A ideologia da Reforma Trabalhista no Brasil: uma ponte para o Século XIX

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas260-265

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Introdução

Este artigo se insere nos debates sobre a denominada Reforma Trabalhista, Lei n. 13.467, recentemente publicada. Esta “Reforma” é polemica da mesma forma que polêmico é o Governo que a promulgou, para dizer o mínimo. Conforme observa o Dossiê do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (CESIT), do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (UNICAMP)2, a Reforma introduz medidas que visam enfraquecer o Direito do Trabalho como um todo. Atacando não só a atuação sindical, mas também os direitos individuais e o acesso à Justiça do Trabalho.

Como toda transformação trazida por uma lei, esta Reforma não surgiu “do nada”, tão pouco “por acaso”. Existe um contexto histórico, econômico, político e ideológico que precede essa mudança. O liame entre os elementos simbólicos contidos em uma mensagem jurídica, a produção, distribuição e a recepção destes para os atores sociais, leva a uma discussão sobre o papel e a importância da ideologia para o Direito.

Sem negar a existência da ideologia presente nas leis produzidas pelo Poder Legislativo, podemos argumentar que nem sempre esses discursos chegam com a mesma intensidade de quem os produziu. Ainda que possamos pensar que não exista, a priori, uma intencionalidade na criação dessa mensagem, o poder da ideologia está no fato de ela existir, mesmo quando a sua intenção não é racionalmente, ou conscientemente, produzida. Se houvesse uma clara intencionalidade na produção desse discurso seria fácil perceber o seu verdadeiro objetivo. Mas como nem sempre existe uma real intenção, o discurso ideológico fica, muitas vezes, camuflado, quase imperceptível, dando a impressão de que não existe.3

Assim, este artigo tem a pretensão de traçar algumas considerações sobre a relação entre a ideologia e o Direito do Trabalho, mais especificamente entre as ideias que permeiam a Reforma Trabalhista, em uma tentativa de buscar entender as motivações destas mudanças a despeito do discurso oficial produzido pelos meios de comunicação a serviço do Governo e do Capital.

Ideologia e direito: uma estreita relação

As ideias são importantes não apenas por si mesmas, mas também para explicar ou interpretar o comportamento social. As ideias predominantes da época são aquelas que tanto o povo como os governos seguem. Dessa forma, elas ajudam a moldar a própria história. Aquilo que os homens acreditam acerca do poder do mercado ou dos perigos do Estado tem muita influência sobre as leis que eles promulgam ou deixam de promulgar. (John Kenneth Galbraith, A era da incerteza)

Segundo Mannheim, em Ideologia e Utopia, “a concepção moderna de ideologia nasceu quando Napoleão se hostiliza com o grupo de De Tracy achando que este grupo se opunha a suas ambições imperialistas, rotulando-os desdenhosamente de ‘ideólogos’.4 Napoleão declarou em um discurso, ao Conselho de Estado em 1812, que:

Todas as desgraças que afligem nossa bela França devem ser atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutilezas as causas primeiras, quer fundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da história.5

Assim, a ideologia, que inicialmente designava uma ciência natural da aquisição, pelo homem, das ideias calcadas sobre o próprio real, passa a designar, daí por diante, um sistema de ideias condenadas a desconhecer sua relação com a realidade. De Napoleão até chegar ao marxismo, o conceito de ideologia sofreu algumas modificações. Acrescentou-se à abordagem puramente política (Napoleão) uma abordagem econômica (Marx). Em outras palavras, a característica mais difundida desse conceito, a que o associa à ideia de negação, tem início com Napoleão e chega até Karl Marx, quando este último aprimora o sentido de negação para o sentido de “falsa consciência”. O termo ideologia, com a conotação de falsidade, será empregado quando formos tratar da Reforma Trabalhista, como veremos adiante.

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A ideologia da reforma trabalhista

Para os marxistas, a lei sempre emana do Estado e permanece ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção. Desta forma, um dos objetivos da lei é convencer o povo de que as contradições não mais existem, assim a dominação do Estado passará imperceptível.6 Logo, se procura afirmar que o poder atende o povo em geral e tudo o que vem da lei é indiscutivelmente jurídico; por outro lado, tendo em vista que legalidade não coincide, sem mais, com legitimidade7, a identificação entre Direito e lei pertence, desta maneira, ao repertório ideológico do Estado. Pode-se relacionar, assim, Direito e ideologia e, mais especificamente, Direito do Trabalho e ideologia.

A Reforma Trabalhista, sancionada em 13 de julho de 2017, é acompanhada tanto pelo discurso oficial do Poder Executivo, quanto por grande parte do Poder Legislativo e da Grande Mídia. Para estes a Reforma trará benefícios não só ao “mercado”, mas também aos trabalhadores. Neste sentido, o presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) defendeu a mudança na legislação trabalhista, afirmando que o excesso de regras causa prejuízo na relação patrão e empregado e chegou a sugerir que a Justiça do Trabalho “não deveria nem existir”. Seguiu dizendo que: “Apesar de o governo tentar nos convencer que devemos votar o texto que veio, eu acho que não. Acho que há temas em que precisamos avançar, como o trabalho intermitente e outras questões”. E ainda afirmou: “Acho que há um consenso da sociedade que esse processo de proteção (do trabalhador) na verdade gerou desemprego, insegurança e dificuldades para os empregos brasileiros. Então nós precisamos ter a coragem de dizer isso”.8

O discurso ideológico sempre acompanhou o discurso da crise9 e das supostas exigências de transformação que a mesma provoca na regulamentação das relações de trabalho, tanto no plano individual, quanto no coletivo. Acompanhando este dis-curso, palavras como liberalismo e neoliberalismo adquirem um conteúdo emotivo, por serem armas ideológicas das lutas pelo poder. Nestas doutrinas, tais palavras desempenham um papel considerável como símbolos e senhas. Desta forma, Norbert Elias nota que:

Assim como as fórmulas mágicas eram outrora utilizadas para curar doenças que ainda não podiam ser satisfatoriamente diagnosticadas, é comum hoje em dia as pessoas usarem doutrinas mágicas como meio de solucionar os problemas humanos e sociais sem se darem ao trabalho de estabelecer um diagnóstico não influenciado pelo desejo e pelo medo.

Elias verifica que “a função social das ideias míticas e dos atos mágicos em relação aos eventos naturais também se aplica à sua função na esfera da vida social”10. Também aí, modos de pensar e agir carregados de afeto contribuem para uma incapacidade de dominar perigos e temores que supostamente deveriam dissipar, e talvez até os reforcem.11 No Brasil, a ideologia do trabalhismo de Vargas criou vários mitos, tais como: “o pai dos pobres”, “o mito da doação”. E agora com a Reforma, foi retomada a ideia de que a CLT é “velha”, como se a legislação fosse a responsável pelo alto índice de desemprego presente hoje no Brasil.12

Vale lembrar que o discurso proferido por Maia não é novo. Quando se...

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