Ideologia e Técnica em uma Definição Jurídica (a Definição Obertina de Feudo dos Glosadores a Cujas)
Autor | Paolo Grossi |
Páginas | 220-256 |
Recebido em: 10/02/2018
Revisado em: 15/05/2018
Aprovado em: 10/06/2018
http://dx.doi.org/10.5007/2177-7055.2018v39n79p220
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Ideologia e Técnica em uma Definição Jurídica
(a Definição Obertina de Feudo dos Glosadores a Cujas)
Ideology and Technique in a Legal Definition (the Obertine Definition of
Feudo from the Glossators to Cujas)
Paolo Grossi1
1 Universidade de Florença, Firenze, Itália
Tradução de:
Marjorie Carvalho de Souza2
2 Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis – SC, Brasil.
Resumo: O texto examina o modo como os
juristas, dos glosadores a Jacques Cujas, ana-
lisaram a definição de feudo na interpretação
do direito comum à luz dos escritos de Oberto
dell’Orto. Nessa perspectiva, o autor revê as-
pectos da situação real do feudatário como do-
mínio útil, afirmando a inadequação técnica do
usufruto para expressá-la, analisa a posterior ca-
racterização dos feudos como quase-dominium,
presente, sobretudo, em alguns juristas entre os
séculos XVI e XVII.
Palavras-chave: Direito Medieval. Direito Co-
mum. Glosadores. Feudos. Cujas.
Abstract: The paper examines the way jurists,
since the glosses, until Jacques Cujas, analyzed
the definition of feud within the interpretation of
common law, in the light of the Oberto dell’Orto’s
writings. By this perspective, this author reviews
aspects of the feudary real situation as an useful
domain, grounding the usufruct’s technical
inadequacy to express it, as well as analyzing the
fiefs’ later characterization as quasi-dominium,
found mainly in legal thought of sixteenth and
seventeenth centuries’ jurists.
Keywords: Medieval Law. Common Law.
Glossaries. Fiefs. Cujas.
Seqüência (Florianópolis), n. 79, p. 220-256, ago. 2018 221
Paolo Grossi – Tradução de: Marjorie Carvalho de Souza
1 A Definição Obertina de Feudo na Interpretação do Direito
Comum: a) a situação real do feudatário como domínio útil
Na segunda das duas cartas que Oberto dell’Orto escreve ao filho
Anselmo para instruí-lo sobre a difícil e, em Bolonha, desprestigiada
matéria feudal que constitui o coração dos assim chamados “Libri
feudorum”, encontra-se uma famosa definição de feudo:
[...] est beneficium illud, quod ex benevolentia alicuius ita datur,
ut proprietate quidem rei immobilis beneficiatae penes dantem
remanente ususfructus illius rei ita ad accipientem transeat, ut ad
eum heredesque suos masculos sive feminas, si de his nominatim
dictum sit, in perpetuum pertineat, ob hoc, ut ille et sui heredes
fideliter domino serviant, sive servitium illud nominatim, quale
esse debeat, sit expressum sive indeterminate sit promissum1.
Oberto, um personagem de relevo na vida pública milanesa
na metade do século XII2, é um operador do direito, mais avesso às
avaliações grosseiramente substanciais imperantes nas cúrias feudais que
aos sutis acenos teóricos emergentes entre os mais cultos dos Glosadores.
Com a sua definição ele queria individualizar os elementos essenciais
da relação feudal na sua singular mistura de aspectos refinadamente
pessoais e patrimoniais; para esse último plano, a situação sobre o bem
imóvel se dividia, restando ao senhor-concedente a propriedade formal e
transferindo-se ao vassalo-concessionário o inteiro uti-frui (salvo alguns
direitos senhoriais bem específicos). Tendo em vista que se trata de um
gozo temporalmente ilimitado, é provável que, com usus-fructus, Oberto
quisesse simplesmente dar a entender que o uti e o frui, isto é, o uso e
1 O texto aqui trazido é aquele da vulgata; a respeito da lectio antiqua, as divergências são
GHSXUDIRUPDHQmRWRFDPDVXEVWkQFLDWpFQLFDGDGH¿QLomR/(+0$11S
.$5//(+0$11eHYLGHQWHTXH QDDFHSomRGH2EHUWRfeudum e EHQH¿FLXP
são sinônimos – como resulta claramente também do texto da primeira epístola obertina
DR¿OKR$QVHOPR/(+0$11SHFRPRWDLVRVLQWHUSUHWDUiWRGDDOLWHUDWXUD
posterior.
