centrais deste texto e sugere desafios para a pesquisa socio-juridica interessada em seguir enfrentando a questao que deu titulo ao seminal artigo de Santos.

  1. "A questao em seu contexto" (2): "Podera o direito ser emancipatorio?" no conjunto da obra de Santos

    O argumento central da obra de Santos, a esta altura ja bem conhecido pelo publico que o acompanha, e de que vivemos num momento em que a modernidade revela o seu colapso e, por isso, suscita a transicao para outro paradigma de organizacao da vida social que, a falta de melhor alternativa, ele tem designado de pos-moderno.

    Para muitos, a ideia de crise da modernidade pode soar exagerada porque, a primeira vista, os esquemas sociais, politicos e cognitivos modernos estao funcionando a pleno vapor. Todavia, Santos nao fala em crise no sentido que correntes sociologicas funcionalistas podem querer emprestar a palavra. Ao contrario, para o autor, a crise reside na dificuldade de se compatibilizar a plena (as vezes ate excessiva) realizacao de algumas promessas modernas, com a insuficiente (as vezes ate insignificante) realizacao de outras. Trata-se, portanto, de uma crise da possibilidade de "gestao reconstrutiva dos excessos e deficits da modernidade" (2001: 51).

    Na base dessa conclusao esta um entendimento muito proprio acerca da modernidade, assim como de seu desdobramento historico. Santos compreende a modernidade como um vasto, ambicioso, e complexo projeto sociocultural, voltado ao "desenvolvimento harmonioso e reciproco do pilar da regulacao e do pilar da emancipacao" mediante a racionalizacao da vida coletiva e individual (Santos 2001). Cada pilar opera em nivel epistemologico e societal a partir de dispositivos e instituicoes como o direito, a ciencia e a politica. Ao mesmo tempo, Santos ressalta que a trajetoria historica da modernidade--e, em especial, a sua confluencia com o capitalismo, que, a partir dos anos 1980, entra em uma fase "desregulada"--deu ensejo a um desequilibrio irreversivel entre aqueles dois pilares: enquanto no plano sociopolitico o principio do mercado sobrepos-se aos principios do Estado e da comunidade; no plano epistemologico a racionalidade cognitivo-instrumental das ciencias e da tecnologia--agora transformadas em fatores de producao--sobrepos-se a racionalidade estetico-expressiva das artes e moral-pratica do direito. Hipercientificizada e hipermercadorizada, a modernidade tardia passa a apresentar limites estruturais consideraveis para realizar, ou mesmo para seguir enunciando suas promessas fundantes de "liberdade, igualdade e fraternidade". Tanto assim que, de par com o "aumento exponencial das desigualdades sociais entre paises ricos e paises pobres e entre ricos e pobres no interior do mesmo pais (3)" (Santos 2003a:13), cresce tambem a sensacao de que nao ha alternativas factiveis para a organizacao da sociedade fora dos canones cada vez mais estreitos do capitalismo e das democracias liberais. A reversao dessa trajetoria, segundo Santos, nao podera ser alcancada no interior da cultura, do conhecimento e das instituicoes modernas. E nesse ponto que aparece a ideiachave de transicao paradigmatica.

    No plano epistemologico, o olhar de Santos sobre essa transicao foi consolidado no artigo Para uma sociologia das ausencias e uma sociologia das emergencias (Santos 2004a). Nesse escrito, partindo da constatacao dos limites da forma do modo dominante de conhecer na modernidade (4), Santos advoga em favor de uma racionalidade cosmopolita, a ser alcancada por tres expedientes. O primeiro, ao qual denomina de sociologia das ausencias, e voltado a identificar as (muitas) experiencias cognitivas e organizativas da sociedade desperdicadas na modernidade, bem como a discutir as condicoes nas quais elas podem se constituir como alternativa aos modelos atualmente hegemonicos, dando ensejo a uma "expansao do presente". O segundo, ao qual Santos denomina de sociologia das emergencias, e voltado a investigar em que medida tais alternativas podem ser inseridas em um horizonte concreto e contemporaneo de possibilidades, operando, assim, uma "contracao do futuro".

    Acompanhando a multiplicacao de experiencias disponiveis e possiveis propiciada por essas duas formas de sociologia insere-se o trabalho de "traducao"--um procedimento voltado nao tanto "a identificar novas totalidades, ou de adotar outros sentidos para a transformacao social, como a propor novas formas de pensar essas totalidades e de conceber esses sentidos" (Santos 2004a: 806). O trabalho de traducao, assim, assegura Santos,

    Visa esclarecer o que une e o que separar os diferentes movimentos e as diferentes praticas, de modo a determinar as possibilidades e os limites da articulacao ou agregacao entre eles. Dado que nao ha uma pratica social ou um sujeito coletivo privilegiado em abstrato para conferir sentido e direcao a historia, o trabalho de traducao e decisivo para definir, em concreto, em cada momento e contexto historico, quais as constelacoes de praticas com maior potencial contrahegemonico (Santos 2004a: 806). Em suma, a epistemologia proposta aposta em nossa capacidade de transformar a realidade a partir do resgate de experiencias marginalizadas e da interacao dialogica entre estas e nosso modo de ser--ou entre estas e cada uma delas--, com vistas a identificar alternativas plurais e solidarias para o futuro nos mais variados espacos sociais (5). "E uma utopia intelectual que torna possivel uma utopia politica" (2001:167).

    No plano sociopolitico, as analises de Santos estao marcadas pela "globalizacao" e pela serie de transformacoes a que ela tem dado ensejo, em nivel mundial, no tocante aos contextos, objetivos, meios e subjetividades das lutas sociais e politicas. A "globalizacao" e o ponto alto do regime de acumulacao do capital inaugurado com o advento do "capitalismo desregulado" e da consequente sobreposicao estrutural de processos de exclusao a processos de exclusao que marca a crise do paradigma moderno. Mas embora esta forma de globalizacao venha sendo hegemonica, anota Santos, ela nao e a unica e, de fato, tem sido crescentemente confrontada por outra:

    Uma globalizacao alternativa, contra-hegemonica, constituida pelo conjunto de iniciativas, movimentos e organizacoes que, por intermedio de vinculos, redes e aliancas...

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