O Homem-Seta

AutorJorge Luiz Souto Maior
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí
Páginas164-174

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“Quando o dedo aponta o céu, o idiota olha para o dedo.” (provérbio chinês)

Meu corpo não é meu corpo

É ilusão de outro ser Sabe a arte de esconder-me

E é de tal modo sagaz

Que a mim de mim ele oculta (DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos, “As contradições do corpo”)

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1. Introdução

Quem nunca se deparou, aos finais de semana, com uma série de setas indicativas dos mais novos apartamentos à disposição no mercado? Elas são grandes, coloridas e povoam as grandes avenidas, indicando, precisamente, aquilo que se busca: dois quartos? Suíte? Vaga na garagem? Está tudo ali e, seguindo uma a uma, estaremos todos perfeitamente guiados ao que há de mais atual em lançamentos do mercado imobiliário.

Não é preciso mapa, GPS ou mesmo o velho método de perguntar para alguém na rua, o que geraria, facilmente, a desistência à primeira dificuldade em encontrar o caminho. A oferta é enorme, de modo que, se houvesse qualquer empecilho em achar um, procurar outro seria prontamente a solução. As setas são, assim, ingrediente de fundamental importância ao sucesso de vendas de um novo empreendimento.

Muito embora não haja praticamente uma só pessoa que nunca tenha se deparado com tais setas, poucas ou quase nenhuma seriam capazes de descrever um dos seres humanos por detrás delas, se homem ou mulher, branco ou negro, alto ou baixo.

São anônimos que, durante o dia todo, indicam o caminho, fazendo da seta um adorno do próprio corpo, ainda que, paradoxalmente, o corpo mesmo se torne invisível se comparado a ela. “O corpo está ali, mas não é notado — está encoberto, disfarçado, dissimulado. Torna-se uma ausência visível [...]. É a estética da ausência”1.

Desse modo, ainda que imprescindíveis para a venda dos grandes lançamentos, pouco importa o ser humano que carregará essas setas penduradas ao corpo, bastando que essas pessoas ali permaneçam em pé, sem se sentar em momento algum, isoladas, sem qualquer diálogo com outros “colegas-setas” que, provavelmente, estarão a alguns bons metros de distância.

Uma cabeleira cor-de-rosa ou verde, um nariz de palhaço, luvas de Mickey gigantescas, pouco importa. Eis que surge numa esquina, e replica-se em outras dez, o personagem mais solitário do verão paulistano, o homem-placa das novas incorporações imobiliárias.2

Ainda que invisíveis, vez que sua função é fazer com que se olhe para o “céu” — o caminho para a felicidade capitalista consubstanciada, aqui, num apartamento próprio — e não para o “dedo” — no caso a seta que ostentam —, não há como simplesmente negar a existência dessas pessoas.

Iguais a tantos outros trabalhadores que ganham nomenclaturas próprias a fim de se sentirem, de alguma forma, inseridos num sistema que acaba por excluí-los ainda mais, o advento da figura do homem-seta acompanha a lógica de crescente nominalismo de ditas novas profissões, que, curiosamente, traz consigo o declínio dos direitos a elas concedidos.

Em paralelo a essa linha da evolução nominativa nas relações de trabalho, desenha-se outra em sentido inverso, de natureza involutiva (para criar mais um nome...) no que tange à efe- tivação dos direitos trabalhistas. Em outras palavras, a uma melhora na forma de nominação contrapõe-se, paradoxalmente, uma piora no que tange à consagração de direitos, sobretudo de natureza social.3

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O capital, por sua vez, lança-se como o grande salvador, concedendo a quem se encontrava como mais um soldado do enorme exército de reserva4, a possibilidade de ostentar uma “profissão” adequada ao que há de mais moderno quando se trata de novas demandas de marketing do mundo empresarial5.

A análise das condições desses trabalhadores consubstancia, assim, um terreno novo e imprescindível à análise das novas formas de trabalho(?) engendradas pelo capitalismo que se diz, não raro, orgulhoso de inserir(?) pessoas antes desempregadas à sua engrenagem.

2. Um olhar sobre o invisível

“Falemos com toda franqueza: nem de longe sou um partidário desse trabalho. Caracteristicamente, nem a dignidade da publicidade, nem a do homem são elevadas através dessa penosa profissão.”

(Walter Benjamin, sobre os homens-placas de Paris na década de 1930)

A origem dessa nova forma de trabalho tal qual tratada no presente artigo remonta à Lei Municipal n. 14.223, de 6 de dezembro de 2006 que, em seu art. 18, passou a proibir, no âmbito do município de São Paulo, a colocação de anúncio publicitário nos imóveis públicos e privados, edificados ou não.

