Igualdade salarial

AutorFabíola Marques
Ocupação do AutorAdvogada militante na área trabalhista, mestre e doutora em Direito do Trabalho pela PUC-SP
Páginas19-38

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1.1. Conceito de igualdade

O princípio da igualdade está positivado na maior parte das Constituições dos diversos Estados modernos. No Brasil, foi previsto pela Constituição Federal de 1988, no caput do art. 5º, segundo o qual "todos são iguais perante a lei". É um princípio peremptório e um direito fundamental porque assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País, a igualdade como a principal garantia constitucional, antes mesmo e à frente da discriminação dos direitos e garantias fundamentais que institui.

Como esclarece José Souto Maior Borges, a isonomia, em posição "topograficamente" de destaque na Constituição Nacional é superior aos demais direitos e garantias, perpassando-lhes o conteúdo normativo, já que na lição de Francisco Campos "rege todos os direitos em seguida a ele enunciados"1, devendo ser realizada uma interpretação ampliativa e universalista do princípio.

Nessa linha de pensamento, é de fundamental importância determinar qual o papel do princípio da legalidade e explicitar como situá-lo neste contexto. Segundo o mencionado mestre pernambucano, "a legalidade é apenas instrumento da manifestação da isonomia", uma vez que a legalidade e a isonomia não correspondem a instituições constitucionais diversas, sendo uma única criatura da Constituição, "a isonomia deve manifestar-se no âmbito da legalidade. E a legali-dade no âmbito da isonomia. Não é a isonomia algo que extrapasse a legalidade. É apenas um dos seus conteúdos necessários."2

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A proclamação do princípio da igualdade entre todos os homens de qualquer condição, como princípio fundamental da existência humana, deve-se aos estoicos e ao Cristianismo, como acentua o mestre português Guilherme Machado Dray.3 Antes disso, entretanto, os gregos já distinguiam três espécies de igualdades: a isonomia, ou direitos iguais perante a lei; a isotimia, ou igual direito dos cidadãos de ocupar cargos públicos; e a isegoria, ou igual direito de exprimir com a palavra o próprio pensamento.

O princípio da igualdade sofreu grande desenvolvimento com Platão, e seu discípulo Aristóteles, para quem a igualdade não é exigência política fundamental do homem, mas, sim, ideia eminentemente ligada à justiça e ao Direito.

Importante não esquecer que tanto Platão quanto Aristóteles escreviam para os cidadãos livres, e a sociedade em que viviam aceitava e concebia o regime da escravidão como algo natural.4 De acordo com essa linha de pensamento, portanto, aceitava-se a ideia de uma desigualdade natural entre os homens, posto que somente alguns eram capazes, naturalmente, de raciocinar.

A superação da escravidão como algo natural, como já ressaltamos, coube aos estoicos. Cícero proclama a igualdade natural entre todos os homens, e Séneca afirma a natureza idêntica entre o escravo e seu amo. A igualdade é elevada a princípio fundamental da existência humana, e a ideia de que todos os homens são naturalmente iguais é afirmada.

Atualmente, a igualdade é um dos elementos integrantes da noção de Justiça, sendo norma basilar do Direito, universalmente aceita.

O princípio da igualdade é preocupação geral do Direito, seja em âmbito internacional, seja em âmbito nacional, e é previsto em nível constitucional e ordinário.

No Direito do Trabalho, o princípio da igualdade busca a isonomia subs-tancial e verdadeira entre as partes, por meio do princípio de proteção ao empregado, o qual é considerado a parte mais fraca da relação trabalhista. Esse

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imperativo constitucional projeta corolários negativos e positivos, já que serve de fundamento a comandos de índole proibitiva de um lado, e gera normas que criam aos destinatários deveres de agir em certos moldes.5 Assim, a ideia de não discriminação, decorrente do princípio da igualdade, caracteriza-se como um princípio proibitivo, por intermédio do qual se procura impedir o tratamento desigual e desvantajoso para grupos particulares de trabalhadores, como as mulheres, por exemplo. Por outro lado, as regras relativas à igualdade material das relações de trabalho, como o princípio pro operario (na interpretação das normas) e o da "norma mais favorável" (quanto ao conflito positivo de normas no espaço e no tempo), caracterizam-se como regras positivas, já que obrigam o intérprete a uma certa atitude.

