Eficácia horizontal do due process laboral ? refl exões sobre o direito fundamental a um procedimento trabalhista justo como fator de controle do poder privado empregatício

AutorNey Maranhão
CargoJuiz Titular da Vara do Trabalho de Itaituba (PA) (TRT da 8a Região ? PA/AP)
Páginas143-157

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“Que é a experiência jurídica senão uma forma de experiência cultural, um instrumento de civilização? (...) o direito não é um presente, uma dádiva, algo de gracioso que o homem tenha recebido em determinado momento da História, mas, ao contrário, o fruto maduro de sua experiência multimilenar.”1

Due process não pode ser aprisionado dentro dos traiçoeiros lindes de uma fórmula... Due process é produto da história, da razão, do ?uxo das decisões passadas e da inabalável con?ança na força da fé democrática que professamos. Due process não é um instrumento mecânico. Não é um padrão. É um processo. É um delicado processo de adaptação que inevitavelmente envolve o exercício do julgamento por aqueles a quem a Constituição con?ou o desdobramento desse processo.”2

1. Devido processo legal: considerações preliminares

A vetusta diretriz do due process of law constitui uma genuína cláusula geral, exsurgindo como um direito fundamental de conteúdo complexo e de impressionante variação de signi? cado a depender do contexto em que incidente3. Em caráter inovador, nossa Carta Magna de 1988 previu expressamente o devido processo legal em seu art. 5º, LIV, ao aduzir que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

O rico acúmulo histórico em torno de tão relevante cláusula nos conduziu, hodiernamente, a tomá-la como elemento articulador de uma série de outros vetores normativos, a compor o seu conteúdo mínimo4, tais como a observância do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV), do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII), da motivação das decisões (art. 93, IX), da publicidade dos atos (art. 5º, LX), da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII), da igualdade de tratamento (art. 5º, caput), bem como da vedação de provas obtidas por meio ilícito (art. 5º, LVI). Não sem razão, abalizada doutrina cunha o devido processo legal não como um dos tantos princípios do processo, senão que “a base sobre a qual todos os outros princípios e regras se sustentam”5.

Originariamente, o devido processo legal surgiu como uma garantia exclusivamente processual. Não demorou, porém, para que a vivacidade da jurisprudência norte-americana se valesse da ?uidez conceitual dessa cláusula no ?to de controlar o próprio conteúdo de decisões estatais, sujeitando-o a parâmetros materiais de justiça e razoabilidade. A formatação daí derivante cuidou então de estabelecer uma dupla dimensão para o due process clause: uma dimensão processual, chamada de procedural due process, como mecanismo assecuratório

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da regularidade do processo, e, desta feita, também uma dimensão material, denominada de substantive due process, atinente ao controle do próprio mérito das normas jurídicas6.

2. Devido processo legal: eficácia vertical e eficácia horizontal

Em sua essência, o devido processo legal constitui garantia contra o exercício abusivo do poder7, sendo uma das projeções do princípio da dignidade da pessoa humana, haja vista seu intuito de tutelar, nas lides concretas, o respeito à existência digna, síntese da totalidade dos direitos fundamentais8.

De início, a preocupação centrava-se no combate à tirania do poder público (eficácia vertical, porque do particular perante o Estado)9. Todavia, já se reconhece combate à tirania do chamado poder privado10, de modo que também entre os particulares impere incontornável adstrição aos direitos fundamentais (e?cácia horizontalHorizontalwirkung der Grundrechte)11, como expressão de uma estrutura objetiva de valores que serve de base para a ordem jurídica da coletividade (dimensão jusfundamental objetiva)12, mormente diante da força normativa dos princípios da dignidade da pessoa humana13 (art. 1º, III) e da solidariedade14 (art. 3º, I), bem assim da aplicabilidade imediata dos direitos e das garantias fundamentais (CF, art. 5º, § 1º)15.

