A história, a filosofia e o direito

AutorIves Gandra Da Silva Martins
Páginas1-118
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CAPÍTULO I
A HISTÓRIA, A FILOSOFIA E O DIREITO
1.1 A História, a Filosofia e o Homem
Toda a evolução do Estado está vinculada à percepção
histórica do homem desde sua origem. Esta é que vai relatan-
do o passado e projetando o futuro.
Numa visão crítica, não se pode pretender que a história
seja apenas uma percepção fotográfica dos acontecimentos
que marcam a aventura do homem sobre a Terra, principal-
mente a partir daqueles que delimitam sua evolução, sendo
para alguns apenas um narrar cronológico de fatos.11
Como Hegel sugeriu, em sua filosofia da história, os his-
toriadores, com especial destaque para aqueles do século XIX
e XX, conformaram seu estudo a partir da realidade própria
de cada povo e de seus costumes, grande parte decorrente, no
escoar do tempo, do clima, da região em que viviam e em que
11. Will Durant, na sua “História da Civilização”, esclarece: “A civilização é ordem
social promovendo a criação cultural. Compõe-se de quatro elementos: provisão
econômica, organização política, tradições morais e acúmulo de conhecimentos e
artes. Seu início se dá quando o caos e a insegurança chegam ao fim. Porque, logo
que o medo é dominado, a curiosidade e a construtividade se veem livres, e por im-
pulso natural o homem procura a compreensão e o embelezamento da vida” (DU-
RANT, Will. A história da civilização I. Nossa herança oriental. 2. ed. Rio de Janeiro:
Record, 1963. p. 1).
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O ESTADO À LUZ DA HISTÓRIA, DA FILOSOFIA E DO DIREITO
conseguiram sobreviver, com suas características de adapta-
ção em face da maneira de ser de cada comunidade. Deram,
portanto, esses historiadores, uma outra dimensão ao estu-
do da História. É a admirável aventura do Homem, esse ser,
que dotado de razão e de consciência intelectiva e não apenas
intuitiva, que foi transformando o mundo com suas grande-
zas e misérias, mas em patamares que parecem dar razão a
Giambattista Vico: a humanidade avança e recua em espirais,
sendo que a parte mais baixa da última espiral é mais alta que
a parte mais baixa da especial anterior.
Há, pois, além da história cronológica (narrativa dos fa-
tos), uma história sociológica (explicativa dos fatos, em todos
seus aspectos, procurando buscar-lhes o sentido filosófico e
sobrevivencial dos atos humanos) e uma história de costumes,
em que a relevância dos eventos mais proeminentes perde
importância, em face da necessidade de compreender-se o
ambiente e a forma de vida de uma determinada comunidade.
Três autores podem, talvez, sintetizar essas três for-
mas, a saber: Cesare Cantu, com sua monumental “História
Universal” (história cronológica), Maurice Crouzet, com sua
“História das civilizações” (história sociológica) e Fustel de
Coulanges, com sua “Cidade antiga” (história dos costumes).
Ora, todos estes três aspectos da reflexão histórica são
diretamente vinculados à percepção do direito que orienta a
vida em sociedade. Direito e história marcham de forma con-
junta, aquele regulando as relações entre os povos e esta tra-
zendo elementos corporativos de experiências humanas vivi-
das, em todas as suas dimensões.12
12. Mario da Gama Kury lembra que: “Herôdotos é chamado “pai da história” por-
que antes dele houve apenas logogrifos (literalmente “escritores em prosa”, em
contraste com os “escritores em verso”; estes eram não somente os poetas propria-
mente ditos mas também os filósofos, que até certa época usavam a forma poética).
O nome de logogrifos refletia apenas a qualidade de prosador, enquanto o de histo-
riador (históricos) tem um significado mais definido, pois história quer dizer origi-
nariamente “busca, investigação, pesquisa”; então o historiador, do ponto de vista
etimológico, é uma pessoa que se informa por si mesma da verdade, que viaja, que
interroga, em vez de limitar-se a transcrever dados à sua disposição e repetir
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IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
Por isto, o homem em sociedade, cujo Direito nasceu na
primeira relação familiar da primeira família, faz com que eu,
mais uma vez, evoque, como fiz em palestras e em escritos,
o melhor exemplo literário para mostrar a dependência do
homem ao Direito: a figura de Robinson Crusoé. Enquanto
estava só numa ilha, não precisava de qualquer regra para
estabelecer suas relações com as coisas, pois possuía todas. A
regulação de sua ação como forma de administrá-las decorreu
da chegada de Sexta-feira (nativo que veio para a ilha), quan-
do passou a definir quem comandava, quem obedecia, o que
se devia fazer e como usar os bens.
Em outras palavras, a chegada de Sexta-feira impôs uma
regra inicial de conteúdo eminentemente jurídico, gerando
formas de comportamento reguladas por quem detinha o
poder (Robinson) sobre quem devia obedecer (Sexta-feira),
conformando a “constituição elementar” daquela singela
comunidade.13
genealogias, cronologias e lendas, ou compilar registros relativos à fundação de ci-
dades, tudo com o intuito exclusivo de satisfazer a curiosidade ingênua de um pú-
blico ainda pouco exigente, sem estabelecer a menor distinção entre acontecimen-
tos reais ou relatos imaginários, entre fatos ou peripécias fantásticas”
(HERÓDOTOS. História. 2. ed. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: UnB,
1988. p. 8-9).
13. Escrevi: “Es la regulación de su vida en sociedad que le permite al hombre, desde
los tiempos primitivos, promover la convivencia de las individualidades autónomas e
independientes con las necesidades de lo colectivo. De alli surge una regulación que
produce las reglas de convivencia, desde los primeros tiempos percibidas y formula-
das por los primeros filósofos, la luz de la experiencia histórica y de los modelos
ideales, para que esta convivencia regulada fuera lo más justa posible. La práctica de
los que tienen vocación para la politica, por lo tanto, no consiguen realizar ese proyec-
to, de tal manera que la regulación raramente es justa para todos, principalmente en
lo que dice con respecto a las diferencias entre los individuos’.
Existe, en la relación de convivencia, la luz de lo primordial de la ley y del Derecho,
un conflicto permanente entre la “teoria de los valores”, que debería modelar la regu-
lación de la sociedad, y “la teoria de los hechos”, en que la lucha por el poder define
los caminos de los vencedores. Estos imponen su estilo y su forma de ser, en las reglas
que produce, inclusive en las mejores democracias’.
Para entender la famosa formula sintética que caracteriza la relación “sociedad-De-
recho”, lo que es “ubi jus, ibi societas, ubi societas, ibi jus” el ejemplo sacado del con-
sagrado romance de Robinson Crusoe, de Daniel Dafoe, es la mejor.
Como el hombre único no necesita del Derecho regulador, ya que es dueño de todo, sin
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