Sobre a história da ciência histórica

AutorMichael Stolleis
Páginas21-62
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capitulo II
sobre a história da
ciência histórica
Para enxergar mais claramente essas perguntas,
recomenda-se interrogar sobre a história científica dessa
própria disciplina. Naturalmente, ela está presa ao
mesmo dilema da descoberta de uma estrutura narrativa
plausível de toda historiografia, mas a sua especificidade
está na posição do observador. Ele observa, de certo
modo alheio, como diferentes e sucessivas gerações
construíram a sua própria imagem, a qual é útil, de
alguma maneira, para narrar. A história da ciência
observa narrativamente os narradores. Ela não pode se
desprender das suas perturbações, mas pode se colocar
à margem do campo de batalha e manter a visão sobre
o tumulto.
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MICHAEL STOLLEIS
2.1 SOBRE A HISTÓRIA DA CIÊNCIA
HISTÓRICA
A filosofia da história do idealismo alemão e
da historiografia nela inspirada chegou a um fim com
a morte de Hegel (1831). Ainda que alguns publicistas,
penalistas e civilistas seguissem empregando o voca-
bulário hegeliano, as forças antifilosóficas eram bem
mais poderosas. Exigiam mais “realismo”, mais forte
atenção aos “fatos”, tomar partido pelo “positivismo”
e rejeitar uma filosofa da história especulativa. O que se
reconhecia então eram leis de desenvolvimento rigo-
rosamente orientadas pelas ciências da natureza e
comparáveis às de Darwin. Isso se vinculava a uma
crença no “progresso” que pode representar uma nova
metafísica, mas no primeiro plano se situava uma ad-
miração pelo “real”, sobretudo depois da desilusão
política de 1848.
Essa tendência, o “historicismo” da ciência
histórica, conduziu a um deslumbrante esforço cole-
tivo de publicação crítica das fontes. Iniciou-se ainda
em 1819 com a gigantesca empreitada da “Monumenta
Germaniae Historica”, continuando com a publicação
de lápides, moedas, vidrarias, inscrições, dicionários e
gramáticas pelas florescentes associações e academias do
século XIX, até as empreitadas quase industriais de
Theodor Mommesen e Adolf von Harnack. Reconhe-
cendo-se que um positivismo dessa espécie somente
poderia ser levado a cabo com projetos coletivos e de
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CAPÍTULO II - SOBRE A HISTÓRIA DA CIÊNCIA...
longo prazo, aceitou-se o método da divisão industrial
do trabalho. A ciência transformou-se numa “grande
empresa”,5 como ela ainda hoje funciona. Na História
do Direito, trabalharam Mömmsen e Krüger a edição
do Digesto, Emil Friedberg a do Corpus iuris canonicis,
Carl Gustav Homeyer a do Sachsenspiegel. Inumeráveis
documentos medievais e textos de direito erudito foram
publicados, assim como os direitos germânicos, os di-
reitos estatutários das cidades, os costumes locais e
muitas outras fontes.
Mas já no começo do século XIX essa tendên-
cia produziu movimentos contrários. O tom de pes-
simismo cultural do fin de siècle irrompeu as dúvidas:
para que as montanhas acumuladas de fontes? Que
sentido tem a existência do antiquariado? Friedrich
Nietzsche, que, como Jakob Burckhardt, pode ser
evocado em Basileia, escreveu em 1873 a sua famosa
e intemporal reflexão Dos usos e vantagens da história
para a vida e nela denunciou o pensamento histórico
como “mal, achaque e erro do tempo”. Nietzsche es-
tava farto da grande empreitada do historicismo. Em
Assim falou Zaratustra, dez anos depois, ele se despediu
ironicamente dos sábios que ele apenas via partindo
nozes, gerando polvos, tricotando meias para o espí-
rito e fiando intrigas.
5 NOWAK, Kurt; OEXLE, Otto Gerhard (orgs.). Adolf von
Harnack (1851-1930): theologe, historiker, wissenschaftspolitiker.
Göttingen, 2001.

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