História do futebol e da profissão de atleta

AutorJorge Miguel Acosta Soares
Páginas19-39

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1.1. O surgimento do futebol e a criação de suas regras

A origem histórica do futebol é bastante controversa. Há registros de jogos envolvendo grupos de ho-mens e alguma coisa parecida com uma bola desde 2.000 a.C. Crônicas registrando homens chutando crânios de adversários derrotados em batalhas, pedras ou cocos, foram encontradas na China, na antiga Pérsia, na África Ocidental, na região da Anatólia, Turquia. Na Polinésia, ao longo dos séculos XVI e XVII, viajantes europeus observaram, em várias ilhas, grupos que se divertiam chutando cocos, ou disputando sua posse. Alguns autores, sem precisar suas fontes, registram que a prática de algo parecido com o futebol teria sido criado em 2.197 a.C., na China, por membros da guarda do imperador da Dinastia Xia. Essa atividade de jogo com uma bola também seria encontrada na Grécia Antiga, em Roma, entre os Maias, e durante toda Idade Média, em várias regiões da Europa. Nos séculos XVII e XVIII, em regiões da França, havia uma disputa entre dois grupos, cujos participantes variavam entre 15 e 30 elementos, na qual uma bola de couro deveria ser atirada entre postes; a prática era muito violenta, e resultava quase sempre em mortos e feridos. Na Inglaterra medieval também existiu um jogo disputado com bola, às vezes chamado soule, às vezes football. Esses registros, além de muitos outros, despertam apenas interesse como curiosidades, ou como campo de estudo da Antropologia, uma vez que não têm qualquer relação direta com o futebol moderno, como hoje o conhecemos.

Dos registros antigos, o que mais se aproxima do futebol era o chamado calcio fiorentino, disputado na região de Florença, a partir de meados do século XIV7. A semelhança com o esporte atual é a existência de regras claras e escritas, codificadas desde 1580, com número de jogadores fixos — 27 de cada lado —, uniformizados, com torneios regulares, disputados durante as festas do carnaval. O esporte era praticado exclusivamente por membros das classes abastadas, cujos movimentos e táticas chegaram a ser entendidos pela nobreza como uma espécie de treinamento militar. Essa identificação do esporte dos grupos dominantes florentinos, assim como as alterações políticas, ocorridas em meados do século XVIII, provocaram seu desaparecimento. O ressurgimento do calcio fiorentino como um esporte ocorreria apenas na década de 1930, como um dos movimentos do Estado fascista para recuperar antigas tradições. Contudo, esse esporte codificado, com regras claras, não pode ser considerado como a origem do moderno futebol.

O futebol como entendemos hoje é um fenômeno histórico absolutamente peculiar, que nasce na Inglaterra em meados do Século XIX, dadas suas condições sociais econômicas, políticas e culturais específicas. A procura de elementos ancestrais do esporte, nas práticas lúdicas de civilizações do passado, não agrega elementos que auxiliem em sua compreensão; ao contrário, dificulta o reconhecimento do futebol enquanto um fenômeno histórico.

O futebol moderno, ou as práticas esportivas com uma bola chutada com os pés que levariam à sua criação, surge na Inglaterra em meados do século XIX, nas escolas inglesas que formavam os jovens filhos das famílias abastadas, futuros membros da classe dominante do país. Sua prática estava inserida em uma nova concepção educacional, que valorizava a atividade física desportiva como uma prática necessária para a formação de homens fortes, em físico e caráter; a construção de uma elite militar britânica, apta e destinada a governar longínquas regiões em continentes distantes8. Contudo, as raízes desse processo podem ser encontradas cerca de duzentos antes, após as Revoluções Puritana e Gloriosa. Para Norbert Elias, a “desportivização” na Inglaterra, com a prática de atividades físicas regradas e com maneiras civilizadas e autocontrole, se insere no “processo de civilização” da sociedade inglesa ao longo dos séculos XVIII e XIX9.

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Ao longo do século XVII, a Inglaterra foi sacudida por uma luta fratricida que opôs as classes dominantes da sociedade — “whigs” e “tories” — pela disputa da hegemonia política. A rivalidade não se dava entre classes sociais distintas, mas por diferentes objetivos sociais e interesses econômicos. O fim dos conflitos deu-se de forma negociada, com a aceitação da monarquia parlamentar, e a restrição do poder real, e a ascensão da burguesia ao controle do Estado, criando condições para o avanço econômico que resultaria na Revolução Industrial. Contudo, o ajuste não apagou décadas de ressentimento e desconfiança entre as facções das classes proprietárias inglesas. Havia na solução parlamentar um pacto de não agressão, e o compromisso que os vito-riosos não perseguiriam os vencidos, com a aceitação das regras do jogo político. Esse arranjo permitiu que, gradativamente ambos os grupos perdessem a desconfiança mútua, desenvolvendo práticas e estratégicas para confrontos não violentos, que exigiam a contenção pessoal10. As facções, que há pouco se destruíam, precisaram aprender a moderar seus ódios e impulsos, lutando apenas de forma não violenta, dentro de uma legalidade civilizada.

