Homicídio Qualificado
Autor | Fernando de Almeida Pedroso |
Ocupação do Autor | Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras |
Páginas | 103-134 |
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O homicídio qualificado ocupa posição diametralmente oposta à do homicídio privilegiado, estudado no capítulo anterior. O tipo legal delitivo original, fundamental e básico de ambas as figuras é o mesmo: o homicídio (art. 121, CP), no qual aderem, todavia, circunstâncias meramente acidentais (v. n. 2.7 e 3.1) que introduzem no crime modificações unicamente quantitativas. No homicídio privilegiado ocorrem circunstâncias que fazem decrescer a reprovabilidade do crime, lenindo e mitigando a sua pena. No homicídio qualificado, ao contrário, agregam-se circunstâncias que conduzem à exacerbação da sanctio juris, elevando e intensificando a reprovabilidade do delito.
O princípio da reserva legal submete à sua disciplina o crime e a pena e deter-mina que ambos não existem sem prévia consagração e previsão em lei (art. 1º, CP). Se crime e pena somente podem ser considerados diante de texto expresso de lei, é inarredável que qualquer circunstância que deva influir neste binômio também necessitará de previsão legal. Sendo a circunstância acidental um fator que emite reflexos na quantidade da reprimenda cominada ao delito, é translúcido que igualmente requer anterior contemplação legal. Não há circunstância acidental, como corolário do princípio da anterioridade ou legalidade, sem prévia previsão em lei. Dessa forma, é vedado ao aplicador da lei, ao seu talante, arbítrio e alvedrio, considerar, na calibragem da pena, circunstâncias que não se encontram explicitadas em texto legal, embora essa previsão possa conferir certa amplitude ou elastério ao julgador205.
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Constituem circunstâncias qualificadoras do homicídio aquelas especificamente determinadas para aplicação a esse crime e que, exclusivamente a ele vinculadas, têm o efeito relativo à majoração da pena, porque indicam maior reprovabilidade no comportamento criminoso.
Para este fito, o Código contemplou circunstâncias concernentes aos motivos do próprio crime (art. 121, § 2º, n. I e II), aos motivos conexos com outro delito pelos fins particularmente visados (art. 121, § 2º, n. V), aos meios (art. 121, § 2º, n. III), à forma de execução (art. 121, § 2º, n. IV) e, finalmente, ao gênero da vítima (art. 121, § 2º, n. VI).
Algumas circunstâncias apresentam natureza subjetiva e pessoal (as que resultam dos motivos - n. I, II, V e VI) e, sendo acidentais, não se comunicam a eventuais coautores ou partícipes (art. 30, CP) e outras ostentam índole objetiva e meramente fática (n. III e IV), de sorte que - como ainda será examinado - são comunicáveis aos coautores ou partícipes, se deles conhecidas.
O CP não previu no elenco das qualificadoras a premeditação, considerada por algumas legislações estrangeiras como gravame peculiar do delito e, tampouco, eventual relação de parentesco entre agente e vítima (parricídio, matricídio, uxoricídio, fratricídio) como circunstância que devesse estigmatizar o homicídio de forma particular.
A premeditação, que se caracteriza pelo planejamento prévio e pela deliberação antecipada do crime e requesta um interstício temporal, um hiato de tempo entre a determinação criminosa e a sua consecução, não obteve o aceno da lei penal para a sua inclusão no rol das qualificadoras e sequer foi considerada na função de agravante. Isso se deve, explica Heleno Cláudio Fragoso, ao fato de a premeditação nem sempre revelar maior frieza ou perversidade, pois pode, ao contrário, indicar hesitação ou resistência à ação criminosa. Premeditadamente pode ser cometido um homicídio por motivo de relevante valor social ou moral (não, é claro, sob a violenta emoção privilegiada, em face de sua imediatidade - n.a.), e pode também o crime ser praticado ex improviso, por motivo fútil, a revelar excepcional insensibilidade moral por parte do agente206. A
premeditação, quando muito, somente poderá ser considerada pelo julgador, facultativamente, como circunstância judicial de aplicação da reprimenda para a fixação da pena-base com espeque no art. 59 do CP.
De outro turno, no que atine à simples condição pessoal da vítima (velho ou enfermo, mulher grávida, menor de 14 anos... - v. n. 2.8) ou com possível relação de parentesco com o agente (parricídio, matricídio, uxoricídio, fratricídio - respectivamente: homicídio contra o pai, mãe, cônjuge ou irmão), a lei preferiu desprezá-las no conjunto das qualificadoras, onde somente inseriu circunstâncias relativas aos motivos, fins particularmente visados, meios e modo de execução, para situá-las, quiçá pelo entendimento
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de que não envergam necessariamente uma periculosidade maior do agente, na enumeração das agravantes (art. 61, n. II, alíneas e e h, CP) ou na condição de causa especial de aumento da reprimenda (art. 121, § 4º, in fine, CP).
É também forçoso notar que a lei penal, ao erigir as qualificadoras, empregou em alguns casos expressões genéricas e imprimiu-lhes, precedentemente, forma exemplificativa, de modo a deixar em aberto no campo da previsão legal a possibilidade da inclusão, por equiparação (exegese extensiva), de outras hipóteses não expressamente declinadas, mas restritas sempre à semelhança com os exemplos fornecidos (trata-se de interpretação analógica intra legem, e não de analogia incriminadora, vedada pelo princípio da reserva legal). Assim, recorrendo o CP a uma forma casuística ilustrativa das expressões genéricas e amplas utilizadas, é evidente que estas ensejam a subsunção e o encarte de outras hipóteses que não foram explicitamente destacadas no dispositivo, mas que guardam similaridade com as utilizadas para a ilustração. Como observa José Frederico Marques, o dispositivo contém forma elástica, pelo que os exemplos dados, por serem tais, não esgotam as espécies tipificáveis como qualificadoras do homicídio. No entanto, por precederem à fórmula genérica, a ela fixam limites intransponíveis, visto que obrigam o intérprete a não ir além dos casos semelhantes aos que no texto se enumeram207. De outro modo, ressalta Nélson Hungria, seria inteiramente ociosa a exemplificação, além de que redundaria no absurdo de equiparar, grosso modo, coisas desiguais. A exemplificação que antecede ou se segue às expressões genéricas, complementa Hungria, traça as fronteiras e limites de incidência da norma208.
Calha ilustrar.
No inciso I, § 2º, do art. 121 do CP, a lei utilizou o homicídio mercenário (mediante paga ou promessa de recompensa) como fórmula casuística de exemplificação de sua qualificadora e lhe acresceu, adiante, a expressão genérica ou por outro motivo torpe, que é a verdadeira e própria majorante. Destarte, outros casos além do próprio homicídio mercenário, embora a eles a norma não faça expressa referência, podem enquadrar-se no campo de abrangência da qualificadora, desde que semelhantes ao exemplo destacado. Sob esse prisma, a cobiça ou cupidez, a ambição, o mero prazer de matar, a luxúria, o despeito ou inveja etc. igualmente caracterizam a torpeza do motivo.
No inciso III do dispositivo incriminador, a lei louvou-se no fogo e no explosivo como fórmulas exemplificativas de ou outro meio de que possa resultar perigo comum, de sorte que não apenas os casos explicitamente mencionados se enquadram no setor da tipificação, mas, ainda, verbi gratia, por semelhança, não obstante sem expressa menção na lei, a morte da vítima causada mediante a sua contaminação por meio de objeto impregnado com germes e bactérias de alta virulência, pois é irrefragável o perigo comum emergente do meio utilizado.
Conclui-se, portanto, que quase todas as qualificadoras do homicídio (exceto a concernente ao motivo fútil, as relativas aos fins particularmente visados e ao gênero da
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vítima - n. II, V e VI) têm previsão legal de natureza aberta ou elástica, porque alargam a compreensão do fato e deixam o exame de sua conformidade típica submetido a uma complementação por avaliação fática ulterior.
As qualificadoras do homicídio foram também previstas na função de agravantes dos crimes em geral (art. 61, CP). Dessa maneira, uma circunstância idêntica não é azada para produzir de forma dúplice os seus efeitos, o que violaria a regra ne bis in idem. Por via de consequência, quando se trata de homicídio, deve-se desprezar a previsão geral (agravante) para o predomínio da específica (qualificadora), pois lex specialis derogat legi generali.
Por último, desnecessário é realçar que as qualificadoras referidas constituem exclusividade do crime na sua modalidade dolosa e não alcançam, porque até então não houve explícita menção à culpa (cf. n. 6.5), o homicídio culposo (art. 18, § único, CP). Nessa conjuntura, a morte que, por imprudência ou negligência, decorra de asfixia, veneno, explosivo, fogo etc. escapa do âmbito de incidência do § 2º do art. 121 do diploma penal e se aloja unicamente no quadrante incriminador do § 3º do dispositivo.
A primeira circunstância arrolada como qualificadora do homicídio foi o motivo torpe, que a lei ilustrou com o exemplo do homicídio mercenário (art. 121, § 2º, n. I, CP).
Motivo, vimos anteriormente (n. 3.2), é o antecedente psíquico da ação, a força que põe em movimento o querer e o transforma em ato (Maggiore).
Motivo torpe é o motivo infamante, vil, ignominioso e desprezível, que denota depravação do espírito e agride o senso ético, capaz de causar um sentimento de revolta, aversão, repulsa e repugnância. É - aponta Nélson Hungria - o motivo abjeto e ignóbil, que imprime ao...
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