História do Direito, abordagens feministas e o desafio da exclusão: lições do caso estadunidense

AutorMariana Prandini Assis
Páginas147-157

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(*) Este artigo foi originalmente apresentado à disciplina Historiography & Historical Practice, ministrada pelo professor Oz Frankel, na New School for Social Research, em dezembro de 2009, e foi substancialmente revisado e adaptado para publicação neste livro.

Ver nota 1

1. Introdução

A história do direito estadunidense, assim como sua história social, é um campo caracterizado pela competição entre diferentes abordagens do direito. Como mostram Michael Grossberg2 e Lawrence M. Friedman3, essas abordagens variam desde o uso de métodos empíricos e teorias do comportamento com vistas a entender as respostas jurídicas a mudanças que ocorrem na economia - a conhecida Escola da História do Direito de Wisconsin liderada por James Willard Hurst - até o estudo das conexões entre o direito formal e informal e a análise do direito enquanto instrumento ideológico - campo conhecido como estudos críticos do direito (critical legal studies). Entre esses dois grandes meios de acessar e avaliar o direito em uma perspectiva histórica, situam-se vários outros, dentre eles, a perspectiva feminista, que aplica a categoria das mulheres ou de gênero como um instrumento analítico.

Neste artigo, eu procuro avaliar criticamente a abordagem feminista da história do direito no contexto estadunidense, buscando apontar suas contribuições especialmente quanto a duas dimensões. Primeiro, sua capacidade de revelar a desigualdade oculta e legitimada ou não abarcada pelo direito e, segundo, sua habili-dade de (re)pensar criticamente a aplicação do direito pelas Cortes e as futuras reformas legislativas, pressionando ambas na direção por mudanças que desafiem as desigualdades de gênero. Para tanto, primeiramente, apresento um breve sumário sobre as diferentes abordagens à história do direito existentes atualmente na academia estadunidense. Em seguida, discuto a avaliação feminista do discurso jurídico, suas bases e pressupostos. Essa avaliação é, hoje, um campo conhecido e estabelecido na academia, chamado de teoria feminista do direito (feminist legal theory), que fornece as principais orientações para a produção acadêmica feminista no campo da história do direito. Na terceira parte, examino três diferentes trabalhos que avaliam a história do direito estadunidense a partir de uma perspectiva de gênero e/ou das mulheres, nas seguintes áreas: a Revolução pela Independência dos EUA e o surgimento dos direitos de privacidade; a história do direito de família estadunidense; e a Décima Nona Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América.4

Ao final, procuro tanto demonstrar os limites e equívocos de uma história do direito que não leva em consideração problemas de gênero quando examina a produção legislativa e sua aplicação pelos órgãos jurisdicionais, quanto enfatizar a relevância de se analisar o Direito desde uma perspectiva mais ampla. Tal perspec-

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tiva pressupõe não apenas a avaliação dos textos e instituições jurídicas formais, mas também as subjacentes relações sociais e discursos que moldam e legitimam os papéis de gênero.

2. Os estudos de história do direito: uma visão geral

Na década de 1950, na universidade de Wisconsin, James Willard Hurst fundou uma nova escola de história do direito caracterizada, como descreve Michael Grossberg, "pelo uso de métodos empíricos e teorias de comportamento para estudar a resposta do Direito à mudança econômica"5. Os principais tópicos pesquisados por essa tradição, que continuaram sendo paradigmáticos até a década de 1970, foram as atividades do mercado e o direito privado das relações econômicas. Em adição, as ferramentas empregadas pelos estudiosos guiados por Hurst eram principalmente "análise de grupo de interesse, avaliações quantificadas de registros de julgamentos, e modelos de ator racional".6

Especialmente em razão dos métodos empregados, essa tradição foi posteriormente identificada por sua imagem do direito como um "espelho da sociedade": o conjunto das normas legais estabelecidas em um momento particular foi representado como um instrumento racional que grupos específicos da sociedade poderiam usar para atingir seus propósitos econômicos.7 Como demonstrado por Friedman, Hurst na verdade "trouxe vida para o campo",8 já que, antes dele, durante o primeiro período da história do direito estadunidense, a disciplina era caracterizada por estudos de doutrina limitados, que tratavam o sistema jurídico como uma entidade autônoma e nunca levavam em consideração variáveis externas ao examinarem a história jurídica. Assim, é inegável que essa tradição contribuiu, em grande medida, para uma importante mudança teórica por abordar o direito não como um conjunto de leis isoladas dadas ao ser humano, mas como um produto das lutas presentes em uma sociedade histórica e geograficamente localizada, particularmente aquelas caracterizadas pelos componentes econômicos.9

O declínio dessa abordagem no campo da história do direito acontece nas décadas seguintes, devido à emergência de novos tópicos de estudo, como gênero, raça e urbanização. Outra importante questão que também contribuiu para a decadência da abordagem de Wisconsin foi metodológica: novos métodos e técnicas foram tomados emprestados das tradições de ciências sociais divergentes, como a literatura crítica pós-moderna, a teoria feminista e a antropologia cultural10, sendo então aplicados ao estudo do direito como um objeto histórico ou como uma fonte de evidências históricas.

A partir de todas essas inovações e críticas, duas grandes abordagens surgiram no campo da história do direito e ainda desempenham um importante papel nos debates atuais: a tradição neo-Wisconsiana e os historiadores e historiadoras associados aos estudos críticos do direito. O primeiro, como o nome já sugere, afasta-se da herança da escola de Wisconsin, mas mantém o "foco nas relações comerciais, a dependência na ciência social behaviorista e a tendência de enfatizar fatores causais externos para explicar a mudança jurídica".11

Comparada com sua antecessora, essa nova abordagem avançou pela incorporação de nova problemáticas, como raça e gênero, pela análise do direito como um instrumento simbólico e ideológico e pela iniciativa de escrever a história da cultura jurídica estadunidense. Mesmo assim, essa escola conservou uma definição positivista de direito "como emanações da ordem jurídica formal"12, desconsiderando todos os discursos e práticas jurídicas que existem fora do direito produzido pelo estado. Um dos mais proeminentes trabalhos ligados a essa tradição é, de acordo com Grossberg, "The Magic Mirror", escrito por Kermit Hall na década de 1980.13

A segunda tradição que surgiu como uma rejeição à escola de Wisconsin é ligada ao movimento iniciado

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na década de 1970, conhecido como estudos críticos do direito (Critical Legal Studies - CLS). Em evidente rejeição a uma perspectiva positivista e objetiva do direito, os acadêmicos e acadêmicas alinhados à CLS negavam, de forma explícita, as ideias de justiça, neutralidade política, coerência e previsibilidade que eram atribuídas à ordem jurídica estadunidense. Ao contrário, sustentavam a ideia de direito como um instrumento de opressão e manutenção do status quo. Para eles e elas, o direito representava nada mais do que uma ferramenta para legitimar "distribuições específicas de riqueza e poder"14 dentro da sociedade, para desvantagem de minorias e grupos subordinados.15 Com o objetivo de endereçar essas duras críticas ao sistema jurídico e seus modos de funcionamento, esses estudiosos e estudiosas valeram-se dos "métodos pós-modernos, especialmente da análise textual".16 Fazendo isso, foram capazes de desvelar um enorme campo de pesquisa que tomou como um objeto de análise não apenas o sistema jurídico formal, mas também as regras informais que emergiam da sociedade ou, em outras palavras, os discursos jurídicos de oposição e os aspectos sociais e políticos subjacentes às lutas jurídicas.

Como exposto por Grossberg, "entre essas duas abordagens existe uma variedade de outras"17, mas todas compartilham uma hipótese em comum: "a lei importa na sociedade, e importa muito"18, porque ela funciona como um mito, sancionando a grande maioria das estruturas sociais. Entre essas diversas aproximações do sistema jurídico se encontra a análise feminista do direito e da história do direito. Se traçarmos uma linha e situarmos a tradição neo-Wisconsiana em um dos extremos e os historiadores e historiadoras dos estudos críticos do direito (CLS) no outro, a história feminista do direito ficaria certamente posicionada nesse último polo. Mesmo assim, ela não pode ser subsumida aos estudos críticos do direito devido à especial atenção que dá para a lei como um texto social que ou produz ou legitima as relações de gênero. Na próxima seção, procuro apontar como os estudos feministas do direito (feminist legal studies) se desenvolveram e quais são as principais características da teoria subjacente à avaliação feminista da história do direito.

3. A teoria feminista do direito

A questão colocada por uma crítica feminista ao direito moderno se relaciona ao fato de que o universalismo por ele postulado não foi cumprido, ou ao menos não na velocidade desejada por aquelas que foram excluídas do processo, as mulheres. Por um longo tempo, o sistema jurídico negou às mulheres a condição de detentoras de direitos. Essa é certamente uma das razões que explica porque muitas das reivindicações e discussões dos movimentos feministas, por todo o mundo, tomam a forma de disputa por condições legais e cívicas das mulheres.

Na academia, uma duradoura abordagem feminista do direito começou a ser desenvolvida no início da década de 1980 e foi...

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