History of a fracture: social disaggregation as the foundation of the Brazilian socio-historical formation/ Historia de uma fratura: a desagregacao social como fundamento da formacao socio-historica brasileira.

AutorBecher, Mariela Natalia
CargoLutas, Cidadania e Direitos Humanos

Introducao

Das leituras propostas por Caio Prado Jr., sobre a formacao social brasileira, surgiram ao menos dois caminhos de interpretacao: ha, por um lado, analises centradas em entender a regressao do progresso e as consequencias do projeto civilizatorio para a America Latina. Este projeto trouxe consigo a proposta de modernizacao tardia, aprofundando um processo de de(s)composicao/desagregacao social iniciado durante a colonizacao. Por outro lado, ha o modo de ver este desenvolvimento apenas como a forma particular que a expansao capitalista adquire na periferia (proprio de um pensamento dualista). E, tambem, uma maneira de superar o problema do ingresso da modernidade num caminho nao classico, que explica os problemas de nossas revolucoes, por meio do desenvolvimento necessario para que ela desse um salto ate se nivelar as economias centrais.

A proposta deste trabalho e aprofundar as leituras que abriram o primeiro caminho de analise sobre a regressao da modernidade e o processo de desagregacao social que ela originou, ainda hoje crescente no Brasil e America Latina.

Mostrar o eixo historico que da unidade a falta de "nexo moral" na formacao permite compreender, de maneira mais profunda, o nivel de "descomposicao" social que se desenvolve ate hoje na periferia dentro do contexto do capitalismo contemporaneo.

A formacao da fratura brasileira

O nascimento do Brasil, a partir da colonia, se da pela conjuncao dos "nucleos opostos"; por um lado, um "nucleo organico" do sistema colonial de producao, localizado no trabalho dos escravos do litoral e, por outro, sua "periferia inorganica",

um numero mais ou menos avultado de individuos desamparados, evidentemente deslocados, para quem nao existe o dia de amanha, sem ocupacao formal e fixa, ou desocupados inteiramente, alternando o recurso a caridade com o crime. (PRADO JR., 2000, p. 293).

Esse setor "inorganico" vive numa situacao caotica, tornando-se um mero apendice da grande exploracao, "a estrutura social, a organizacao politica e as formas culturais", todas elas se subordinando a grande exploracao (RICUPERO, 2000, p. 140).

Por esta razao, para Caio Prado Jr. (1942) o fundamento da colonia e uma "empresa comercial" destinada a explorar os recursos humanos e naturais necessarios para o comercio europeu. E neste sentido que surge a America Latina e, mais especificamente, o Brasil; este e o carater constitutivo que se mantera ao longo de tres seculos e que fara da America Latina o que e hoje.

O sentido da colonia, desde o comeco, nao era povoar o territorio. O "comercio" era o que interessava aos colonizadores, por isso houve esse desprezo pelo povo primitivo da America. A ideia era "ocupar [...] apenas como agentes comerciais, funcionarios e militares para a defesa, organizados em simples feitorias destinadas a mercadejar com os nativos e servir de articulacao entre as rotas maritimas e os territorios ocupados." (PRADO JR., 2000, p. 12-20).

A medida que se desenvolvem as diferentes atividades de extracao dos recursos, comeca-se a ver a necessidade de

[...] ampliar estas bases, criar um povoamento capaz de abastecer e manter as feitorias que se fun-dassem e organizar a producao dos generos que interessassem ao seu co-mercio. A ideia de povoar surge dai, e so dai. (PRADO JR., 2000, p. 12-20).

Desta maneira, a vida colonial no Brasil sofrera a falta de um "nexo moral" (PRADO JR., 2000, p. 357), definindo-se pela desagregacao, pelas forcas dispersas. Estes setores "inorganicos expulsos" vivem nas areas pobres e nao podem gerar uma organizacao economica significativa (DIAS, 1989, p. 386).

E isto, em resumo, que o observador encontrara de essencial na sociedade da colonia: de um lado uma organizacao esta ai no que diz respeito a relacoes sociais de nivel superior; doutro, um Estado, ou antes um processo de desagregacao mais o menos adiantado, conforme o caso, resultante ou reflexo do primeiro, e que se alastra progressivamente. (PRADO JR., 2000, p. 356).

