A Historia Da Ocupacao Chiquinha Gonzaga: Uma Analise Marxista Do Processo De Conscientizacao Do Sujeito/The History of the Occupation Chiquinha Gonzaga: Towards a Marxist Analysis of the Process of Awareness of the Subject.

AutorFalbo, Ricardo Nery

Introducao

Chiquinha Gonzaga e o movimento popular urbano por moradia que ocupa desde 2003 o antigo predio do Instituto Nacional de Colonizacao e Reforma Agraria (INCRA) no Rio de Janeiro, situado na Rua Barao de Sao Felix, no 110, na zona central da capital fluminense. Neste trabalho, sua historia nao e definida nem por sua evolucao nem por sua cronologia nem mesmo por seus acidentes. Parte-se da ideia de que "nao ha historia sem discurso" e que "discurso e producao de sentidos (ORLANDI, 1990, 14).

Assim, a historia da Ocupacao Chiquinha Gonzaga, ou o discurso que constitui a historia desta Ocupacao, e definida quanto aos sentidos da conscientizacao--e de seu processo - enquanto mecanismo, etapa ou instrumento da pratica politica na formacao e consolidacao da referida Ocupacao. Por outro lado, enquanto "materialidade especifica do discurso" (ORLANDI, 1990, 28-29), a linguagem faz aparecer o sujeito deste discurso.

Aqui, encarnando falas e momentos diversos na historia da Chiquinha Gonzaga, Orlando Costa e o sujeito do discurso e o sujeito da linguagem na historia desta Ocupacao. Com trabalho formal e moradia formal, ele morou de 2003 a 2006 na Chiquinha Gonzaga e desempenhou a funcao de "organizador" quanto aos momentos da formacao e da consolidacao da Ocupacao. Foi na condicao de organizador desta Ocupacao que, em marco de 2018, durante a realizacao de entrevistas semiestruturadas, ele fez duas afirmacoes que permitem pensar o carater problematico da articulacao entre processo de conscientizacao e pratica politica no campo das ocupacoes em geral e da Ocupacao Chiquinha Gonzaga em particular. Primeira: "No meio das discussoes, a gente procurava tambem dar uma conscientizada. Na verdade, a meta era que a gente queria fazer um movimento mais consistente. Entao, a gente procurava conscientizar as pessoas". Segunda: "(...) muita gente ia nas reunioes e depois nao teve coragem de ir [tomar parte da ocupacao] (...)".

Na primeira fala, a linguagem de Orlando Costa traduz principalmente a importancia da conscientizacao das pessoas associada a preocupacao com a fundamentacao e concretizacao da Ocupacao. Na segunda, a linguagem mais parece remeter ou ao desapontamento possivel do sujeito ou a mera constatacao pelo sujeito de uma situacao de fato. O carater problematico da relacao entre processo de conscientizacao (consciencia) e pratica politica (ocupacao) e aqui definido como expressao da linguagem contraditoria e paradoxal do organizador da Ocupacao que procede segundo uma consciencia que e a um so tempo organica (includente) e mecanica (excludente). Que fator principal pode explicar a diferenca entre o numero de pessoas presentes as reunioes publicas de conscientizacao para a Ocupacao e o numero de pessoas que efetivamente compareceram para tomar parte deste movimento? A despeito de seu carater mais formal, este tipo de pergunta permite questionar a relacao entre "conscientizador" e "conscientizado" quanto a natureza deste vinculo.

No discurso de Orlando Costa, a linguagem "a gente" e "as pessoas" garante pensar a existencia de um dualismo como relacao que opoe de forma radical um "nos" - que tem conhecimento, que sabe e sente e que possui historia - a um "eles" - que nao tem conhecimento, que nao sabe e nao sente e que nao possui historia. Nestes termos homogeneizadores e naturalizadores, momentos e dimensoes da pratica da conscientizacao politica objeto do discurso de Orlando Costa podem ter contribuido para a realizacao da Ocupacao Chiquinha Gonzaga de forma paradoxal, com a producao ao mesmo tempo de "inclusao" e de "exclusao" de pessoas das camadas mais populares sem moradia presentes nas reunioes publicas de conscientizacao.

O objetivo deste artigo e investigar a natureza desta relacao e os sentidos do discurso da consciencia de Orlando Costa. Esta investigacao sera conduzida de acordo com as categorias "educador", de Paulo Freire, e "intelectual", de Antonio Gramsci. Para o primeiro, a condicao de teorizacao da experiencia do educando pelo educador consiste em "testar a sua forma dialetica de pensar na praxis com o povo" (FREIRE, 2004, 126). Para o segundo, "o erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado (...), isto e, acreditar que o intelectual possa ser um intelectual (...) mesmo quando distinto e destacado do povo-nacao. (...) nao se faz politica-historia (...) sem essa conexao sentimental entre intelectuais e povo-nacao (GRAMSCI, 1995, 138-139).

Paulo Freire (1921-1997) e Antonio Gramsci (1891-1937) possuem trajetorias politicas parecidas. A tomada e a elevacao da conscientizacao dos "oprimidos" e "subalternos" sao uma das inumeras facetas dos pensamentos que aproximam estes dois "filosofos". O trabalho que realizaram durante suas vidas de conscientizacao das massas aparecia para a elite conservadora e reacionaria de seus mundos com todos os sinais de uma perigosa subversao. Seus pensamentos e atividades contribuiram para o desenvolvimento da conscientizacao e esclarecimento das massas populares e influenciaram pesquisadores e intelectuais em todo o mundo. As formas de repressao e as tentativas de silenciamento de suas vozes e de paralizacao de seus cerebros deixaram marcas na historia de suas ideias e concepcoes de mundo. Eles escreveram suas obras na prisao (Gramsci) ou no exilio (Freire).

