O homem. Aspectos internacionais
Autor | Carlos Roberto Husek |
Ocupação do Autor | Desembargador do TRT da 2ª Região Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro da Academia Paulista de Direito, Membro da Comunidade de Juristas da Língua Portuguesa |
Páginas | 356-371 |
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O Direito Internacional preocupa-se com o Homem, embora ainda exista resistência em considerar o ser humano sujeito nas relações internacionais, normalmente dominadas pelos Estados. Entretanto, a nós nos parece natural levar em conta o Homem, porque o Direito é, por si só, uma expressão da vontade humana, e, por mais técnicas que sejam suas regras, voltam-se elas, em última análise, para o ser humano.
Não queremos, com isso, olvidar a existência de regras, tratados internacionais, costumes, etc., cujo objetivo é o Estado, sua atuação, seus problemas, ou os organismos internacionais, a estrutura destes, os direitos e deveres de tais entes na sociedade internacional, porque esse contexto absorve o Direito Internacional, mas por trás de suas linhas o Homem aparece. Sem ele, o Direito não teria razão de ser.
Assim, não temos mais o Direito Internacional como o Direito dos Estados, porque o Homem passou a ter vez, individualmente ou em grupo. Hoje se fala em direito das minorias, das crianças, das mulheres, direito à saúde e outros em nível internacional.
Os Estados mantêm competência para tratar desses assuntos; porém, estes ultrapassam as fronteiras e muitas vezes fogem do domínio estatal.
Em matéria de direitos do Homem, o Direito Internacional atribui, em grande parte, deveres ao Estado e ao mesmo tempo visa a proteger aqueles que vivem sob a influência das ordens internas.
É a partir do ser humano que as organizações são criadas e os sistemas jurídicos funcionam. O Homem, não importa o Estado, é um cidadão do mundo e, como tal, deve ser protegido.
As regras internacionais conferem direitos e deveres ao Homem, e é de se esperar que de alguma forma possa o ser humano vir a reivindicar tais direitos e, também, ser responsabilizado por agir em desacordo na esfera internacional.
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A esse tipo de atuação damos o nome de personalidade, sujeito de direitos e obrigações, que não precisa, necessariamente, ser igual para todos os entes da sociedade internacional, como não o é nas sociedades internas. Nestas, alguns têm capacidade maior de fazer valer seus direitos, outros necessitam de ser assistidos e outros, ainda, só têm voz por meio da representação.
Gérson de Brito Mello Boson escreveu página esclarecedora sobre o assunto, a qual transcrevemos, porque não poderíamos fazer melhor:
Personalidade, nas instâncias científicas e técnicas do Direito, é conceito significativo de um conjunto, mais ou menos amplo, de direitos subjetivos e obrigações correlatas, declarados e delimitados em normas jurídicas, constitutivas do bloco normativo, interno e internacional, dentro do qual se aprecia o conceito. Não há personalidade jurídica sem normas jurídicas, nem estas sem a personalidade, no sentido exposto. É motivo de repulsa ao normativismo a pretensão de excluir os direitos subjetivos, através de artificiosa dissociação de conceitos, que afinal reduz o Direito a meros pensamentos lógicos, sistematizados. A ideia do Direito é ideia complexa, de que as normas jurídicas constituem tão só o elemento estático, vinculativo - por compreensão - dos demais. Um código é, em si mesmo, um romance insípido, que requer do leitor a imaginação necessária e fértil, capaz para a representação das personalidades, matéria-prima na estrutura vital do grupo organizado.
Isto quer dizer que onde há direitos subjetivos, há personalidade, sendo impossível negá-los onde norma os declare, pouco importando que se alcance o gozo ou exercício de tais direitos através de procedimentos diretos ou indiretos, simples ou complexos, segundo a construção normativa estabelecida.
A capacidade jurídica de agir pressupõe a personalidade, e não o contrário. A capacidade de agir é um desdobramento da personalidade, que, por sua vez, se desdobra em capacidade processual de agir e esta, em direito de postular, perante instâncias internacionais, na forma que for determinada pelos criadores de tais instâncias. Assim, a verificação de que normas de Direito Internacional declaram direitos subjetivos individuais basta para, em conceitos de realidade jurídica, excluir as deduções dos que negam a personalidade internacional do Homem, baseados em argumentos rotineiros de processualística.230
Disse tudo o doutrinador mencionado, e a clareza de seu pensamento serve-nos, agora, para a mensagem que queremos divulgar.