Proibindo a propaganda em outdoors na cidade, a chamada Lei Cidade Limpa regula, ainda, o tamanho de letreiros e placas de estabelecimentos comerciais, entre outras providências.

Em seu art. 6º, inciso I, define anúncio como sendo “qualquer veículo de comunicação visual presente na paisagem visível do logradouro público, composto de área de exposição e estrutura”. O anúncio publicitário, por sua vez, é “aquele destinado à veiculação de publicidade, instalado fora do local onde se exerce a atividade” (alínea “b”) e o anúncio especial, “aquele que possui características específicas, com finalidade cultural, eleitoral, educativa ou imobiliária” (alínea “c”).

Outrossim, define bem de uso comum como “aquele destinado à utilização do povo, tais como as áreas verdes e institucionais, as vias e logradouros públicos, e outros”.

Referida lei, utilizando-se das definições supra, proíbe a instalação de anúncios em “vias, parques, praças e outros logradouros públicos” (art. 9º, II).

Por fim, determina que anúncio especial de finalidade imobiliária deve “estar contido dentro do lote” (art. 19, IV).

Frente à nova legislação, as placas que ficavam sobre as calçadas indicando o caminho a seguir para os grandes lançamentos imobiliários tiveram, então, que ser banidas. Como indicar o caminho e, assim, garantir a visibilidade exigida pelo mercado a cada novo lançamento?

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Entra em cena, mais uma vez, a capacidade de reinvenção do próprio sistema, que vê nos seres humanos usados como suporte de setas indicativas, a grande saída, fazendo com que um indivíduo permaneça estático em qualquer calçada, seja de espaço público ou privado, ostentando um ornamento no pescoço.

São os homens-setas, um dos principais fenômenos do marketing moderno usados para o mister objetado pela lei, por vias transversas.

Apresentados como uma derivação dos homens-placas ou homens-sanduíches especialistas na venda de ouro no centro de São Paulo, são vistos, não raro, como uma forma de ascensão na carreira em matéria de mídia publicitária.

Eles não falam, não sentam e pouco se movimentam. Permanecem nas esquinas das grandes avenidas indicando onde se encontra o lançamento imobiliário mais próximo. A interação com o público ou com qualquer outra pessoa é absolutamente nula nas 8 horas que despendem na função, o que os diferencia dos citados homens-placa que, ao menos, usavam a voz além do próprio corpo para anunciar o produto que vendiam. Talvez a mão de obra para esse tipo de promoção tenha ficado cara demais; [...] Sobra o pessoal mais de baixo ainda, incapaz, provavelmente, de contato direto com o público, nem que seja para entregar um papel pela janela. Esses homens e mulheres- -placa não se comparam sequer ao guardador de carros, que precisa impor certa presença ao cliente incauto. Estão ali graças à sua inexistência social. Só que sua função, paradoxalmente, é a de serem vistos; um cabelo azul, um gesto repetitivo apontando o caminho, já bastam.6

Por mais que a lei municipal seja clara quanto à proibição de propaganda imobiliária em via pública, construtoras e incorporadoras lançam mão deste tipo de veiculação, sem qualquer constrangimento.

Em fevereiro de 2012, a Comissão de Proteção à Paisagem Urbana (CPPU)7, considerando a necessidade de dirimir dúvidas na interpretação e aplicação de disposições da Lei Municipal
n. 14.223 quanto aos anúncios especiais de finalidade imobiliária, utilizando-se do enunciado transcrito no inciso IV do art. 19 de indigitada lei, proibiu a utilização dos homens-seta.

Todavia, de acordo com reportagem do Diário de São Paulo, datada de 15 de julho de 2012, constatou-se que nem a Lei Cidade Limpa, tampouco a proibição da CPPU foram suficientes para inibir a divulgação desses empreendimentos imobiliários na cidade de São Paulo por meio dos chamados homens-seta ou homens-placa.

Na oportunidade, manifestou-se o Sindicato da Habitação (Secovi-SP)8:

Se estivesse claro na lei que usar homens-seta é proibido, as empresas começariam a se readequar. É uma questão que deve ser debatida. Também não cabe ao Secovi fiscalizar as construtoras. E as condições de trabalho desses funcionários não são de responsabilidade das incorporadoras.

E acrescentou: os homens-seta precisam desse trabalho para sobreviver, apesar de as empresas que contratam essas pessoas desrespeitarem as leis trabalhistas. Se é errado contratá-los, seria ilegal da mesma forma o trabalho de uma modelo que fica quatro horas em pé em um evento.

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O mesmo pôde ser constatado em pesquisa realizada nas imediações do Fórum Trabalhista Ruy Barbosa, no Bairro...

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