De acordo com o livro "Formacao do Brasil contemporaneo" (PRADO JR., 1942), no plano das realizacoes humanas criava-se "algo novo", que se concretizava num organismo social complexo e distinto com uma populacao bem diferenciada etnica e territorialmente, com uma estrutura material particular, constituida com base em elementos proprios, com uma organizacao social definida por relacoes especificas e ate com certa "atitude" mental coletiva particular. (PRADO JR., 2000, p. 2).

O que define esse "inorganico", esse antagonismo, esse eixo central para entender o processo de formacao do Brasil depois da conquista, nos quais ha falta de "nexo moral", visto em seu sentido mais amplo como "o conjunto de forcas de aglutinacao, complexo de relacoes humanas mas que mantem ligados e unidos os individuos de uma sociedade e os fundem num todo coeso e compacto" fica inconcluso. Ao contrario, na sociedade colonial, as relacoes se definem pela "inercia", que apesar de ser "infecunda da uma certa estabilidade a estrutura colonial.". O que mantem a precaria integridade do conjunto sao os "lacos materiais primarios, economicos e sexuais." (PRADO JR., 2000, p.357). Foi com base nisto que a sociedade se manteve e desta maneira a colonia pode continuar.

Os elementos que dao organicidade sao os mesmos que produzem contradicoes inorganicas. Para Caio Prado Jr., a organizacao juridicopolitica e a estrutura economico-social do pais sao um exemplo desta relacao: por um lado, configura-se um "Estado Nacional" segundo o modelo do centro capitalista, transplantando para as colonias instituicoes liberais que garantiam a cidadania; por outro lado, ha producao voltada para necessidades estranhas a populacao local, o que origina "uma maior exclusao para os habitantes." (1957, p. 63).

O Brasil (e a America) foi constituido tanto por aqueles que o povoaram com o fim comercial pelo qual surgiu, quanto pelas massas indigenas que o habitavam antes da conquista, brutalmente arrastadas para o trabalho escravo. Desta forma, iniciou-se a caca do homem pelo homem, as expedicoes predatorias de gente, em que milhares e milhares de pessoas foram iniciadas na "'beleza' da civilizacao" (PRADO JR., 1957, p. 23). Tambem fizeram parte desse regime os escravos trazidos da Africa, assim como uma parte dos colonizadores que, por alguns periodos e em determinadas regioes, tiveram que se submeter a escravidao.

Segundo Franco realiza-se uma composicao da sociedade nacional em que existe um amplo setor formado por "homens livres na ordem escravocrata": em sua maioria pauperizados, relegados a servicos residuais que, em grande parte, nao podiam ser realizados por escravos ou nao interessavam aos homens com patrimonio. Ocupando o lugar "intermediario" entre a escravidao e os latifundiarios, estes homens nao podiam nem obedecer a norma em sua totalidade nem despreza-la, um setor que ficava fora dos setores instituidos pela colonia (FRANCO apud ARANTES, 1992, p. 46, 69, 73).

No periodo de colonizacao do Brasil,

a populacao livre, mas pobre, nao encontrava lugar algum naquele sistema que se reduzia ao binomio 'senhor e escravo'. Quem nao fosse escravo e nao pudesse ser senhor, era um elemento desajustado, que nao se podia entrosar normalmente no organismo economico e social do pais. Isto que ja vinha dos tempos remotos da colonia, resultava em contingentes relativamente grandes de individuos mais ou menos desocupados, de vida incerta e aleatoria, e que davam nos casos extremos nestes estados patologicos da vida social: a vadiagem criminosa e a prostituicao. Ambos se disseminavam largamente em todas as regioes de certa densidade demografica. (PRADO JR., 1981, p. 148).

A fratura: acumulacao primitiva-empresa comercial

Prado Jr. e um dos primeiros pensadores marxistas latino-americanos a colocar a ideia da nao existencia do feudalismo nas colonias da America Latina, afirmando que a conquista foi uma "grande empresa colonial" pensada com a finalidade de obter materias-primas. O "sentido da colonia" e levado "para fora" ate o comercio europeu, por uma necessidade do capital de se constituir nos tropicos como fonte de...

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