A história da prisão civil por dívida

AutorAriovaldo Stropa Garcia/Silvana Garcia Montagnini/Rosane Budal/Aline Anteveli/Danilo Del Arco/Karine Bielski/Lúcio Augusto do Nascimento
CargoJuiz de Direito Inativo. Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Estadual de Londrina e Supervisor do Núcleo de Prática Jurídica do Curso de Direito da Universidade Norte do Paraná (UNOPAR)/Discentes do Curso de Graduação em Diretiu, da Universidade Noríe do Paraná/Discentes do Curso de Graduação em Diretiu, da Universidade Noríe do P
Páginas49-61

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Introdução

A prisão civil é aquela que, a par de não decorrer de um ilícito definido na lei como crime, tem como objetivo afastar os obstáculos que o devedor esteja criando para não restituir a coisa.

Necessário foi, de começo, lançar o conceito da prisão civil por dívida, máxime quando se pretende, com o presente ensaio, trazê-la à luz da história, lançando-se alguns enfoques relativos aos direitos humanos. Tais direitos, que aiguns preferem chamar de direitos fundamentais ou do homem, têm como núcleo essencial a dignidade da pessoa humana. Esta ou aquela expressão reúne, não só os direitos do homem, mas todos os demais consagrados positivamente nas mais diversas constituições.

Paulo Bonavídes (1993, p. 475), sobre os direitos fundamentais (expressão por ele adotada), chegou a declarar que "os direitos da primeira geração ou direitos da liberdade têm por ulular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam umasubjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado". Os direitos de primeira geração, pois, caracterizam a luta constante dos povos contra o absolutismo do poder político, estes, fixados no século XVIII, com a influência do Contratualismo presente nas primeiras linhas dos filósofos do lluminismo por ocasião da Revolução Francesa de 1789, preservaram o direito à vida, à propriedade e a igualdade.

Como nos lembra José Geraldo de Jacobina Rabello (1987, p. 29-30), "nas suas raízes, a prisão, no Direito, não mostra o caráter próprio de sanção que hoje a caracteriza. A prisão traduzia, puramente, um meio para a realização de um determinado fim. Visava, simplesmente, possibilitai- ou conduzir à execução de um castigo. Este, segundo o caso, e dependendo da cultura e organização social de cada povo, era a morte, por forma mais ou menos cruel, o suplício físico, a expulsão do território, a escravidão

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do condenado, ou os trabalhos forçados... A prisão, como pena, vem do século XVI, tao somente. Sua introdução como modalidade de execução penal teria sido o resultado da evolução da pena capital, das penas corporais, da escravatura e seu equivalente, a transportação ou ida para as minas". Nos tempos modernos, a maioria dos estudiosos do assunto não mais aceita a prisão do devedor inadimplentc ou qualquer outra sorte de castigo, cabendo, em seu lugar, a execução do património a eíe pertencente. É, pois, nesse contexto histórico, salientando que a prisão civil por dívida remonta à antiguidade clássica, que o presente trabalho se desenvolverá.

A Prisão Civil por Dívida na Idade Antiga

A visão geral do direito antigo, aí incluído o direito romano, serve como marco inicia! para estabelecer as diferenças entre o direito de hoje e o direito das civilizações da antiguidade. Nestas, há cerca de 3.000 anos a.C, já se conhecia o instituto da prisão civil por dívida.

Encontramos nos povos egípcio, hebreu, indiano, babilónico, grego e romano, escritos dando conta da existência da prisão por dívida, envolvendo a execução pessoal do devedor, como sacrifícios físicos, escravização e morte.

No Direito Egípcio admitia-se a escravização por dívida, cabendo ao Rei Bocchoris suprimi-la, estabelecendo que o devedor poderia obrigar-se por seus bens e não através de sua pessoa. Nessa época (1570 - 1090 a.C.) ocorreram, além do término da servidão pessoal, outras modificações no Código de Bocchoris, como. por exemplo, em matéria sucessória, assegurando-se a igualdade de filhos e Filhas, bem como o asseguramenlo da capacidade jurídica plena da mulher.

Ainda na Antiguidade Clássica íemos notícia da prisão civil por dívida também entre os povos de menor destaque histórico, como no caso dos hebreus - antigos israelitas que viviam na Palestina nos tempos bíblicos, que tinham como idioma o hebraico, uma das línguas vivas mais antigas do mundo.

Entre os anos de 1000 a 400 a.C, os hebreus reuniram suas leis sociais e religiosas num único texto, denominado Código de Moisés, em homenagem ao grande líder hebreu que redigiu a maioria de seus dispositivos. Esse código, incluído nos primeiros livros da Bíblia Hebraica, foi mantido na Bíblia Cristã.

O livro sagrado dos cristãos, que no Antigo Testamento narra a saga do povo hebreu, do qual Jesus Cristo é descendente, traz, no Novo Testamento, Evangelho de Mateus, capítulo 18. versículos 23 a 35, uma parábola trazida a título de exemplificação e ensinamento, onde fica claro a existência da prisão do devedor até o pagamento da dívida. Em caso de não pagamento, sujeitava-se o devedor c sua família, caso conviesse ao credor, a serem vendidos como escravos até que a dívida lhe fosse paga.

