Humano demasiado inumano: gênero, direitos humanos e discursos em disputa

AutorTuanny Soeiro Sousa
CargoMestre em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pela Universidade Federal do Maranhão
Páginas292-315
Humano demasiado inumano: gênero,
direitos humanos e discursos em disputa
Human too inhuman: gender, human rights and
speeches in dispute
Tuanny Soeiro Sousa*
Universidade Federal da Paraíba, São Luís – MA, Brasil.
1. Introdução
Eu lutava porque não queria uma alegria desconhecida. Ela seria tão proibida pela
minha salvação quanto o bicho proibido que foi chamado de imundo – e eu abria
e fechava a boca em tortura para pedir socorro, pois ainda não havia me ocorrido
inventar esta mão que agora inventei para segurar a minha. No meu medo de ontem
eu estava sozinha, e queria pedir socorro contra a minha primeira desumanização.
A desumanização é tão poderosa quanto perder tudo, como perder tudo, meu amor.
Clarice Lispector (A paixão segundo G.H.).
Cotidianamente somos confrontados com notícias e relatos de discri-
minação, violência e morte de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis
e transexuais (LGBT) no Brasil. De acordo com o Relatório do Grupo Gay
da Bahia, o Brasil é um dos países que mais mata LGBTs no mundo1.
Logo, por mais que exista, desde a publicação da Carta da Organização das
Nações Unidas (ONU) de 1948, um extensivo rol de direitos positivados
internacionalmente com o objetivo de proteger “humanos”, parece que,
* Mestre em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pela Universidade Federal do Maranhão. Doutoran-
da do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba. Docente da
Unidade de Ensino Superior Dom Bosco. E-mail: tusoeiro@hotmail.com.
1 GRUPO GAY DA BAHIA, 2019.
Direito, Estado e Sociedade n. 56 p. 292 a 315 jan/jun 2020
293
Direito, Estado e Sociedade n. 56 jan/jun 2020
em alguma medida, a violação massiva dos direitos de dissidentes sexuais e
de gênero parece deslocar essas populações da “humanidade” para a abje-
ção. Portanto, ou o “humano” dos direitos humanos não contempla LGBTs
como pessoas, ou essa categoria é menos “autoevidente” do que poderíamos
imaginar. É essa tensão discursiva que se apresenta como objeto deste artigo.
A problemática principal que baliza o estudo parte da seguinte questão:
diante dos ideais normativos que produzem o sujeito de direitos humanos,
há possibilidade de reconhecimento de humanidade de dissidentes sexuais
e de gênero frente a esses direitos?
A hipótese parte da ideia de que os direitos humanos circulam em uma
dialética sem síntese entre assujeitamento e negociação, o que significa
afirmar que o sentido de sua humanidade se encontra fraturado e em cons-
tante transformação. Assim, também os direitos de dissidentes sexuais e
de gênero, e sua participação na categoria humana, envolvem processos
históricos de lutas por reconhecimento para além do individualismo.
O método hipotético-dedutivo apresenta-se como abordagem deste
trabalho, no qual também utilizamos documentação indireta sintetizada
através de pesquisa bibliográfica, tendo como pressuposto teórico a teoria
do discurso pós-estruturalista de Michel Foucault2, Judith Butler3 e Costas
Douzinas4. Por isso, compreendemos que o social é um campo aberto de
discursividade: os sentidos que compõem os enunciados só podem encon-
trar as suas condições de possibilidade nesse campo complexo, antagônico
e permeado por relações de poder. A irrupção dos efeitos de verdade dos
enunciados e dos sujeitos dependem dessas configurações normativas.
Organizamos o trabalho em três seções distintas. Na primeira, situa-
mos a articulação dos enunciados direito e humanidade no campo da dis-
cursividade, analisando as condições de surgimento do sujeito de direitos
humanos moderno. Em seguida, examinamos o processo de produção dos
dissidentes sexuais e de gênero e sua relação com as normas que produzem
humanos inteligíveis. E, por último, estudamos as possibilidades de novas
configurações normativas para o humano dos direitos humanos, refletindo
sobre a viabilidade de articulações que comportem o reconhecimento de
pessoas LGBTI.
2 FOUCAULT, 2012; 2013.
3 BUTLER, 1997; 2004a; 2015c; 2016.
4 DOUZINAS, 2009.
Humano demasiado inumano: gênero, direitos humanos e discursos em disputa

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT