História e historiografia da romanização: reflexões provisórias

AutorJérri Roberto Marin
Páginas322-341

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“O conceito de texto definitivo só corresponde à religião e ao cansaço.”

Jorge Luis Borges

A reflexão* historiográfica que apresento, sobre a história eclesiástica brasileira, centraliza-se nas reformas romanizadoras. No Brasil, a romanização da Igreja Católica iniciou-se com as reformas implementadas pelos “bispos reformadores”, a partir da segunda metade do século XIX, e se consolidou com o predomínio das políticas e das práticas pastorais romanizadoras durante a primeira metade do século XX. Essa periodização, aceita e divulgada no meio acadêmico, estende-se até a Teologia da Libertação, como desdobramento das decisões do Concílio Vaticano II, na década de 70.

Não há na historiografia uma unidade interpretativa no tocante à romanização. Observou-se determinadas tendências historiográficas, que podem estar associadas e não se excluem totalmente. Nenhum autor ou autores defendeu explicitamente essas perspectivas, mas, de forma imperceptível, elas permeiam várias análises. Por não terem sido formuladas e defendidas por nenhum estudioso, são colocadas neste texto de forma ampla e geral, sem a preocupação de citar nomes ou em explicitar as diferenças existentes entre os intérpretes da romanização. A análise que me proponho a realizar é, sobretudo, o resultado de uma experiência individual como pesquisador desta temática.

Entre as tendências, ressalto a que procura demonstrar que a romanização teria sido um processo homogêneo, vitorioso nas múltiplasPage 323frentes de atuação e de abrangência nacional. A outra tendência é resultado de conceitos e preocupações recentes e ressalta os elementos heterogêneos, descontínuos e díspares desse processo, ressaltando o fracasso de muitas das frentes de atuação da Igreja e o êxito parcial da romanização. Assim, essas interpretações dialogam entre si, entrecruzamse e não há um consenso ou unanimidade em torno delas.

A única conclusão provisória estabelecida pela historiografia é o reconhecimento da existência da multiplicidade a partir do confronto permanente da Igreja com as diferenças em todos os âmbitos, do local ao nacional e internacional e da valorização das dimensões subjetivas. Essa compreensão respalda a necessidade de novas abordagens nas diversas regiões brasileiras, mesmo naquelas já estudadas, o que possibilitará tecer um mapa das diferenças e semelhanças desse processo no Brasil. A partir do diálogo entre essas perspectivas analiso, num segundo momento, a romanização da Igreja na diocese de Santa Cruz de Corumbá, no sul de Mato Grosso, evidenciando suas singularidades em relação às demais regiões brasileiras.

Uma tendência historiográfica é olhar a romanização como um processo deliberado, intencional e racional, a partir de estratégias precisas, calculadas e homogêneas. Como resultado, ter-se-ia se desenvolvido de forma contínua e linear, em que a Igreja Católica afirmava-se na sociedade, ao conquistar espaços e aliados políticos, ao recristianizar a sociedade, as instituições, o Estado e ao purificar a fé dos católicos. O episcopado brasileiro, sintonizado com as diretrizes da Santa Sé, teria conseguido criar uma Igreja centralizada e hierarquizada, com sólida organização. O reforço hierárquico garantia a padronização doutrinária e de ação da Igreja Católica. Entre o Papa e um pároco no interior do Brasil havia uma sintonia que comprovava essa unicidade. O lexema romanizar aponta para a reeuropeização do catolicismo, aspecto que implicava homogeneização e hierarquização, uma vez que era um movimento de inspiração conservadora, pelo qual a Igreja tornou-se depositária e guardiã da ortodoxia e da verdade.

Nesse olhar, a romanização teria sido, quase sempre, infalível, triunfal, vitoriosa e de abrangência nacional. Afirma-se que os “bispos reformadores”, durante o Império, teriam enfrentado dificuldades para implantar o catolicismo romanizado e que, com o advento da República, após verem superadas as dificuldades iniciais, o processo teria alcança-Page 324do seus fins de forma triunfal. A separação entre Igreja e Estado teria propiciado a liberdade de ação de que a Igreja necessitava para implementar várias medidas político-institucionais, com vista a conquistar seus objetivos pastorais e políticos.

A ação reformadora do episcopado, durante a segunda metade de século XIX, teria ocorrido de forma mais sistemática em três áreas complementares e simultâneas: na formação intelectual e espiritual do clero, realizada em seminários onde estudavam apenas os candidatos ao sacerdócio; na disciplina eclesiástica, para formar um clero com elevado perfil moral e doutrinário; e, por fim, na intensificação da pastoral junto aos fiéis para purificar a religiosidade popular, herança cultural luso-brasileira, livrando-a do que o episcopado considerava erros e excessos, e, para tal, empenhavam-se em introduzir práticas religiosas romanizadas. A ofensiva dos bispos reformadores para reforçar os laços com a Santa Sé e afirmar o primado pontifício, apesar do direito do Padroado Régio, gerou a Questão Religiosa, na década de 1870, que opôs a Igreja ao Estado.

