O conflito de interesses no processo de demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol: análise dos discursos envolvidos e da decisão do Supremo Tribunal Federal

AutorFelipe Franz Wienke; Renata Tcatch Lauermann
Páginas95-108

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Introdução

Recentemente ganhou espaço nos noticiários nacionais123 os conflitos envolvendo a demarcação da Reserva Indígena Raposa-Serra do Sol. Muito embora a discussão possa parecer recente, os primeiros procedimentos para a sua demarcação se iniciaram ainda na década de 1970, sendo concluídos apenas recentemente, com a homologação da reserva através do decreto presidencial assinado em abril de 2005.

Desde então a demarcação da reserva vem sendo objeto de inúmeras ações judiciais, as quais visam anular o referido decreto presidencial ou alterar o seu teor, permitindo ao menos a permanência de grupos não indígenas já estabelecidos na região. Em abril de 2008, o Supremo Tribunal Federal concedeu liminar determinando a suspensão da operação da Polícia Federal em curso para concretizar a desocupação da reserva, desocupação esta que era alvo de forte resistência, inclusive armada, apresentada por rizicultores da região e por parte da população indígena local.

O presente artigo pretende analisar os discursos que se mostram favoráveis e contrários à demarcação da reserva indígena Raposa-Serra do Sol nos moldes do decreto presidencial, contextualizando tais posições com a história de ocupação do território nacional.

Para tanto, o presente trabalho é dividido em duas partes. Na primeira delas, pretende-se analisar as questões históricas, tanto da formação do quadro agrário nacional, quanto da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol. Assim, no primeiro capítulo, constrói-se um resumo histórico das políticas que foram determinantes para o processo de ocupação do território brasileiro e cujas consequências foram responsáveis para a diminuição considerável da população indígena no Brasil. No segundo capítulo, enfatiza-se o histórico da demarcação da Reserva, bem como a repercussão da sua homologação entre os setores políticos e econômicos diretamente interessados pelas terras da região.

Na segunda parte do artigo, analisa-se o discurso dos grupos envolvidos na demarcação da reserva. Nos primeiros dois capítulos, pretende-se analisar os argumentos dos grupos contrários e favoráveis, respectivamente, à homologação da demarcação. Por fim, discute-se a importância da demarcação da Reserva Indígena Raposa-Serra do Sol para a efetivação do direito constitucional dos índios às terras que historicamente possuem, contextualizando-se estes argumentos no processo histórico de ocupação do território nacional.

1. Análise histórica dos processos de ocupação do território nacional e da demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol

As recentes discussões acerca da demarcação das terras indígenas não devem ser analisadas sem uma perspectiva histórica da relação entre índios e nãoPage 97 índios na história da ocupação do território do Brasil. Diante da situação de usurpação de grande parte das terras indígenas, nasceu a percepção acerca da necessidade do Estado garantir a posse dos povos indígenas às suas terras, pensamento este que ganha força a partir da década de 70.

A partir de então, dá-se início à demarcação de várias terras indígenas, entre elas a Terra Indígena Raposa-Serra do Sol. A homologação da reserva em abril de 2005 dá início a uma série de manifestações, tanto contrárias, como favoráveis à homologação, gerando também diversas ações judiciais com o fim de anular o decreto presidencial que homologou a demarcação da reserva.

1.1. O processo de ocupação do Território Brasileiro e de Extermínio dos povos indígenas

Os conflitos do homem civilizado com os indígenas do Brasil (bem como de todo continente latino-americano) nos reporta ao descobrimento do país pelos europeus.

O contraste entre civilizações com culturas e tecnologias distintas acarretou uma submissão absoluta dos povos nativos, tidos como menos desenvolvidos, em relação aos exploradores. A conquista do território brasileiro, bem como a delimitação de suas fronteiras se confunde com a história do extermínio e exploração dos povos indígenas4.

O processo de ocupação do litoral e a paulatina conquista do interior se deu através de uma política de doação de terras por parte da Coroa Portuguesa. Estes donatários, por sua vez, distribuíam sesmarias para terceiros, os quais conquistavam as terras indígenas com o fim de estabelecer suas fazendas. Esta sistemática de apropriação e posse das terras deu formato ao quadro agrário ainda observado hoje no Brasil, onde predomina a grande propriedade rural, em contraste com a situação da grande maioria dos índios “sobreviventes”, os quais resistem longe de suas terras tradicionais.5

A partir do século XIX, diante da inexistência de registros confiáveis de propriedade, surge a preocupação com a organização do sistema agrário nacional, de modo que, com a resolução de 17 de julho de 1.822, quando já adiantado o processo de separação política entre Portugal e Brasil, foi dado fim ao sistema de sesmarias, estabelecendo-se a aquisição da propriedade pelo reconhecimento da posse da terra.

