Idosos e covid-19: o descortinamento de uma sociedade (in)civilizada

AutorLívia Abigail Callegari e Sarah Stephanie Silva e Santos
Ocupação do AutorEspecialista em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP/Graduanda em Psicologia. Membro Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Bioética (GEPBio) do Centro Universitário Newton Paiva
Páginas237-263
IDOSOS E COVID-19: O DESCORTINAMENTO
DE UMA SOCIEDADE (IN)CIVILIZADA
Lívia Abigail Callegari
Especialista em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra e em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP. Membro do Comitê de
Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da USP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa
em Bioética. Direito e Medicina da Faculdade de Medicina da USP (GBDM/FMUSP).
Advogada Inscrita nas Ordens dos Advogados do Brasil e de Portugal
Sarah Stephanie Silva e Santos
Graduanda em Psicologia. Membro Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em
Bioética (GEPBio) do Centro Universitário Newton Paiva.
“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma
parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa ca diminuída, como se
fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte
de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não
perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.
(John Donne)
Sumário: 1. Introdução. 2. Aspectos conceituais do envelhecimento. 3. Desaos sociais. 4.
Ageísmo e alocação de recursos escassos na pandemia. 5. Impactos psico-sócio-econômicos
no isolamento e na morte de idosos por Covid-19. 6. Idosos em instituições de longa perma-
nência. 7. Considerações nais. 8. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Marcado pela pandemia Covid-19 (Coronavirus Disease 2019), o ano de 2020 en-
trará para a história da humanidade como período que trouxe, em toda parte do planeta,
implacável revelação das lacunas estruturais de cada país, justamente por se tratarem
de assuntos negligenciados, ou mesmo postergados dentro de cada política de Estado,
o que acabou por causar, de imediato, em desastrosas repercussões. Desvelaram-se as
fragilidades e insustentabilidades contidas nos sistemas de saúde, além de outros pro-
blemas sanitários latentes, tanto de infraestrutura, como da ausência de informação
básica aos cidadãos oriunda de processo educativo que propicie letramento em saúde,
por meio de aprendizagem sobre conceitos básicos a resultar, inclusive, em adequadas
medidas de autocuidado.
De toda essa rápida profusão de acontecimentos e, não menos provável, em vir-
tude das necessárias medidas de isolamento para a contenção da propagação do vírus,
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estabeleceu-se um frontal abalo na economia mundial, de cujas consequências adversas
permanecerão durante um longo período de recuperação.
Outrossim, a sensação ilusória de invencibilidade trazida pela evolução da
tecnologia causa ansiedade exacerbada e certa frustração em boa parte das pessoas,
pela ausência de solução imediata para os obstáculos que se apresentam. Fato é que
o tempo da ciência nem sempre corresponde ao tempo da resposta almejada e das so-
luções requisitadas pelo senso comum. Para o momento, devido à necessidade de se
introduzir proteção em favor dos indivíduos mais susceptíveis a abalos de toda ordem,
resta apenas amenizar os potenciais riscos. Para tanto, é indispensável a revisitação do
conceito de autonomia, com o objetivo de reavaliar os seus limites e ratif‌icar possibi-
lidade de responsabilização decorrente de injustif‌icadas atitudes que possam causar
perigo desnecessário à comunidade.
Isso porque, para alguns, o vírus com alto índice de transmissão pode ser mera
inconveniência que os obriga a trabalhar e estudar em casa, a não aglomerar em de-
terminados espaços de lazer ou a usar máscara de proteção nos ambientes públicos.
Contudo, o mundo já registra milhões de casos e centenas de milhares de mortos pela
doença. Além de colocar em evidência os mais variados problemas na estruturação
social, a magnitude dos números é incapaz de negar a presença massiva dos que pagam
o maior preço pela propagação desenfreada, aqueles cuja faixa etária é o principal foco
dos óbitos precoces: os idosos.
Por tantas vulnerabilidades inerentes e impostas aos idosos, o novo coronavírus
encontra facilidade em capturá-los. A lista que remete à fragilidade dessa vertente da
população brasileira é extensa e abrange desde a discriminação por idade, às comorbi-
dades associadas até os governos que destinam recursos propositalmente desatentos à
dignidade da pessoa idosa. Notoriamente, segue sem ignorar o congestionamento do
Sistema Único de Saúde na tentativa de amparar a grande maioria dos idosos brasileiros
e sem, tampouco, omitir os efeitos indiretos da pandemia, como sintomatologias de-
pressivas e descompensação de doenças crônicas.
O presente estudo intenciona reunir e discutir os materiais já produzidos acerca dos
agentes e dos desdobramentos porventura envolvidos na relação entre idosos brasileiros
e Covid-19, revisitar alguns conceitos, bem como assinalar as dif‌iculdades e os acertos
evidentes até então. Pelo exposto a seguir, é possível verif‌icar como a sociedade carece
de repercutir produções acerca da relevante existência da pessoa idosa.
2. ASPECTOS CONCEITUAIS DO ENVELHECIMENTO
O envelhecimento populacional é uma das maiores conquistas da sociedade. Há
bem pouco tempo, travava-se uma batalha contra a perda da natalidade. Atualmente, há
o aumento da qualidade e da expectativa de vida, fato este que enseja formação de novos
valores e adaptação aos costumes dessa ordem que se instala. No entanto, cabe pontuar
que cada país, de acordo com a sua perspectiva sociocultural e econômica, delimita os
modelos e soluções estruturais para lidar com essa camada da população. Por isso que
o envelhecimento em cada país incorpora diferentes nuances.

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