História do direito do trabalho no Brasil

AutorAugusto César Leite de Carvalho
Ocupação do AutorPossui mestrado em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará e doutorado em Direito das Relações Sociais
Páginas39-48

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3. 1 Pré-história do direito do trabalho: trabalho escravo e corporações de arte e ofício no Brasil

O trabalho de escravos, dos servos de gleba e dos aprendizes e companheiros em corporações de arte e ofício antecedeu o modo de prestar trabalho que, mais adiante, ambientou-se na empresa capitalista e provocou o surgimento do direito laboral. Mas também se costuma dizer que, no Brasil, o direito do trabalho não seria o resultado desse quadro evolutivo, porquanto teria migrado para a nossa ordem jurídica, como um pacote inteiro de leis, pela intervenção de Vargas.

Ainda que a teoria da generosidade getulista agrida a memória de todos quantos antes se integraram aos movimentos de insurreição contra a exploração do trabalho humano57, decerto que a universalidade do direito fundamental, especialmente do direito fundamental a um trabalho digno, torna irrelevante, em boa parte, a procura da realidade mais próxima, vale dizer, a discussão sobre o direito do trabalho vigente no Brasil ser um legado de nossas próprias agruras e conlitos ou, por outro lado, se a história do trabalho no Ocidente bastaria ao aparecimento de um direito laboral em nossas plagas.

De toda sorte, dúvidas existem sobre a inluência das formas antigas de organização do trabalho – especialmente a escravidão e as corporações – no modo de se organizar o trabalho no âmbito da empresa que emergiu com a primeira revolução industrial. Não há, por exemplo e à toda vista, relação de causalidade entre o trabalho escravo e a relação de emprego. O que há de extraordinário na história do trabalho humano, no Brasil, é a conversão do trabalhador escravo em trabalhador empregado, sem que se vivenciasse intensamente a experiência das corporações de arte e ofício. Esforcemo-nos, pois, por rememorar um pouco da pré-história do emprego, em terras brasileiras.

3.1. 1 As corporações de ofício na Europa e a analogia com o emprego

O trabalho em regime gremial ou corporativo exibia algumas características coincidentes com a relação laboral própria da empresa capitalista, além de outras que o faziam diferente. As diferenças mais expressivas se encontravam no modo de se constituir a organização em que se realizava o trabalho. No plano das relações individuais, eram, porém, parecidas as condições em que se trabalhava sob as ordens dos mestres ou, mais adiante, dos empresários.

As coincidências estavam presentes, por exemplo, na circunstância de que as ordenanças gremiais relativas ao período de prova, disciplina, duração do contrato e tempo de trabalho seguiam orientação análoga à que tem o atual direito do trabalho58 e também na peculiaridade de os aprendizes, companheiros e mestres serem trabalhadores livres59.

Evidenciavam-se, porém, as dessemelhanças. A saber, a produção era sobretudo artesanal nas corporações de arte e ofício, a elas não se ajustando as ideias de alienação e divisão do trabalho. Ademais, a revolução industrial foi contemporânea ao im do regime corporativo e, possivelmente, com este não se harmonizaria uma vez que a hierarquia interna das empresas não teria a formação proissional como pressuposto, sendo possível a qualquer pessoa, inclusive a mulheres e crianças, participar da cadeia de produção nas empresas que surgiam.

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Os grêmios ou corporações proissionais desapareceriam deinitivamente com a revolução industrial, ainda que fossem igualmente incompatíveis com os cânones da Revolução Francesa de 1789. Aparentemente, os fatores econômicos são comumente mais inluentes que as normativas de iniciativa política.

3.1. 2 A escravidão na América e especialmente no Brasil

No Brasil, os fatos foram diferentes. Enquanto a Europa via desaparecerem suas velhas organizações corporativas e surgirem as empresas capitalistas, o Brasil ainda vivia um período de escravidão de negros originários da África. Em obra publicada em 1942, o historiador Caio Prado Junior argumentava que para compreender o trabalho livre no Brasil era necessário admiti-lo em sua perspectiva histórica:

No terreno económico, por exemplo, pode-se dizer que o trabalho livre não se organizou ainda inteiramente em todo o país. Há apenas, em muitas partes dele, um processo de ajustamento em pleno vigor, um esforço mais ou menos bem-sucedido naquela direção, mas que conserva traços bastante vivos do regime escravista que o precedeu60.

O trabalho forçado foi utilizado tanto no Brasil como nos Estados Unidos61. Sem embargo, é necessário entender as diferenças entre a colonização das zonas temperadas da América, inclusive das terras norte-americanas, e a colonização de zonas tropicais como aquela que teve lugar no Brasil.

Embora a compreensão das causas da escravatura tenha a ver com a falta de mão de obra nas colônias da América, é interessante observar que a emigração de ingleses na direção do Novo Mundo a partir do século XVI teve significativo incremento com a transformação econômica vivida pela Ingla-terra desde o advento da revolução industrial. É que o surgimento da indústria têxtil provocou o deslocamento do campesino inglês que abandonava a lavoura porque nada mais tinha a cultivar senão as pastagens dos carneiros e ovelhas cuja lã iria abastecer as novas fábricas.

Os campesinos migravam para as colônias situadas na América em busca de uma nova socie-dade que lhes oferecesse garantias de sobrevivência não mais oferecidas pelo continente europeu. Portanto, o que levou novos colonos para as zonas temperadas da América, cujas condições naturais se assemelhavam às do Velho Continente, não foram as razões comerciais da colonização, até então dominantes62. Caio Prado Junior observa, a propósito da ocupação inglesa na América, que se estabeleceu a pequena propriedade, do tipo camponês, nas zonas temperadas (Nova Inglaterra, Nova York, Pensilvânia, Nova Jérsei e Delaware), estabelecendo-se a grande propriedade, do tipo plantation, somente ao sul da baía de Delware63.

Nos trópicos, os fatos se davam em outro contexto. Para estabelecer-se em zonas tropicais e subtropicais da América do Sul, o colono europeu, sobretudo os espanhóis e portugueses, emigravam de países ainda não industrializados, que produziam gêneros alimentícios suicientes para seu próprio consumo, precisando importar somente produtos naturais das zonas quentes64. Queriam encontrar estímulos diferentes e mais persuasivos nos trópicos e em realidade os encontraram, pois as diferenças de condições climáticas atuaram, verdadeiramente, no sentido de proporcionar aos países colonizadores a oportunidade de obter gêneros alimentícios inexistentes na Europa, ou que nela não se produziam, a exemplo de açúcar, pimenta, tabaco e, mais adiante, anil, arroz e algodão.

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Quando veio para os trópicos, o colono europeu não trouxe consigo a disposição de trabalhar ele próprio em um ambiente tão difícil e estranho. Ele vinha “como dirigente da produção de gêneros de grande valor comercial, como empresário de um negócio rendoso; mas só a contragosto como trabalhador. Outros trabalhariam para ele”65. A exploração dos trópicos, não sem razão, teria essa característica: ela se realizaria em ampla escala e em grandes unidades produtivas – fazendas, engenhos de cana-de-açúcar e vastas plantações, semelhantes às plantations das colônias inglesas em Virginia, Maryland e Carolina.

Nas plantações no sul dos Estados Unidos e nos trópicos, muitos colonos europeus tiveram que se submeter à condição degradante de escravos antes que se adotasse a escravidão de negros africa-nos. Ainda assim, a escravidão de colonos foi temporária e seria inteiramente substituída, não voltando a ser tentada nas outras colônias tropicais, inclusive no Brasil, já que Espanha e Portugal, aos quais pertencia a maioria delas, não tinham mão de obra excedente e disposta a emigrar a qualquer preço66.

Em rigor, as condições naturais de clima e tipo de terreno foram mais determinantes, provavelmente, que a índole dos colonizadores. Apesar de seguir as mesmas premissas até aqui sustentadas, Sérgio Buarque de Holanda assinala que o surgimento da indústria na nação britânica, no século XIX, fez gerar uma falsa ideia acerca da gente inglesa: “A verdade é que o inglês típico não é industrioso, nem possui em grau extremo o senso da economia, característico de seus vizinhos continentais mais próximos. Tende, muito contrário, para a indolência e para a prodigalidade, e estima, acima de tudo, a ‘boa vida’. Era essa a opinião corrente, quase unânime, dos estrangeiros que visitavam a Grã-Bretanha antes da era vitoriana”67.

Cabe dizer que os portugueses foram os precursores na prática de escravizar os mouros e, na sequência, os escravos africanos, levados a Portugal pelas expedições ultramarinas e subjugados como presas de guerra ou fruto de resgates68. Entretanto, a escravidão moderna, nas colônias americanas, era diferente daquela que se constituía na sociedade dos antigos. Observam Lilia Schwarcz e Heloisa Starling:

As cidades gregas e o Império Romano podem ser considerados os maiores exemplos de sociedades escravocratas da Antiguidade – no auge desse Império, na Itália havia de 2 milhões a 3 milhões de escravos, que representavam 35% a 40% da população total. No entanto, diferentemente do que aconteceu na escravidão moderna, nas antigas civilizações o trabalho compulsório não significava a principal força para a produção de bens e realização de serviços. Mesmo como o declínio do Império Romano e a concentração de cativos nas tarefas domésticas, o...

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