Os novos horizontes do direito concursal - uma crítica ao continuísmo prescrito pela Lei 11.101/2005

AutorJosé Marcelo Martins Proença
Páginas47-64

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1. A ambiência social revisitada e resgatada

Michel Foucault afirmava, nos anos 60 do século XX, ser o homem uma invenção recente, por não se tratar nem do mais antigo nem do mais constante objeto da preocupação do saber. Parafraseando Foucault, arriscamo-nos a dizer que só recentemente os homens conscientizaram-se da importância da ambiência social, imprescindível à sua sobrevivência.

Curioso, realmente, que, a despeito da evolução do pensamento, nunca totalmente interrompida ao longo de milênios, e do acelerado avanço científico e tecnológico da primeira metade do século XX, só na segunda metade desse século a preocupação com as interações sociais e com o meio ambiente instalou-se, em moldes consistentes e generalizados, na consciência humana. Com efeito, só a partir dos anos 50 do século XX os homens parecem ter-se dado conta do seu destino gregário e da sua condição de habitantes de um Planeta do qual ainda não vêem a possibilidade de migrar.

No tocante à preservação ambiental, explica-se a percepção tardia da sua necessidade por terem sido os recursos naturais explorados sem medida ou planejamento, até sua atual escassez e ameaça de esgota-mento. Paralelamente, a malbaratada intervenção do homem no Planeta surtiu maléficos efeitos sobre o clima e a atmosfera, colocando em xeque a própria sobrevivência da sua espécie.

Quanto à atenção para o social, sofreu a repressão do individualismo, do culto à personalidade, presentes, conquanto assumindo feição ideológica e intensidade diversas, em todos os períodos da história da Humanidade. Afinal, o homem é, por natureza, egoísta, provavelmente porque ilha-do em sua trajetória biológica, vale dizer, solitário no nascimento e na morte.

Contribuiu, todavia, para retardar a valorização do social, prevalecendo, talvez, relativamente a outros fatores, a hegemonia da informação e do conhecimento detidos e resguardados, a ferro e fogo, pelas elites dominantes - a intelligentsia, as lideranças religiosas, os detentores do poder político e econômico.

Em socorro de similar argumento, não parece despropositado trazer à colação o mais conhecido romance do escritor italiano Umberto Eco, O Nome da Rosa, levado, inclusive, às telas dos cinemas, com enredo alocado numa abadia medieval cuja maior riqueza residia no cabedal de informação de sua biblioteca, a cargo, sintomaticamente, de um monge cego. Este vigia-

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va o trabalho dos copistas e assassinava quantos se atrevessem a consultar e reproduzir textos considerados proibidos.

Em suma - quer demonstrar Umberto Eco -, a informação, o conhecimento, ameaçam o poder, impedindo-lhe o exercício hegemônico, incontrolado. Em contrapartida, propagando-se a informação, difundindo-se o conhecimento, o poder fragmenta-se, passa a ser compartilhado e, por conseguinte, controlado.

Neste passo, vale rever, embora só de passagem, os conceitos de informação e conhecimento, caracterizando-se aquela como um dado qualquer, um código levado ao ser humano pela Natureza ou por outro ser humano ou outros seres humanos. Decifrado o código, produz-se a informação, e esta, uma vez absorvida, vivenciada, forma o conhecimento. Segundo Platão, o conhecimento fundamenta-se numa crença verdadeira, porque justificada, donde sua intencionalidade; ou seja: enquanto a informação independe do sujeito a quem dirigida, o conhecimento demanda sua aceitação. Resumindo: a informação percebida, aceita e assimilada resulta em conhecimento.

Anote-se, agora, que tanto a informação quanto o conhecimento originam-se da comunicação, nela residindo o cerne da questão ora analisada. E nem se carece de erudição para reconhecer que a comunicação entre os seres humanos adquiriu lenta e gradual eficiência só a partir do século XX, intensificando-se nos anos seguintes à II Guerra Mundial.

Com efeito, Guttenberg aperfeiçoou a prensa móvel no século XV (1440), data tomada como marco inicial do desenvolvimento da imprensa, da comunicação pela palavra escrita. A despeito, no entanto, de algumas publicações pioneiras, como o sueco Post-och Inrikes Tidningar, de 1645, tido como o primeiro jornal do mundo, ainda em circulação, só mais de 300 anos depois, nos séculos XVIII e XIX, proliferam as publicações com o formato similar ao dos jornais contemporâneos. Aliás, os jornais sinalizam sua posição de principal ferramenta das comunicações e elemento de transformação da consciência das sociedades ocidentais a partir da Revolução Industrial, no século XVIII, a tal impulsionados pelas convulsões sociais, sediadas principalmente na Inglaterra, decorrentes da cruel exploração do trabalho humano, oferecido em massa, em virtude da migração dos camponeses para os centros urbanos, em busca dos empregos praticamente extintos nas grandes propriedades rurais. Apenas como referência cronológica, vale apontar o início da circulação do Times de Londres, 1785.

