Human-animal studies: moral agency and animal play/ Estudos Humano-Animal: agencia moral e brincadeira animal.

AutorFerreira, Bruna Mariz Bataglia
  1. Introducao

    tudo nos sufoca, e nos tornamos refens de nos mesmos (o terceiro golpe sera fatal) A chance do corte, Nina Zur

    Escrever sobre os estudos humano-animal desde uma perspectiva normativa carrega o leitor quase imediatamente e com frequencia para o campo dos direitos dos animais, area esta que procura realizar a defesa destes seres nao humanos, desde a producao de justificativas teoricas que implique na sua inclusao na comunidade moral historicamente reservada aos humanos, seja com o objetivo de reduzir sua exploracao por estes ou ate mesmo abolir toda e qualquer forma de exploracao, ate a defesa juridica, especificamente, invocando o cumprimento das leis protetivas dos animais, ou, na sua ausencia ou restricao, advogando pela prolacao de um precedente judicial inovador. (1)

    Poderiamos datar como marco inicial do movimento pela defesa dos direitos animais o seculo XIX, mais especificamente, a decada de 20 (2), e como marco mais recente podemos indicar os movimentos sociais na decada de 70 do seculo XX, momento em que Richard D. Ryder cunhou o termo especismo, central para os debates sobre os direitos dos animais (3) no que tange a hierarquia moral, injustificavel, de humanos sobre animais--ao lado do termo senciencia, isto e, a capacidade de experienciar dor e sofrimento, utilizado ao menos desde Jeremy Bentham para justificar o status moral dos animais, em sua conhecida e polemica questao: "um cavalo ou cachorro adulto e um animal incomparavelmente mais racional e mais sociavel do que um bebe de um dia, uma semana ou mesmo um mes de idade. Mas suponha que nao fosse esse o caso; de que isso serviria? A questao nao e Eles podem raciocinar?, nem Eles podem falar?, mas sim Eles podem sofrer?"--. Momento, ainda, no qual a Declaracao Universal dos Direitos dos Animais foi apresentada por ativistas a UNESCO em 1978, assim como foi o periodo do lancamento de obras pioneiras em defesa dos animais no campo da filosofia moral, como Animals, Men and Morals: An Inquiry into the Maltreatment of Non-humans (1971) de membros do Oxford Vegetarians (4), a Libertacao Animal (1975) de Peter Singer e The Moral status of Animals de Stephen Clark (1977), seguidos por The case for animal rights (1983) de Tom Regan.

    Ja desde a perspectiva da filosofia politica, esse canon--a politica sendo uma atividade antropocentrica--estaria presente de Platao a Marx. A humanidade seria definida, portanto, a partir da possibilidade de pensamento e engajamento politico dos homens. Virtualmente em todas as teorias humanistas--nas quais as teorias politicas encontram suas raizes--a linguagem e a gramatica serviram como importantes marcadores de humanidade e de racionalidade. A linguagem faria os humanos sairem de si e se comunicar "Idealmente, o corpo e suas necessidades precisa ser transcendido pela mente, a qual, quando liberta de sua animalidade basica, pode acessar o Universal, a justica, a sabedoria, a verdade, e todo resto da bagagem da traducao racionalista humanista." (GRANT; JUNGKUNZ, 2016)

    Diversas figuras relevantes na filosofia (politica) refletiram sobre o status dos animais que com Descartes, na esteira a tradicao aristotelica-tomista, sao reduzidos a meros automatos, movidos mecanicamente pelo instinto. (CLARKE; LINZEY, 1990, p. xv) Contra a afirmacao de que animais nao tem alma, Leibniz afirmara que eles tem, enquanto Hegel pressupora que eles nao tem capacidade reflexiva--e como esse e o criterio, entao, para inclusao na comunidade politica, os animais permaneciam excluidos. Hobbes problematizara essa questao, sendo interessante observar que suas obras estejam atravessadas e ate nomeadas como Leviata, Behemot e Ziz, justamente o nome de animais-monstros de tradicoes religiosas. Com Rousseau e Herder, o homem se tornaria civilizado, ou seja, humano, quando comeca a comer animais. (OLIVER, 2009)

    Ja Montaigne alertara para o problema de conclusoes morais baseadas na mera diferenca. Humanos nao sao superiores ou inferiores as outras especies. Nem nossa diferenca dos animais nem nosso pode sobre eles justifica o abuso a que os submetemos "se pudessemos reivindicar qualquer superioridade a partir do fato de termos o poder de extermina-los, emprega-los em nossos servicos e usa-los para nosso prazer, seria a mesma vantagem que teriamos uns sobre os outros. Nesses termos, nos temos nossos escravos." (CLARKE; LINKEY, 1990, p. xvii) E David Hume, a partir de uma perspectiva contraria a aristotelica-tomista, afirmara que os animais sao providos de pensamento e razao assim como os homens, definindo a razao enquanto um maravilhoso e ininteligivel instinto de nossas almas. (CLARKE; LINZEY, 1990, p. xv), enquanto Locke revelara sua indignacao com a crueldade aos animais, o que para ele e nao-natural, argumentando que pessoas crueis com animais podem acabar sendo crueis com humanos.

