Hipótese de incidência do ICMS e o conceito de mercadoria

AutorLuciano Garcia Miguel
Páginas105-146
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5. HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA DO ICMS E O
CONCEITO DE MERCADORIA
A evolução da tributação está indissociavelmente ligada
à evolução dos demais sistemas sociais. Embora a ideia básica
da tributação (subtração de uma parcela da riqueza indivi-
dual para custeio do Estado) não tenha se alterado no decor-
rer do tempo, a forma como essa atividade se desenvolve varia
profundamente dependendo da época e da cultura.
As diversas formas como a riqueza se exterioriza no
mundo compõem as bases sobre as quais tradicionalmente
incidem as exações tributárias. Contudo, o grau de desenvol-
vimento político, social, científico e econômico que as socie-
dades vivenciam no decorrer da história influencia de forma
dramática como essas bases são exploradas.
Normalmente, a atenção se volta ao tema do dimensio-
namento da carga tributária, que, é verdade, tem uma grande
variação a depender da época e do modelo político, social e
econômico de determinada sociedade. Uma carga tributária
elevada pode indicar um país que tenha adotado alto grau de
desenvolvimento social, o que demanda uma grande soma de
recursos para a prestação dos mais diversos serviços públi-
cos ou, ao contrário, apenas uma taxa elevada de extração da
riqueza privada sem essa contraprestação. Uma baixa carga
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LUCIANO GARCIA MIGUEL
tributária, por seu turno, também pode ser resultado de uma
opção desenvolvimentista ou do desaparelhamento do Estado.
Sociedades em que o poder político é exercido de forma de-
mocrática costumam ter sistemas estruturados de forma a rea-
lizar a tributação com base em critérios que privilegiam a jus-
tiça social. A justiça da tributação está presente, por exemplo,
na tributação progressiva do imposto sobre a renda (alíquotas
que crescem proporcionalmente ao montante da renda ou lucro
percebido em determinado período), na isenção dos impostos
sobre a propriedade, ou sobre sua transmissão, de bens de pe-
queno valor, na seletividade na tributação das transações com
bens e serviços (alíquotas proporcionalmente mais baixas para
bens e serviços considerados essenciais e alíquotas mais eleva-
das para bens e serviços considerados supérfluos), etc.
Por seu turno, sociedades menos inclusivas, cujo poder po-
lítico está centralizado nas mãos de poucas pessoas, ou mesmo
em um único governante, refletem o baixo grau de desenvolvi-
mento político e social em sistemas tributários direcionados ex-
clusivamente para a extração da riqueza individual para satis-
fazer a necessidade do governante e da elite que em torno dele
orbita, com pouca preocupação com os mencionados critérios
de justiça. Na verdade, em determinadas situações, a tributa-
ção é totalmente arbitrária, como no antigo Reino do Congo,
em que se relata que havia um imposto “que era coletado sem-
pre que o barrete do rei lhe caia da cabeça”.107
As alterações econômicas também influenciam decisi-
vamente a tributação. Deixando de lado exotismos, como o
caso relatado no Reino do Congo, é fato que a tributação de-
pende da dinâmica da economia, ou seja, a importância que
107. ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James. Por que as nações fracassam. As ori-
gens do poder, da prosperidade e da pobreza. São Paulo: Elsevier, 2012, p. 69. Os mes-
mos autores relatam que, não obstante estarem assoladas por uma pobreza miserá-
vel, “as instituições extrativistas congolesas seguiam sua própria e impecável lógica:
garantiam o enriquecimento vertiginoso de umas poucas pessoas detentoras do po-
der político. No século XVI, o rei do Congo e a aristocracia dispunham de meios para
importar artigos de luxo europeus e viviam cercados de escravos” (ibid., p. 69).
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O ICMS E OS CONCEITOS DE MERCADORIA E SERVIÇO DE COMUNICAÇÃO
determinadas bases assumem no desenrolar da história, a for-
ma como transações e negócios são realizados, etc.
As bases do sistema tributário brasileiro foram conce-
bidas no contexto de uma ordem econômica que foi profun-
damente alterada. Em meados dos anos sessenta do século
anterior, vivíamos em uma economia fechada, que tinha na
produção e comércio de bens a sua principal atividade.
Não é superlativo dizer que, entre as inovações tecnológi-
cas que surgiram desde então, a massificação da informática,
e especialmente a internet, impuseram uma profunda altera-
ção nas relações sociais e econômicas. A destruição criativa,
a que se refere Joseph Schumpeter, poucas vezes operou de
forma tão dramática na história da humanidade.108
Atualmente, vivemos em uma economia globalizada,
marcada pelo rápido desenvolvimento tecnologico, inserida
em um ambiente informatizado e conectado pela rede mun-
dial de computadores. A produção de bens, embora ainda te-
nha grande importância econômica, não tem mais a primazia
de outrora. Hoje é a detenção de novas tecnologias que dita o
sucesso ou o insucesso das nações.
O ICM, que posteriormente se tornou ICMS, foi concebido
em um contexto social e econômico que foi, portanto, profun-
damente alterado. Estruturado como imposto apto a incidir so-
bre o tráfico de mercadorias e, posteriormente, tendo agregado
à sua base a tributação de duas espécies de serviços, a opera-
cionalização do ICMS está baseada em conceitos que hoje o in-
térprete encontra dificuldade para adaptar à nova realidade.
Novos modelos negociais, em grande parte baseados no
ambiente da internet, surgem e fenecem com uma velocidade
cada vez maior, criando uma distância abissal entre as relações
deles advindas e as normas jurídicas que devem discipliná-las.
108. SHUMPETER, Joseph Aloïs. Capitalism, Socialism, and Democracy. Harper
Perenial Modern Thought Edition. New York: Harper Perenial, 2008.

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