Cumpre assinalar, por indispensável ao desenvolvimento da argumentação em curso, as dificuldades da comunicação pela escrita, começando por observar que o papel era, até 1845, artigo de luxo, só então barateado seu custo, em virtude do uso da pasta de madeira para sua confecção. A partir daí começa, lenta e gradualmente, a popularização do livro, das revistas e, mesmo, dos jornais.

Paralelamente, o analfabetismo opôs-se e ainda se opõe à propagação das idéias e à informação dos fatos por via da escrita. Destacando tão-somente alguns aspectos do problema, cabe principiar com a tardia laicização do ensino, primordialmente voltado até o século XIX, ao menos no Ocidente, para a formação religiosa - diretriz, convenha-se, nada propícia ao alargamento dos horizontes da informação e, portanto, do conhecimento. Neste diapasão a oportuna advertência de Paulo Freire, nosso mundialmente conceituado educador: "A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele". E explica, ele mesmo, que alfabetização e conscientização jamais se separam, pois todo aprendizado demanda a tomada de consciência, por parte do educando, da sua realidade. Encerrando este ponto, é importante relembrar que um

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de cada cinco adultos no mundo ainda é analfabeto.1

No que tange à comunicação por via sonora, bem mais eficaz para a formação do conhecimento que a palavra escrita, pois mais ágil e capaz de atingir maior público, fez-se possível graças à radiofonia, cujos primeiros passos ocorreram no fim do século XIX. Aperfeiçoados os sistemas de transmissão, a chamada "era do rádio" instaura-se na década de 1920, e por volta de 30 anos os programas radiofônicos consistiam no meio mais rápido e de mais largo alcance para a informação e o entretenimento.

Embora a transmissão dos jogos olímpicos de Berlim haja ocorrido já em 1936, a televisão populariza-se somente na década de 1950, mas somente em 1962 inauguram-se as transmissões por satélite, uma conquista para as comunicações advinda da denominada corrida espacial, travada entre os Estados Unidos da América e a União Soviética ao longo dos anos 1950 e 1960. Finalmente, em 20.7.1969 milhões de telespectadores assistiram, em tempo real, à chegada do homem à lua.

Enfim, a partir da "era do rádio" as ferramentas de comunicação evoluíram em largos saltos, chegando, no final do século XX e princípio deste século, ao milagre da Internet, capaz de propiciar o contato audiovisual imediato entre pessoas que estejam a qualquer distância e em qualquer ponto do Planeta.

Em suma, a informação e, por conseguinte, o conhecimento massificaram-se, tornando quase impossível a ocultação, por parte dos detentores do poder, de fatos de interesse geral. Espraiou-se a informa-ção, difundiu-se o conhecimento, os indivíduos perceberam os mecanismos do poder, e este se diluiu.

Outra vez parafraseando Foucault, só recentemente o conhecimento fez o homem eleger-se em principal objeto do seu próprio saber, levando-o, igualmente, a pensar a sociedade como um organismo do qual faz parte. E, assim como sabedor das catástrofes em que consistem as reações da Natureza às agressões ao meio ambiente, também percebeu as nefastas respostas das sociedades à forma como maltratadas as interações sociais, passando, então, a reivindicar dos governantes, mormente dos legisladores, medidas hábeis para a superação de similares impasses. É justamente nesse ponto que se insere a crítica à limitação subjetiva prescrita pela Lei 11.101/ 2005, ao continuísmo constante na Lei de Recuperação de Empresas e Falência, objeto do presente artigo.

Apenas num parêntese, não se afigura despropositado enxergar no homem dos nossos dias o arquétipo do zoon politikon aristotélico, não apenas um ser de vocação gregária, mas um ser político no mais amplo sentido, o habitante da polis, da cidade grega, a exemplo de Esparta e Atenas, bases da civilização ocidental. Repisando o ponto, graças à eficiência da comunicação, o homem contemporâneo tende a inserir na sua esfera de interesses pessoais, da sua família, da sua comunidade, da sua Nação, todo e qualquer fato vinculado à dinâmica societária, consciente de que, mediata ou imediatamente, virá interferir no seu coti-diano.

Oportuno afastar, neste passo, qualquer conotação ética, moral ou religiosa da argumentação acima, pois não se quer afirmar tenham os homens perdido qualquer traço de egoísmo, amando-se uns aos outros independentemente de credo, raça ou nacionalidade. Desmentindo similar visão ingênua, aí estão os conflitos religiosos, étnicos e de ordem econômica, assolando inúmeras regiões do Planeta.

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Por outro lado, ainda medram, principalmente na órbita econômica, ações que denunciam a atualidade do Leviatã de Tho-mas Hobbes, ou seja, o homem ainda pode agir como lobo do próprio homem (homo homini lupus). Tome-se para exemplo o "golpe" da ordem de bilhões de Dólares, descoberto em 2008...

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