O Novo Testamento de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (1989), segundo Mateus, capítulo 18, versículos 23 a 35, narra:

"23 - Por isto o Reino dos céus, assemelha-se a um rei que quis ajustar contas com os seus servidores.

24 - Quando começou a exigir a prestação de contas, foi-lhe apresentado um que lhe devia dez mil talentos.

25 - Não tendo com que pagar, ordenou o senhor que o vendesse como escravo e também a esposa, os filhos e tudo o que possuía, para saldar a dívida..

26 - Então o servidor se atirou ante seus pés e, prostrado, dizia-lhe: "Senhor, tem paciência comigo, e eu te pagarei tudo.

27 - Compadecido daquele servo, o senhor o deixou ir livre e perdoou-lhe a dívida.

28 - Depois que saiu, aquele servidor encontrou um de seus companheiros de serviço que lhe devia cem denários. Agarrando-o, sufocava-o, dizendo: "Entrega-me o que me deves."

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29 -Então o companheiro, atirando-se ante seus pés, suplicava-lhe assim: "Tem paciência comigo, e eu te pagarei."

30- Mas ele não atendeu. Foi e mandou encerrá-lo na prisão até que pagasse a dívida.

31 - Vendo o que se passava, seus companheiros de serviço ficaram profundamente sentidos e foram contar ao senhor tudo que acontecera.

32 - Então o senhor o fez vir de novo a sua presença e lhe disse: "Servidor mau, perdoei ioda esta dívida porque me suplicaste.

33 - Não devias tu também ter compaixão de teu companheiro, como eu tive compaixão de ti 7".

34 - Cheio de ira, o senhor o entregou aos algozes, até que pagasse toda a dívida.;

35 - Assim também vos tratará meu Pai celeste, se, no íntimo de vossos corações, não perdoardes cada um a seu irmão."

Também na Babilónia, no Código de Hamurabi, elaborado no reinado que perdurou de 2067 a 2025 a.C, temos uma das mais antigas coieções de leis, escritas em caracteres c une i formes e em língua acadiana. Esse acervo legal modificou antigos códigos e serviu de modelo não só para a antiga Mesopotâmia como também para todos os países do Oriente próximo.

"Hamurabi (2067/2025 a.C), também chamado de Kamu-Rabi (de origem árabe), rei da dinastia amorrita que, vindo do deserto arábico, estabelaceu na média mesopotâmia, foi o reunificador da Mesopotâmia e fundador do Primeiro Império Babilónico... A centralização jurídica - na realidade a maior realização do governo de Hamurabi - foi possível devido à elaboração de código de leis. O Código de Hamurabi é um dos mais antigos documentos jurídicos conhecidos. Baseado em antigas leis semitas e sumcrianas (Código de Dungi), foi transcendentalmentc importante para história dos direitos babilónicos, para o direito asiático e, particularmente, para o direito hebreu. Compunha-se de 282 artigos, 33 dos quais se perderam devido à deterioração da coluna de pedra basáltica onde estavam inscritos em caracteres cuneiformes gravados em uma Esteia de diorito negro com 2,25 m de alLura, 1,60 m de circunferência e 2,00 m de base, achada na cidade de Susa, na Pérsia, por uma expedição francesa chefiada pelo arqueólogo Jaques de Morgan; encontra-se hoje no museu do Louvre, em Paris" (Código de Hamurabi, 1984).

No Código há dispositivos a respeito de praticamente todos os aspectos da vida social babilónica, abrangendo assuntos como falsa acusação, feitiçaria, serviço militar, regulamento de negócios e Lerras, leis de família, tarifas, salários, comércio, propriedade, herança, escravidão, empréstimos e dívidas, sendo os delitos acompanhados da respectiva punição, mas variando de acordo com a categoria social do infrator e da vítima.

O dispositivo legal estabelece uma ordem baseada nos direitos do indivíduo e tem como princípio geral que "o forte não prejudicará o fraco", deixando ver a existência da prisão civil por dívida e de severos castigos, inclusive a morte, em seus artigos 115,116 e 117:

"Art. 115- Se um homem tem exigências de grão ou de prata sobre um outro e tomou sua garantia e a garantia morreu de morte natural, na casa de seu credor, este caso não terá processo. Art.l 16 - Se a garantia morreu na casa de seu credor por pancada ou mau-traío, o dono da garantia comprovará contra seu mercador. Se a garantia foi o filho, matarão o filho; se foi um escravo, ele pesará 1/3 de mina de prata e além disso perderá tudo que tiver emprestado. Art.l 17- Se uma dívida pesa sobre um homem e ele vendeu sua esposa, seu filho e sua filha ou entregou-se em serviço pela dívida: trabalharão durante três anos na casa de seu comprador ou daquele que os tem em sujeição. No quarto ano será feita a sua libertação". Tais dispositivos revelam, portanto, enorme preocupação no que pertine às dívidas, ensejando a segregação física do devedor, que poderia morrer no caso de falecimento da garantia por pancada ou maus-tratos, ou, então, ceder o trabalho da mulher e do filho do devedor ao credor, pelo período de três anos.

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Na índia, no Código de Manu1, a prisão civil por dívida recebeu tratamento de molde a influenciar a vida social e religiosa da índia até os dias atuais, explicitando-os nos parágrafos ] 80/184 e...

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