O esporte moderno nasceu no interior desse processo de transformações sociais impostas pelas Revoluções Inglesas. A nova organização social, associada às transformações advindas da Revolução Industrial, estabelecidas pela máquina, pela fábrica, pela produção em larga escala, pela urbanização, obrigava o controle da violência, as regras preestabelecidas, a relação intermediada dos grupos em conflito. O esporte, nascido nesse contexto, materializava as práticas do novo jogo social imposto pela política e pela reorganização da classe dominante inglesa. A regulamentação e uniformização das atividades com bola, populares nas escolas inglesas, transformando-as no futebol, em 1863, refletia o novo padrão das relações sociais da sociedade inglesa11.

O esporte com bola era uma prática comum em boa parte das escolas que formavam a classe dominante britânica, sendo disputado de variadas formas nas diversas instituições. O modelo pedagógico da primeira metade do século XIX refletiu as transformações pelas quais atravessava o Império, que se expandia para todos os continentes, tendo como ponta de lança sua economia e suas tropas. As escolas precisavam formar uma juventude forte e disciplinada, que viria a governar as possessões britânicas. A competitividade era estimulada, criando a necessidade de provar a superioridade de uma escola frente às outras.

Os certames obrigavam o estabelecimento prévio de regras. As escolas, antes de entrar em campo, precisavam chegar a um consenso sobre como seria a partida, sob risco de disputarem, no mesmo espaço, dois esportes diferentes. Certamente que o acordo preliminar não impedia o conflito entre os grupos. O entendimento divergente sobre uma determinada regra, inevitavelmente acabava em brigas generalizadas, violência e desordem. Não havia consenso nem se a partida seria disputado com mãos e pés, ou somente com os pés.

Na sociedade inglesa dos séculos XVIII e XIX, os cavalheiros reuniam-se em clubes locais para praticarem caça ou alguma atividade com bola, especialmente o críquete, hábito que foi transportado mais tarde para as outras atividades esportivas. A formação do clube era regional, agregando livremente pessoas com interesses comuns, seja como praticantes ou apenas como espectadores. O sistema de clubes foi a base para o desenvolvimento do futebol, que caminhou de estruturas locais isoladas, para práticas regionais e logo para uma estrutura institucional nacional12. O primeiro clube criado especialmente para a prática do futebol foi o Sheffield Football Club, fundado em 24 de outubro de 1857. O time, em 26 de dezembro de 1860, disputou com seu rival local, Hallam Football Club, aquela que é considerada pela federação inglesa como a primeira partida do mundo; a disputa foi no Hallam Pitch de Sandygate Lane, em Sheffield, no mais antigo campo de futebol que se tem registro. O Sheffield foi o pioneiro no processo de criação das normas que iriam definir o esporte. Menos de dois anos após a fundação, seus fundadores, Nathaniel Creswick e William Prest, decidiram elaborar um conjunto de regras mínimas para serem negociadas antecipadamente com os adversários. Esse

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conjunto, com 11 pontos básicos, foi chamado de Sheffield Rules, ponto de partida para a futura criação de todo o conjunto normativo do futebol13.

Em 26 de outubro de 1863, representantes de 11 clubes e escolas de diferentes cidades, em uma reunião na Freemason’s Tavern, no centro de Londres, criaram a Football Association, uma entidade para organizar e disciplinar a prática do esporte14. Nesse primeiro momento, o futebol reunia os adeptos das duas formas de jogar — conduzindo a bola com as mãos e pés, e apenas com pés. Não havia consenso sobre a melhor forma a ser adotada pela Association. Algo parecido já havia sido tentado em 1848, em Cambridge, mas a experiência não obteve sucesso. Não se conseguiu chegar a um acordo nem sobre quem deveria elaborar as regras. Na segunda tentativa, em 1863, uma das primeiras decisões foi a criação de grupo, que deveria uniformizar a forma de disputar o esporte, cujas decisões, por compromisso, seriam respeitadas por todos os filiados. As primeiras regras, ainda muito simples, e quase idênticas as de Sheffield Rules, foram aprovadas antes do final de 1863. Assim como aquelas, essas novas regras permitiam a condução da bola com as mãos e pés, muito parecidas com aquelas que dariam origem ao rugby anos mais tarde.

As escolas e universidades inglesas forjavam os líderes do Império Britânico, especialmente os comandantes militares, presentes em todas as possessões, os juristas, os políticos. Desde muito cedo...

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