A história mestra da vida no Iluminismo francês: um olhar sobre as concepções de história de Montesquieu e Voltaire

AutorIgor Moraes Santos
Páginas157-190
A HISTÓRIA MESTRA DA VIDA NO ILUMINISMO
FRANS
Uma olhar sobre as concepções de história de
Montesquieu e Voltaire
HISTORY AS
MAGISTRA VITAE
IN FRENCH ENLIGHTENMENT
A look at Montesquieu’s and Voltaire’s conceptions of history
IGOR MORAES SANTOS1
Resumo: A tradição da história como mestra
da vida exerceu papel fundamental nos
modos de interpretação e de usos da história
da Antiguidade até o Iluminismo, quando
novas perspectivas, como a ascensão da
crença no progresso, levou ao declínio da
constituição exemplar de sentido nessa
configuração tradicional. O presente trabalho
tem por objetivo investigar como os
ilustrados deram início a esse processo de
reorientação, tentando identificar, em meio
aos novos caminhos abertos para a filosofia
da história, eventuais permanências da
concepção clássica. Para tanto, limitando-se a
uma incursão no Iluminismo Francês,
pretende-se examinar os caracteres principais
da percepção da história de dois dos
principais nomes da primeira geração,
Montesquieu e Voltaire. Constata-se, entre
outros aspectos, que o declínio assinalado por
Koselleck pode ser identificado em ambos os
filósofos, mas, junto ao novo apelo à razão, a
historia magistra vitae foi parcialmente
aproveitada pelos ilustrados para os seus
propósitos.
Palavras-chave: historia magistra vitae,
história, Iluminismo, Montesquieu, Voltaire.
Abstract: The historia magistra vitae tradition
played a fundamental role in the modes of
interpretation and uses of history from
Antiquity to Enlightenment, when new
perspectives, such as the rise of belief in
progress, led to the decline of the exemplary
constitution of meaning in this traditional
configuration. This work aims to investigate
how the Enlightenment men began this
process of reorientation, trying to identify, in
the midst of the new opened paths for the
philosophy of history, eventual permanencies
of that classical conception. To this purpose,
limiting the scope to the French
Enlightenment, it is intended to examine the
main aspects of the perception of history by
two of the first generation’s leading names,
Montesquieu and Voltaire. It is noted, among
other things, that the decline described by
Koselleck can be identified in both
philosophers, but, along with their new
appeal to reason, history as magistra vitae was
still partially used by Enlightenment
intellectuals for its purposes.
Keywords: historia magistra vitae, history,
Enlightenment, Montesquieu, Voltaire.
1 Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre e Bacharel em Direito
pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor substituto no curso de Direito da Universidade
do Estado de Minas Gerais (UEMG), unidade Diamantina. Editor-chefe da Revista do Centro Acadêmico
Afonso Pena (CAAP). E-mail: santosigormoraes@gmail.com.
Introdução
A percepção da história pelo homem modificou-se consideravelmente ao longo
dos séculos. Tratar hoje de história sem considerar as contribuições proporcionadas pelos
diversos historiadores, pelas filosofias da história e por movimentos como o historicismo
do século XIX, que propulsionou a consolidação da Ciência da História, impossibilita
qualquer compreensão da própria noção de história, tão complexa e, ao mesmo tempo, ela
mesma, histórica.
Com efeito, pode surpreender o leitor contemporâneo conhecer como era
desenvolvido o trabalho de escrita da história antes da Modernidade, ou melhor, em um
período precedente aos últimos duzentos anos. E esse tipo de registro, assim como seu
conteúdo, empreendido por pessoas comuns, líderes políticos, intelectuais ou verdadeiros
historiadores, era ainda determinado pelo modo de se entender o homem, os feitos
humanos e o tempo, por sua vez, radicalmente diversos do olhar que hoje dirigimos à
história. O papel dela na construção e no desenvolvimento cultural ocidental deixou de
estar baseado na constituição exemplar de sentido, no valor extraído de padrões de
condutas morais a serem reproduzidas no presente. Entretanto, esse foi um quadro que
perdurou por mais de dois milênios e acompanhou a estruturação da civilização ocidental.