A hierarquia eclesiástica, após a proclamação da República e a separação entre os dois poderes, teria estabelecido um projeto político e pastoral bem definido, que objetivava mudar a condição jurídica da Igreja e reconquistar os espaços perdidos por ela na sociedade. A Igreja, apesar da perda de seus aliados tradicionais e de estar enfraquecida ideologicamente, negociou, legislou e interviu, conseguindo concessões do novo regime, que foram reconhecidas parcialmente na Constituição de 1891. O episcopado, dispondo de liberdade, a partir da separação entre os poderes temporal e espiritual, empenhou-se em implementar um projeto que envolvia múltiplos campos de atuação para estruturar uma Igreja homogênea e centralizada. A instituição seria rigidamente hierarquizada e verticalmente integrada desde suas bases até a Santa Sé.

Enfim, essa tendência reafirma e privilegia ao limite a idéia de que a ofensiva romanizadora teria sido coesa, a partir de uma ação política e pastoral uniforme do episcopado. Estes, por terem consciência da sua missão apostólica e serem detentores de uma visão comum da situação política e social do Brasil, estariam empenhados em cumprir todas as disposições da Santa Sé em todas as matérias de interesse da Igreja, visando a ortodoxia religiosa e a consolidação da romanização da Igreja.

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Para tal, coordenariam uma ação conjunta para intervir na sociedade, de acordo com as orientações emanadas pela Santa Sé, que, por sua vez, nomeava bispos capacitados para implementar as reformas pretendidas.

A Igreja, durante a República Velha ampliou suas pretensões de influência sobre a sociedade civil e o Estado. Entre as reformas a serem alcançadas, foram destacadas: a moralização e ampliação de seus quadros de pessoal, a importação de Ordens e Congregações Religiosas estrangeiras, a fundação de seminários, a realização de alianças com as facções oligárquicas estaduais e com o governo federal (com vistas a garantir um acúmulo patrimonial e apoio à política expansionista), a montagem de uma nova estrutura organizacional e devocional segundo os moldes do catolicismo romano e a difusão de uma rede de instituições católicas de ensino privado para cristianizar as elites, para que estas, por sua vez, cristianizassem o povo, o Estado e a legislação.1 Essas medidas políticas e práticas pastorais, quando vistas como vitoriosas, confirmavam os permanentes avanços da ofensiva da Igreja e comprovavam o êxito, quase sempre triunfal, da romanização. Assim, consolidou-se a idéia de homogeneidade de ação pastoral e política da hierarquia eclesiástica, do avanço crescente da romanização na sociedade brasileira e da sua abrangência em nível nacional.

A Igreja Católica teria um episcopado e um clero eficiente e instruído que, como um exército, combatia e conquistava permanentemente novos espaços. Os aliados principais do episcopado seriam as Ordens e Congregações estrangeiras. Os bispos empenhavam-se em aumentar os efetivos ultramontanos importando-as e direcionando-as para o trabalho paroquial, educacional e administrativo nos santuários e seminários. O clero romanizado, em particular o regular e estrangeiro, foi representado com uma aura de santidade e eficiência e como superior ao nacional. Seria um clero de elevado perfil moral, virtuoso, abnegado, disciplinado e consciente de sua missão, ou seja, a de recristianizar a sociedade, as instituições e o Estado e dinamizar a presença da Igreja. Em suma, essesPage 326aliados foram vistos como agentes por excelência da romanização e sua presença garantia a vitória do projeto em apreço.

A dinamização da presença da Igreja na sociedade brasileira comprovava o sucesso do empreendimento. Nesta perspectiva, na década de 30, ela reconquistou os espaços perdidos desde a Proclamação da República, como resultado do êxito considerável de suas múltiplas frentes de atuação. A aproximação com o Estado, as conquistas no plano constitucional e o crescimento interno da instituição foram vistos como resultado da liberdade de ação, da conquista de espaços pela Igreja e da sua inserção quase homogênea na sociedade brasileira. A mudança do estatuto jurídico da Igreja ocorreu na Constituição de 1934, quando foram alcançadas as suas reivindicações, conquistas que foram preservadas pelo Estado nas conjunturas posteriores. O prestígio da instituição justificava-se no grau de influência e autoridade que a hierarquia exercia na política nacional. Enfim, as estratégias da hierarquia eclesiástica teriam sido vitoriosas e as resistências e oposições teriam sido contornadas ou reduzidas a padrões toleráveis.

A rápida multiplicação de dioceses, as conquistas políticas da Igreja e o renome, conferido ao Brasil, de maior país católico do mundo parecem justificar o êxito. Os números apresentados por Comblim são contundentes.2 Em 1889, o Brasil constituía uma única...

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