    Dos lugares que os animais ocupam em nossas vidas, eles tem compartilhado nossas casas e tem sido vistos como astros da televisao, mas tambem tem sido considerados comida de humanos. Sao utilizados para produzir roupas e produtos de beleza que tem sido testados primeiramente em animais, assim como ocorre com diversas drogas. Frequentamos zoologicos, touradas e rodeios, e usamos seus nomes para adjetivar pessoas. Aparecem em praticas religiosas, assim como em nossas artes, poesia e literatura, e sao utilizados para o transporte de pessoas e cargas. Sao importantes em terapias psicologicas, assim como o foram para o desenvolvimento e avancos cientificos. Os mundos dos humanos e dos nao-humanos estao, assim, inexoravelmente ligados. (DEMELLO, 2012, p.4)

    O chamado Estudos humano-animal (5) vem se constituindo enquanto um campo interdisciplinar de pesquisa sobre a interacao entre humanos e animais a partir da articulacao de perspectivas das ciencias sociais--sociologia, antropologia, psicologia, sciencia politica--, das humanidades--historia, critica literaria, filosofia e geografia--e das ciencias naturais--etologia, medicina veterinaria, bem-estar animal e psicologia comparativa. (6 7)

    As pesquisas perpassam desde a ligacao afetiva entre humanos e animais, as percepcoes e crencas humanas sobre outros animais, a forma pela qual os animais se encaixam nas sociedades humanas, simbolismo dos animais na literatura e nas artes, ate por estudos sobre a domesticacao animal, seu uso em testes laboratoriais, a construcao social dos animais e o que significa ser um animal, a interseccao entre especismo, racismo e sexismo, e como a violencia contra animais esta relacionada a violencia de humanos contra humanos, dentre tantos outros temas possiveis.

    Algumas pesquisas tocam em questoes mais sensiveis, especialmente quando se dedicam a compreender as proximidades biologicas e comportamentais entre humanos e animais, ou a tratar da relacao sexual entre estas especies, conhecida como zoofilia ou bestialismo, representada em inumeras obras de arte ao longo dos seculos que expoem essa relacao de forma literal e figurativa. (8) Ou ainda, aquelas que afirmam os animais enquanto sujeitos de direitos, membros da comunidade moral, dignos de nao serem submetidos a exploracao e morte, uma vez que assumir tal perspectiva implica diretamente em diversas praticas humanas como alimentacao e experimentacao medica. (DEMELLO, 2012, p.6)

    No breve espaco deste artigo, gostaria de trazer algumas reflexoes sob a perspectiva das relacoes humano-animal acerca de dois temas de pesquisa relevantes no campo do direito em sua interacao com a filosofia politica. O primeiro deles esta centrado sobre a nocao de agencia racional e aquelas que estao diretamente a ela relacionadas: agencia moral e autonomia. Nesse caso, o farei a partir do trabalho de Claire Rasmussen no qual a autora revela a relacao entre a ideia de autonomia e as formas pelas quais ela se traduziu em praticas sociais, dentre elas, espeficiamente para nossos objetivos, a forma pela qual a categoria animal foi e continua sendo fundamental para a construcao teorica daquilo que denominamos sujeito autonomo, pressuposto central para o campo do direito. Ja o segundo tema envolve refletir sobre os limites e os problemas intrinsecos ao se estabelecer ideias normativos, e um caminho possivel para pensar para alem desta forma de sociabilidade. Quanto a esse ponto, recorro as reflexoes de Brian Massumi que busca na brincadeira animal um caminho para pensar uma etica nao normativa.

  2. A nocao de agencia moral racional como pressuposto da democracia e o papel do animal na sua elaboracao

    O povo assistiu aquilo bestializado, atonito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada. Aristides Lobo ao "Diario Popular" em 15/11/1889, sobre a reacao do povo brasileiro a proclamacao da republica Na historia das democracias liberais modernas e possivel identificar diversos momentos em que categorias sociais--camponeses, trabalhadores, empregados domesticos, pessoas negras, indigenas, mulheres--, inicialmente excluidas do procedimento democratico das eleicoes, passam a ver seu direito de eleger e ser eleito reconhecidos pelo ordenamento juridico que passa a, enfim, incluir todas as pessoas que participam de uma determinada sociedade no processo eleitoral, com poucas excecoes (O'DONNEL, 2010), ao reconhecer-lhes direitos subjetivos e liberadades individuais. (9)

    Para alem do exercicio de poder e dominacao que poderiamos identificar nestas exclusoes no intuito de manter a populacao excluida do sistema politico, controlada e submetida a certos interesses, proponho a compreensao acerca do pressuposto--discursivo que sustentou medidas de exclusao como estas, e que justamente permitiu falarmos nas figuras do cidadao e do sujeito de direito, assim como permitiu que certos grupos pudessem ser considerados como "nao confiaveis" ou como nao merecedores do reconhecimento de seus direitos subjetivos e de suas liberdades individuais. (O'DONNEL, 2010, p.49) Refirome a ideia de agencia racional e aquelas que estao...

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