Este sistema não alcançou efetividade, sendo substituído, em decorrência da pressão dos grandes proprietários, por um modelo de aquisição da propriedade que se dava tão somente pela compra e venda, estabelecido pela lei 601, de 1850. A Lei das Terras, como ficou conhecida, excluía expressamente do conceito dePage 98 terras devolutas aquelas reservadas aos indígenas, as quais, portanto, não poderiam ser alienadas. A Constituição Republicana de 1881, por sua vez, estabeleceu a transferência das terras devolutas para os Estados, o que propiciou o fortalecimento das oligarquias locais, em detrimento do interesse dos pequenos proprietários. Além do mais, distorcendo o espírito da Lei 601, os Estados Federados passaram a considerar como devolutas as terras de ocupação primária dos índios, possibilitando assim a venda destas.6

Durante todo processo de ocupação do território brasileiro, não se observa uma preocupação com a permanência dos povos indígenas em suas terras tradicionais. Aos povos nativos restava ou aceitar a dominação dos colonizadores, servindo como mão-de-obra para suas fazendas; se deslocar ainda mais para o interior; ou ainda resistir às ocupações, em batalhas que, devido à grande diferença de forças, inevitavelmente se encerrava com a derrota dos índios.

Poder-se-ia imaginar, diante deste quadro, que a legislação brasileira jamais proporcionou qualquer espécie de proteção às terras indígenas. Não é isso, porém, que se percebe. Um alvará de 1680 assegurava o direito dos índios às suas terras, definindo-os como primários e naturais senhores delas. Este direito foi confirmado e ampliado através da lei nº 6, de 1755, bem como por toda a legislação posterior.7 O próprio texto da lei 601/1850, conforme exposto, era expresso ao excluir do conceito de terras devolutas, as quais poderiam ser vendidas pelo Estado, aquelas necessárias para a colonização e o aldeamento dos silvícolas.

Entretanto, é observada uma série de subterfúgios, aparentemente legais, para se proceder à expropriação destas terras, na maioria das vezes com o concurso (ou omissão) dos agentes públicos responsáveis pela guarda dos interesses dos índios8.

Logo, conclui-se que a causa para a expropriação das terras indígenas não foi exatamente a ausência de normas legais protetoras dos índios, mas o desrespeito por parte da sociedade, e até mesmo de setores do Estado, em relação aos seus direitos. Conforme observa Ribeiro, os interesses econômicos surgidos durante a evolução do país sempre foram preponderantes sobre os direitos dos índios.

Muito mais do que as garantias da lei, é o desinteresse econômico que assegura ao índio a posse do nicho em que vive. A descoberta de qualquer elemento suscetível de exploração – um seringal minérios, essências florestais ou manchas apropriadas para certas culturas, equivale à condenação dos índios, que são pressionados a desocupá-las ou nelas morrerem chacinados. [...] Este tem sido o processo natural de expansão da sociedade brasileira, que, ainda no século XX, em muitas áreas, continua a crescer às custas dos territórios tribais. Mesmo as ínfimas porções do antigo território,Page 99 aqui e ali concedidas aos índios com toda a proteção possessória [...], mesmo destas tem sido espoliados quando atingem certo valor.9

Este quadro, muito embora possa permanecer distante e absolutamente incompatível com a nova ordem constitucional inaugurada em 1988, mostra-se vigente, porém, com algumas alterações. Se anteriormente se justificava a posse dos colonizadores sobre as terras indígenas com o fim de se garantir a unidade e o desenvolvimento do Brasil, hoje estes argumentos são substituídos pela importância da soberania no território nacional. Em síntese, os discursos, apesar de distintos, encobrem os mesmos interesses econômicos de outrora, trazendo como consequência, novamente a usurpação dos últimos espaços de terra que aos índios restaram.

Diante deste histórico de usurpação das terras indígenas, surge a necessidade de que o Estado passe a garantir aos índios a posse sobre suas terras. Esta importância ganha força com a promulgação do Estatuto do Índio, o qual, na década de 70, passa a regular o procedimento de demarcação...

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