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Os entes criados pelo Homem, a exemplo do Estado - talvez o maior deles -, não teriam sentido, nem mesmo existência, se o Homem se afastasse.
Vivemos uma época em que se valoriza o indivíduo nas relações internacionais. Reconhecem os internacionalistas que deve o Homem ser protegido, e diríamos até contra o próprio Estado de que é ele nacional, se o Estado infringir os direitos mínimos a ele consagrados historicamente.
Não é mais o Estado dono de tudo e de todos, soberano absoluto. Cada vez mais se constata, como imperativo da convivência internacional, a relatividade dessa soberania (ver capítulo VII).
Aliás, a relatividade de tudo na vida é, quem sabe - permitam-nos o arroubo filosófico -, a única verdade absoluta.
Deixemos de lado, contudo, tais considerações, para especificarmos que os direitos internacionais do Homem começaram a ser valorizados juntamente com a ideia da soberania relativa do Estado.
O Homem, sem dúvida, goza de personalidade jurídica internacional, ainda que esta não se manifeste com a mesma desenvoltura da dos Estados e dos organismos internacionais; mas, também, assim não é nas sociedades internas entre os próprios indivíduos, todos com personalidade, todos com capacidade de direito e nem todos com capacidade de fato.
Na esfera internacional, acontece mais ou menos o mesmo: os Estados têm capacidade plena; os indivíduos não. A Carta das Nações Unidas, em vários de seus dispositivos, fala em "direitos do Homem". Pode-se entender que os Estados não estariam obrigados a obedecer a essas regras; porém, uma das finalidades da ONU é a proteção de tais direitos. Vejamos os textos correspondentes:
Art. 1º Os propósitos das Nações Unidas são (...) 3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; (...).
Art. 13, 1. A Assembleia Geral iniciará estudos e fará recomendações, destinados a: (...) b) promover cooperação internacional nos terrenos econômico, social, cultural, educacional e sanitário, e favorecer o pleno gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, por parte de todos os povos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.
Art. 55. Com o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar necessárias às relações pacíficas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos
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e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: (...) c) o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.
Art. 62. (Atribuições do Conselho Econômico e Social) (...) 2. Poderá igualmente fazer recomendações destinadas a promover o respeito e a observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos.
Art. 76. Os objetivos básicos do sistema de tutela, de acordo com os Propósitos das Nações Unidas enumerados no art. 1º da presente Carta, serão: (...) c) estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião, e favorecer o reconhecimento da interdependência de todos os povos; (...).
Desse modo, se uma das finalidades da ONU, como está bem expresso em seus propósitos (art. 1º), é promover e estimular os direitos humanos, os Estados-membros são obrigados a agir em torno desse objetivo.
Alguns documentos na História têm importância para a evolução dos direitos do Homem. Abaixo destacamos alguns:
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Magna Carta Libertarum - Foi outorgada pelo rei inglês "João Sem Terra", em 1215. Essa Carta fixou alguns princípios e foi o primeiro instrumento arrancado de um soberano pelo grosso da Comunidade politicamente articulada, com o objetivo de impor preceitos compulsórios que nem mesmo o soberano podia violar.
Vamos ressaltar alguns dispositivos: 1) reconhecimento da inviolabilidade dos "direitos e liberdades" da Igreja na Inglaterra; 2) o compromisso de não lançar tributos sem o consentimento do Conselho Geral do reino; 3) o estabelecimento da regra de proporcionalidade entre as multas e a gravidade dos delitos; 4) a proibição do confisco de bens por parte de xerifes e bailios;
5) a afirmação de que nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado de seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com as leis do país; 6) a admissão da liberdade de entrar e sair do reino, "em paz e segurança", exceto em tempo de guerra.
Essa Carta foi confirmada por outros soberanos.
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Petição de Direitos - Redigida pelo Parlamento e...
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