Paternidade líquida? Um comentário à (im)possibilidade de anulação do registro de nascimento

AutorAndré Luiz Torres Yanes Rocha Braga
Páginas83-92

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Ementa: 1

DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. CRIANÇA E ADOLESCENTE. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. EXAME DE DNA. PATERNIDADE BIOLÓGICA EXCLUÍDA. INTERESSE MAIOR DA CRIANÇA. AUSÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO.

- As diretrizes devem ser muito bem fixadas em processos que lidam com direito de filiação, para que não haja possibilidade de uma criança ser desamparada por um ser adulto que a ela não se ligou, verdadeiramente, pelos laços afetivos supostamente estabelecidos quando do reconhecimento da paternidade.

- A prevalência dos interesses da criança é o sentimento que deve nortear a condução do processo em que se discute de um lado o direito do pai de negar a paternidade em razão do estabelecimento da verdade biológica e, de outro, o direito da criança de ter preservado seu estado de filiação.

- O reconhecimento espontâneo da paternidade somente pode ser desfeito quando demonstrado vício de consentimento; não há como desfazer um ato levado a efeito com perfeita demonstração da vontade, em que o próprio pai manifestou que sabia perfeitamente não haver vínculo biológico entre ele e o menor e, mesmo assim, reconheceu-o como seu filho.

- Valer-se como causa de pedir da coação irresistível, por alegado temor ao processo judicial, a embasar uma ação de anulação de registro de nascimento, consiste, no mínimo, em utilização contraditória de interesses, para não adentrar a senda da conduta inidônea, ou, ainda, da utilização da própria torpeza para benefício próprio; entendimento que se aplica da mesma forma ao fato de buscar o “pai registral” valer-se de falsidade por ele mesmo perpetrada.

- O julgador deve ter em mente a salvaguarda dos interesses dos pequenos, porque a ambivalência presente nas recusas de paternidade é particularmente mutilante para a identidade das crianças, o que lhe impõe substancial desvelo no exame das peculiaridades de cada processo, no sentido de tornar, o quanto for possível, perenes os vínculos e alicerces na vida em desenvolvimento.

- A fragilidade e a fluidez dos relacionamentos entre os seres humanos não deve perpassar as relações entre pais e filhos, as quais precisam ser perpetuadas e solidificadas; em contraponto à instabilidade dos vínculos advindos dos relacionamentos amorosos ou puramente sexuais, os laços de filiação devem estar fortemente assegurados, com vistas ao interesse maior da criança.

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Recursos especiais conhecidos e providos2.

Comentário

Trata-se de ação anulatória de assento de nascimento ajuizada por E. de S. S. em face de P. H. P. de S., nascido no dia 29 de dezembro de 2003, fundada exclusivamente em alegações de que teria sofrido pressão psicológica e coação irresistível por parte de J. da C. P., mãe da criança. Conforme consta nos autos, o autor sempre soube que não era o pai biológico da criança, tendo inclusive realizado exame de DNA antes da propositura da ação, cujo resultado confirmou a inexistência de qualquer vínculo biológico entre ele e a criança. O autor afirma que houve erro no momento do registro de nascimento e, por conseguinte, requer a declaração de inexistência de relação jurídica de parentesco entre ele e o filho que, repita-se, alega ter reconhecido sob pressão psicológica e coação irresistível.

Em contrapartida, a mãe da criança argumenta na contestação que no momento em que revelou sua gravidez, esta teria sido aconselhada à prática de abortamento, haja vista o autor da ação não ter levantado qualquer dúvida quanto à paternidade. Ademais, relata que o registro de nascimento teria sido efetuado sem qualquer vício de vontade, e que nada sabia a respeito do exame de DNA acostado aos autos. Ao final, a mãe da criança requereu um novo exame pericial.

Neste ponto, gostaria de tecer algumas considerações no que diz respeito à verossimilhança dos fatos alegados por ambas as partes. O autor da ação afirma com veemência na petição inicial que no momento do registro de nascimento tinha certeza de que não era o pai biológico da criança. Este poderia ter realizado um exame de DNA antes de ingressar na via judicial apenas como meio de prova documental a ser usado futuramente, até mesmo porque ao pai registral não cabia qualquer espécie de dúvida no que tange à inexistência de paternidade biológica. Todavia, a mãe da criança, em sede de contestação, além de refutar as assertivas promovidas pela parte autora, pede, ao final, a realização de um novo exame de DNA. Não posso adentrar nos pensamentos da mãe da criança, mas partilho da opinião de que uma parte litigante apenas requer nova produção de provas quando imbuída da certeza de que a nova perícia trará benefícios a ela mesma. A controvérsia residePage 85 justamente na percepção da realidade que cada uma das partes possuía quando do registro de nascimento. Pode-se aferir, portanto, que há elementos em uma ou em ambas as alegações que destoam da realidade fática.

Pois bem. O juiz de primeira instância, no momento da sentença, decidiu que “as alegações e provas trazidas aos autos pelo autor são insuficientes a amparar a desconstituição e/ou invalidação de seu ato”. Posteriormente, em grau de recurso, o Tribunal de Justiça acordou em desconsiderar coercitivamente o estado de filiação, haja vista os resultados dos dois exames periciais terem comprovado a inexistência de relação biológica entre o autor e a criança.

A partir do resultado do aresto do Tribunal de Justiça, foram interpostos dois recursos especiais. O primeiro por P. H. P. de S., representado por sua mãe (sob alegação de divergência jurisprudencial), e o segundo pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (sob alegação de divergência jurisprudencial e ofensa ao art. 1.604 do Código Civil). Ambos os recursos foram admitidos, tendo sido analisados concomitantemente.

A Ministra Relatora Nancy Andrighi, captura o cerne da discussão, logo no início de seu voto. Para ela, o ponto nevrálgico do litígio consiste em definir se aquele que reconhece a paternidade da criança de forma voluntária tem o direito de anulá-la posteriormente através de ação de anulação de registro de nascimento3.

Para fins de debate acerca dessa matéria tão controvertida, cumpre trazermos à baila o art. 1.604 do Código Civil, cujo teor expressa que “ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”.

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O autor afirma que houve erro, assim como a presença de fortes pressões psicológicas e coação irresistível por parte da mãe da criança. Mas o que de fato caracteriza essas expressões? Devemos delimitar o contorno dessas expressões a partir do art. 185 do Código Civil, que aplica, no que couber, aos atos jurídicos lícitos os mesmos dispositivos relativos aos negócios jurídicos (arts. 104 a 184, CC).

O erro é caracterizado pelo desconhecimento de um fato que leva o agente a emitir sua vontade de modo diverso do que a manifestaria se tivesse exato conhecimento daquele fato. Segundo o art. 138 do Código Civil os negócios jurídicos...

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