À vista do exposto, soa até natural reconhecer mais um passo nesse processo: a necessidade de assegurar a garantia do due process of law, como direito fundamental, também no âmago das relações privadas, tese que já vem sendo abraçada pela doutrina16 e avalizada pela

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jurisprudência. Foi o quanto ?cou estabelecido, por exemplo, com a nulidade de exclusão de membro de associação civil que não teve garantido o direito de ampla defesa, ocasião em que ?cara consignado pela Suprema Corte brasileira, em acórdão paradigmático, que:

“... as violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. (...) O espaço de auto-nomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. (...) A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual ?ca impossibilitado de perceber os direitos auto-rais relativos à execução de suas obras”17.

O mesmo direito foi resguardado a cooperado excluído sem contraditório e ampla defesa18, não sendo diferente no âmbito das relações condominiais19, havendo já defesa doutrinária semelhante no campo das relações consumeristas, no que refere à contratação de serviços médicos20, e mesmo no campo midiático, no particular da divulgação pública de informações lesivas ao bom nome e prejudiciais ao desempenho comercial de determinadas empresas, tendo em vista os conhecidos “testes do Inmetro”, divulgados com certa frequência pela maior rede de televisão brasileira21.

Neste compasso, convém indagar: se a ordem jurídico-constitucional abona a ideia de instauração de um procedimento prévio, adequado e justo, com oferta de contraditório e ampla defesa, para casos de penalidades convencionais — onde as partes são, a rigor, iguais —, bem como em tratativas consumeristas e afetações midiáticas — onde vigora entre as partes relativa assimetria —, não haveria de se oferecer igual tratamento no bojo das relações trabalhistas de emprego, onde, a princípio, a desigualdade entre as partes é notória?

É cediço que a subordinação do empregado em face de seu empregador, aliada ao trato sucessivo que, a princípio, envolve o liame empregatício, acabam por forjar um ambiente relativamente fértil para situações afrontadoras de direitos fundamentais. De consequência, descortinado o alto potencial lesivo do poder privado patronal, impõe-se enxergar no contrato de trabalho um campo extremamente propício à incidência da e?cácia horizontal dos direitos fundamentais22.

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Rememore-se, aqui, por oportuno, que um dos postulados básicos do devido processo legal está justamente na garantia de igualdade entre as partes envolvidas23, não sendo razoável que uma teoria tão alvissareira e vocacionada à promoção dos direitos fundamentais encontre guarida em relações jurídicas civis, comerciais e consumeristas, inclusive no amparo do interesse de grandes empresas, todavia passe ao largo daquele especí?co campo jurídico onde o desnível entre as partes ressoa por demais evidente: a relação de emprego.

É preciso lembrar, ademais, que no caput do art. 7º da Constituição Federal está consagrada importante cláusula de vedação de retrocesso quanto às condições sociais do trabalhador, quando reza serem direitos dos trabalhadores urbanos e rurais aqueles ali relacionados, “além de outros que visem à melhoria de sua condição social”.

Contudo, em verdade — é bom que se diga —, o que pretendeu mesmo o legislador constituinte não foi ?xar tão só uma cláusula de não retrocesso social, senão que foi bem mais além, na medida em que tencionou mesmo foi prescrever, em termos mais precisos, uma cláusula de crescente avanço social24, como expressão de algo maior, qual seja, a cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana25 (CF, arts. 1º, inciso III, e 5º, § 2º).

Essa tônica de progressividade que se deve emprestar a esse importantíssimo preceito constitucional ganha colorido mais intenso quando se foca a coisa à luz do que dispõe, por exemplo, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), estatuto integrante do ordenamento jurídico brasileiro26 e que estabelece, em seu art. 2º, item 1, claramente, que “cada Estado-Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas” (grifamos).

Destarte, o que se deduz é que nossas disposições constitucionais, quando consideradas com mais vagar, revelam-nos um estupendo estímulo a produções jurídicas que se prestem a dar contínua concretude ao comando de se elevar, cada vez mais, ao longo do tempo, a condição social do cidadão trabalhador, como fator de tutela da sua dignidade humana (CF, art. 1º, III) e dos valores sociais do trabalho (CF, art. 1º, IV, art. 5º, caput, art. 6º, caput, art. 170, caput e art. 193)27.

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A proposta que aqui lançamos espelha esse anseio por seguir avante nesse ousado projeto de incremento de civilidade no âmbito das relações laborais, partindo da convicção de que ao jurista...

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