Paulo Freire e conhecido principalmente pelo metodo de alfabetizacao de adultos que leva seu nome. Ele desenvolveu pensamento pedagogico, assumidamente politico, com o objetivo de educar e conscientizar o aluno. Isto significou, em relacao aos oprimidos da sociedade, leva-los a entender sua situacao e agir em favor da propria libertacao. Freire fazia parte da classe media pernambucana. No entanto, em sua infancia vivenciou a fome e a pobreza com a crise de 1929, experiencia essa que o levaria a se preocupar com os mais pobres e o ajudaria a construir seu revolucionario metodo de alfabetizacao. Em 1961, tornou-se diretor do Departamento de Extensoes Culturais da Universidade do Recife e, no mesmo ano, realizou junto com sua equipe as primeiras experiencias de alfabetizacao popular que levariam a constituicao do Metodo Paulo Freire. O grupo de que fazia parte alfabetizou 300 cortadores de cana em apenas 45 dias, em 1964, ano em que iniciava a implementacao do seu programa, mas o golpe militar acabou com seus esforcos. Foi encarcerado pelo regime militar como traidor por 70 dias e, em seguida, conheceu a realidade e a experiencia do exilio forcado no Chile. Freire morreu em 1997.

Antonio Gramsci, dirigente e fundador do Partido Comunista Italiano, nasceu em 23 de janeiro de 1891 em Ales, provincia de Cagliari, na Ilha de Sardenha, na parte mais pobre e mais atrasada da Italia. De familia humilde, ele pode, apesar das duras privacoes, realizar seus estudos na Universidade de Turim, onde, em 1915, aderiu ao socialismo. Gramsci organizou conselhos de fabricas e fundou o jornal Ordine Nuovo, que reuniu em seu entorno um grupo de intelectuais. Como secretario-geral do Partido Comunista, ele se elegeu deputado no periodo fascista. Com a opressao desencadeada pelo regime de Mussolini, os mandatos oposicionistas foram cassados, e Gramsci foi preso em 8 de novembro de 1926 e confinado na ilha de Ustica, perto de Palermo. Em seu julgamento, ficaram celebres as palavras proferidas pelo promotor responsavel pela acusacao: "Devemos", dizia aos juizes, "inutilizar por 20 anos esse cerebro perigoso". No carcere, Gramsci descobriu e descortinou a ilusoria "independencia do intelectual" de tipo tradicionalista. Exigiu a formacao de um novo tipo de intelectual, tecnico e cientifico, capaz de organizar o trabalho e a classe trabalhadora. Os sintomas de tuberculose e o receio das autoridades fascistas quanto a criacao de um martir com a morte de Gramsci na prisao determinaram a soltura do autor dos Cadernos do Carcere. Tres dias apos sua liberdade, Gramsci morre em 27 de abril de 1937.

Para esses "educadores e intelectuais" revolucionarios, o processo de conscientizacao e libertacao do "oprimido" pela educacao constitui campo de trabalho em que a teoria e a pratica, a cultura e a politica se confundem, e a pesquisa e a acao teoricas e praticas se misturam com a acao social e a consciencia politica. Com o objetivo de melhor compreender a natureza da relacao que articula o processo de conscientizacao e a pratica politica no campo da historia da Ocupacao Chiquinha Gonzaga, suas principais categorias teorico-praticas ("educador" e "intelectual") serao abordadas e confrontadas com os conceitos "intelectual moderno", de Karl Mannheim, e "homem significativo", de Gregory Lukacs, numa tentativa de "construcao" de uma "lente teorica" que permita "ver" os sentidos do processo de conscientizacao na historia da Ocupacao Chiquinha Gonzaga.

1 - Discursos que Definem a Historia da Ocupacao Chiquinha Gonzaga

"A gente tinha um metodo de trabalho". Esta foi a primeira afirmacao feita por Orlando Costa quando ele comecou a descrever o modo como foi organizada a chamada Ocupacao Chiquinha Gonzaga, onde morou de 2003 a 2006. A organizacao desta Ocupacao pressupos um "sujeito multiplo" de acao e uma estrategia consciente de atuacao.

Na descricao deste sujeito, Orlando recorreu a distincao entre a atuacao do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto em Sao Paulo e os movimentos sociais urbanos de luta pela moradia no Rio de Janeiro: "Ali, [na Chiquinha Gonzaga], foi um processo que tinha muito militante envolvido. Era um pouco diferente do MTST, das coisas la de Sao Paulo, que e um negocio massivo, muita gente, geralmente um terreno. Ali era uma ocupacao menorzinha."

Quanto ao que chamou de "metodo de trabalho", Orlando assim caracterizou o modo de atuacao do "sujeito multiplo": "(...) tem influencia pessoal (...), autonomista. (...) tinha um foco muito grande na organizacao de base, na conscientizacao."

Assim, a historia da Ocupacao Chiquinha Gonzaga e narrada segundo...

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