2 Oberto dell’Orto foi, além do mais, um dos cônsules milaneses presentes na primeira
Dieta de Roncaglia.
222 Seqüência (Florianópolis), n. 79, p. 220-256, ago. 2018
Ideologia e Técnica em uma Definição Jurídica (a Definição Obertina de Feudo dos Glosadores a Cujas)
o gozo do bem, passavam ao vassalo e aos seus herdeiros, e não que a
esses tocasse o romanístico ius ususfructus, isto é, a servidão pessoal de
usufruto, que uma tradição jamais negada limitava temporalmente à vida
do concessionário.
Se nas Summae de Jacopo d’Ardizzone3 e de Jacopo Colombi e
nas Epitome de Jean Blanc5 a definição obertina é recebida sem emendas
interpretativas, já um personagem como Ostiense, nada sutil – na esteira
do seu mestre Sinibaldo – com a nova categoria interpretativa do domínio,
não hesitará – depois de ampla discussão – a qualificar como dominium
utile a situação do feudatário6 –, e, entre os séculos XII e XIII, o monarca
feudistaraum Andrea de Isernia nos dirá que uma doutrina como essa já
se tornou opinião comum: “hoc tenet omnes communiter”7; conclusão
que, no final do século áureo dos comentaristas, foi enunciada justamente
3 “proprietate ... penes dantem remanente, ususfructus eius rei ... transeat ...”
$5,',==21(7;3DUV,IROUHFWR
+8*2/,1, >QD UHDOLGDGH &2/20%, -DFRSR@ Summa super usibus feudorum. In:
3$/0(5,2-%2UJ%,0$(YRO,,. Bononiae: Virano, 1892, I: “est feudum id
EHQH¿FLXPTXRGDEHQHYROHQWLDDOLFXLXVLWDWUDGLWXUDOLFXLXWSURSULHWDWHHLXVUHLTXLGHP
LPPRELLLVEHQH¿FLDULHSHQHVWUDGHQWHPUHPDQHQWHXVXVIUXFWXVHLXVUHLLWDDGDFFLSLHQWHP
transeat, ut...”. O mesmo se pode dizer para Odofredo (cf. Summa ODOFREDI… in usus
feudorum…, &RPSOXWLFDS,4XLGVLWIHXGXP
5%/$1&+2,RDQQHEpitome feudorum (in Tractatus illustrium iurisconsultorum, cit.,
7;3DUV,IROUHFWR³SURSULHWDWHSHQHVGDQWHPUHPDQHQWHXVXVIUXFWXVHLXVUHL
ita ad accipientem transeat ...”. A Epítome blanchiana, muito menos conhecida do que as
RXWUDVGXDVFLWDGDVDQWHULRUPHQWHGHYHUHPRQWDUjPHWDGHGR'XJHQWRFI/$63(<5(6
E. A. Über die Entstehung und älteste Bearbeitung der Libri Feudorum: Aalen, Scientia,
1969 (reimpressão anastática Ausg. Berlim, 1830), p. 81-82).
6+267,(16,6+HQULFLGH6HJXVLR&DUGLQDOLV6umma aurea. 9HQHWLLVOLE,,,GH
IHXGLVQHPTXHVHUHSRUWDjGH¿QLomRREHUWLQDHQ,,QDTXDOVHGLVFXWH ³quod ius
acquiratur vasallo facta investitura” e onde, depois de uma série de argumentações que
pareciam conduzir diretamente a uma solução negativa, conclui-se que “quicquid tarnen
superius sit allegaturn, satis videtur dici posse quod habeat utile dominiurn”). Reticente
VREUHR SUREOHPDGD QDWXUH]DMXUtGLFD GDVLWXDomR GRYDVVDOR pDR LQYpVD GH¿QLomRGH
feudo contida na Lectura FI+HQULFLGH6HJXVLR&DUGLQDOLV+267,(16,6In tertium
Decretalium librum commentaria ... Torino, Bottega d’Erasmo, 1965 (reimpressão
anastástica, ed. Venetiis, 1581), De feudis, Rubrica, n. 5).
7 ISERNIENSIS, ANDREAE. In usus feudorum commentaria ...: Neapoli: 1571, de
FDSLWROLV&RUUDGLY3UDHWHUHD$GGLWLRQ
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