A hipervulnerabilidade do consumidor de serviços financeiros digitais

AutorGeraldo Frazão de Aquino Júnior
Ocupação do AutorDoutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco ? UFPE
Páginas43-64
A HIPERVULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR
DE SERVIÇOS FINANCEIROS DIGITAIS
Geraldo Frazão de Aquino Júnior
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Graduado e
Mestre em Direito e em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal de Pernam-
buco – UFPE.
Sumário: 1. Considerações iniciais. 2. Breves comentários acerca dos contratos bancários.
3. O consumidor de serviços nanceiros e sua hipervulnerabilidade frente à digitalização. 4.
Considerações nais. 5. Referências.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os novos paradigmas contratuais, calcados nos princípios sociais (função social do
contrato, boa-fé objetiva e equivalência material do contrato), amparam os contratantes
na medida em que proporcionam o equilíbrio entre as partes mediante a disciplina das
cláusulas contratuais gerais, pela teoria da imprevisão, pela resolução por onerosidade
excessiva e pela garantia deferida ao contratante vulnerável, fundamentados na boa-fé
objetiva que fornece critérios interpretativos e é fonte de deveres e de limitações para
as partes. Privilegia-se, fundamentalmente, a tutela da personalidade humana em seu
mais amplo espectro, exsurgindo o princípio da dignidade humana como balizador
estruturante e conformador das relações sociais.
Não é sem razão que a Constituição Federal, além de consagrar o princípio da igual-
dade, ao lado da liberdade, impõe a erradicação das desigualdades sociais. Entretanto, a
realidade contratual atual tem servido para agravar a marginalização social, na medida em
que muitos dos dogmas oitocentistas ainda persistem e se fazem presentes nas relações
interprivadas atuais, o que vai de encontro aos objetivos fundamentais da República.
Impõe-se a garantia de que os efeitos almejados pelos contratantes não se revelem em
desarmonia com os ditames constitucionais. Nesse contexto, o princípio da igualdade
caminha lado a lado com a função social do contrato para, juntos, concretizarem o pro-
jeto constitucional de redução da pobreza e das desigualdades sociais, reconhecendo, no
contrato, um instrumento emancipatório da pessoa. Nessa linha, a solidariedade social,
como um dos fundamentos da função social, exige equilíbrio no interesse a ser disposto
pelas partes, pois a liberdade de contratar vincula-se estreitamente à igualdade, deven-
do-se buscar a harmonia entre o interesse das partes e a f‌inalidade social do contrato O
equilíbrio das bases econômicas do contrato leva, por consequência, à aproximação entre
os contratantes, mormente no quadro atual em que as relações entre direito, economia
e globalização situam-se em campo de forte tensão em virtude de o contrato continuar a
ser o instrumento por excelência da circulação econômica de bens e serviços.
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No âmbito da circulação econômico-f‌inanceira de bens e serviços, destacam-se os
contratos bancários (relação que tem como objeto a intermediação do crédito), que são,
em regra, não paritários. No esquema clássico do modelo contratual paritário, que pres-
supõe a igualdade de poderes negociais dos contratantes, os mecanismos de intervenção
legislativa ou judicial são, em regra, dispensados. Assume-se que as partes efetivaram
negociações preliminares e possuem completo domínio acerca do conteúdo do quanto
avençado. Nesse ambiente, predominam a tutela dos interesses individuais e a proteção
dos direitos subjetivos das partes. O contrato representa, assim, o esquema formal de
circulação de riquezas por ato voluntário e lícito entre os participantes, em conformidade
com o ordenamento. Segundo Judith Martins-Costa,1
Pode-se, assim, nalmente, conceituar o contrato por seu genótipo como o resultado de uma atividade
comunicativa voluntária e lícita entre sujeitos qualicados como suas “partes”, atividade, essa, expressada
em um acordo, determinado ou determinável temporalmente, voltado, teleológica e vinculativamente,
para a produção de efeitos jurídicos primordialmente entre as suas partes, e cuja função é a de fazer
circular a riqueza entre patrimônios, transformando a situação jurídico-patrimonial dos envolvidos e
gerando-lhes uma expectativa ao cumprimento garantida pelo Ordenamento, segundo os seus critérios
técnicos e valorativos.
Nos contratos não paritários, como os bancários, principal instrumento de que
fazem uso os usuários de serviços f‌inanceiros, presume-se que não há equivalência no
que concerne aos poderes negociais das partes. Ademais, a proteção jurídica direcionada
a determinadas partes pode ser tutelada mediante intervenção legislativa ou judicial,
impondo-se o dever de proteção desses interesses. Neles, ressaltam a tutela dos interesses
sociais e a proteção do contratante vulnerável, abarcando deveres e responsabilidades
mais amplos e que não foram contraídos ab initio.
Quando o usuário de serviços f‌inanceiros se volta à seara digital, ressalta-se a
ampliação – possibilitada pela internet – do leque de sujeitos com os quais é possível
interagir e do arsenal de produtos disponíveis. Nesse ambiente, a vulnerabilidade do
consumidor não apenas se mantém, mas aprofunda-se2. No espaço virtual, continuam
existindo grandes diferenças econômicas entre fornecedores e consumidores, razão
pela qual as normas de proteção delineadas para proteger o consumidor no mundo real
também são aplicáveis no mundo virtual, tendo em vista que a f‌inalidade de neutralizar
essa diferença deve coexistir nos dois ambientes.
Essa dif‌iculdade de entendimento também se estende para o próprio ambiente
tecnológico. O consumidor opera em um meio que não é o seu natural e, por conse-
guinte, não consegue compreender todos os meandros do espaço que o envolve. Essa
nova realidade apresenta particularidades com as quais não está afeito e a complexidade
da tecnologia o envolve como numa teia, ocultando-lhe aspectos que só permanecem
visíveis na esfera de controle do fornecedor.
Em razão de sua importância, este artigo volverá o olhar para o ambiente digital
em que são processados os serviços f‌inanceiros e a especial vulnerabilidade a que estão
1. MARTINS-COSTA, Judith. Contratos. Conceito e Evolução. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore
(Coord.). Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, 2011, p. 60 (grifos no original).
2. LORENZETTI, Ricardo Luis. Comércio eletrônico. São Paulo: Ed. RT, 2004, p. 363.
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