Portanto, para entender de forma completa os pilares do horizonte cultural do Ocidente,
não é possível simplesmente esquecer essa tradição em que a história é considerada “mestra
da vida”, nos termos da expressão cunhada por Cícero.
O presente trabalho parte desse pressuposto e, assim, pretende expor, em termos
breves, a formação da referida tradição de leitura e uso da história, as suas principais
caraterísticas e seu percurso até o Iluminismo. Nesse último momento, buscar-se-á
examinar a percepção da história em dois dos principais nomes da primeira geração de
ilustrados franceses, a saber, Montesquieu e Voltaire, para neles investigar se e como ainda
persistia a historia magistra vitae e os novos elementos que o contexto das Luzes introduziu
na percepção, interpretação e escrita da história.
1. Constituição exemplar de sentido histórico
O processo de conhecimento histórico pode ser constituído por muitas formas.
Jörn Rüsen destaca quatro princípios que são topoi da narrativa, necessários para que o saber
histórico exerça sua função de orientação, quais sejam, a afirmação, a regularidade, a
negação ou contraposição e a transformação. Entre os mencionados, a regularidade é um
critério de sentido histórico que permite a síntese de diferentes “tradições em interpretações
unificadas das experiências temporais”, estendendo o alcance das experiências passadas,
enquanto também reforça a capacidade reguladora como elemento essencial de identidade.
Esse princípio da regularidade constitui o topos da narrativa histórica exemplar e da sua
correspondente constituição de sentido histórico2.
Na constituição exemplar de sentido, tem-se em vista “os conteúdos da experiência
nos quais as determinações de sentido relevantes para a vida prática concreta aparecem,
consolidam-se e podem ser demonstradas”3. É um processo no qual as determinações de
sentido tomam uma forma abstrata, sendo pensadas como regras, pontos de vista,
princípios. Como descreve Rüsen:
A constituição exemplar de sentido segue a famosa divisa “Historia magistra vitae”.
A história ensina, a partir dos inúmeros acontecimentos do passado que
transmite, regras gerais do agir. A memória histórica volta-se para os conteúdos
da experiência do passado que representam, como casos concretos de mudanças
no tempo (no mais das vezes causadas por ações intencionais), regras ou
princípios tomados como válidos para toda mudança no tempo e para o agir
humano que nela ocorre. As histórias que contam dos senhores, por exemplo,
ensinam regras do bem-mandar. As histórias que contam do surgimento, da
evolução e do desaparecimento de estruturas políticas transmitem os
ensinamentos de como a dominação se modifica sob determinadas
circunstâncias. Os entendimentos abstratos e gerais, aparentados às regras, são
transpostos para uma série de exemplos históricos e, por meio deles,
consolidados.
A unidade do tempo faz os acontecimentos lembrados e tomados presentes pela
historiografia serem significativos para o presente e faz esperar que o futuro seja
orientado pela experiência. Essa unidade está na generalidade abstraída dos
tempos, gerada a partir dos acontecimentos históricos e nas regras do agir
corretamente observada neles.4
Nessa forma de constituição de sentido, “a identidade histórica assume a forma de
uma competência reguladora que torna a práxis possível”5. A identidade histórica do eu ou
do nós depende da capacidade de realização, por si próprio, dos preceitos considerados
obrigatórios, ao passo que vê em outros modos de vida formas mais fracas ou fracassadas.
Trata-se de uma dupla dimensão, individual e coletiva, concretizada concomitantemente na
2 RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Trad. Estevão
de Rezende Martins. Brasília: Editora UnB, 2007, p. 44-48.
3 Ibidem, p. 51.
4 Ibidem, p. 51-52.
5 Ibidem, p. 52.

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