Nesse sentido, Américo Plá Rodriguez explica que o Direito do Trabalho tem o propósito de nivelar desigualdades, citando Couture, para quem: "o procedimento lógico de corrigir as desigualdades é o de criar outras desigualdades", e Radbruch, segundo o qual, "a ideia central em que o direito social se inspira não é a da igualdade entre as pessoas, mas a do nivelamento das desigualdades que entre elas existem. A igualdade deixa assim de constituir ponto de partida do Direito para converter-se em meta ou aspiração de ordem jurídica".6

Segundo os autores espanhóis Manuel Carlos Palomeque López e Manuel Álvarez de La Rosa, no âmbito das relações de trabalho, o direito à igualdade têm duas facetas: a primeira relativa ao direito dos sujeitos laborais (trabalhadores, empregadores, sindicatos, associações empresariais) de receber o mesmo tratamento do poder público (direito público subjetivo de igualdade), que se manifesta: a) na igualdade perante a lei (igualdade na lei ou perante a lei) que limita em certo sentido a atuação normativa do Estado e também da autonomia coletiva, e b) a igualdade na aplicação da lei, que limita a atuação jurisdicional e a administrativa do próprio Estado; e a segunda relativa ao direito dos trabalhadores de não serem discriminados pelo empregador no seio da relação de trabalho que os une contratualmente (direito privado subjetivo de igualdade).7

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Parece claro que entre as pessoas há diferenças. A lei, no entanto, por ser destinada a todos, não pode estabelecer distinções aos iguais. Como bem esclarece Celso Antonio Bandeira de Mello, recorrer à afirmação de Aristóteles, como repetidamente se faz na doutrina, de que a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, não resolve de todo o problema, já que resta uma zona cinzenta, acerca da definição sobre quem são os iguais e quem são os desiguais. Portanto, cabe a questão: quais os critérios legítimos que autorizam a distinguir pessoas e situações em grupos apartados para fins de tratamentos jurídicos diversos?8

Ora, o objetivo da lei é, em verdade, discriminar as situações com a finali-dade de submetê-las a determinadas regras. Assim, é preciso indagar quais as discriminações jurídicas intoleráveis, uma vez que a igualdade de fato, ampla e absoluta entre todos os membros de uma sociedade, é materialmente impossível.9

Neste exato sentido, na tentativa de reduzir a aparente desigualdade existente entre espécies de trabalhadores é que o legislador determinou a correção da hibridez através de leis, as quais, por sua vez, retomando as lições de Aristóteles, possuem necessariamente caráter geral e, por isso,não raro sua aplicação é imperfeita ou difícil10, criando toda a problemática existente, tal qual exposto nesta obra.

Condição esta ainda mais agravada pela constante modificação do conceito social sobre os fatos e valores a respeito do significado de igualdade e como ela é atingida, possuindo reflexo direto na interpretação e aplicação das leis sobre a matéria, a luz de como ensina Miguel Reale em seu conceito de "Culturalismo" e em sua Teoria Tridimensional do Direito. Como já foi ressaltado, o princípio da igualdade não significa uma completa igualação no tratamento das pessoas, mas tem por objetivo impedir a discriminação arbitrária que pode ocorrer entre pessoas em situações semelhantes, por causas não objetivas.11

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Destina-se, no Direito do Trabalho, à proteção do trabalhador como entidade abstrata, sem prejuízo de características de ordem pessoal.

O princípio da não discriminação, deve, no entanto, ser entendido apenas como uma das direções possíveis em que se pode manifestar o princípio da igualdade. Esse é o entendimento de António Monteiro Fernandes, que assim se expressa:

"O seu conteúdo, respeita, na verdade, especificamente, ao juízo de adequação ético-social que pode - e deve - incidir sobre algumas motivações ‘categoriais’ de tratamento diferenciado. Não parece estar nele essencialmente em causa o próprio fenômeno da diferenciação, mas sim o fundamento dela; o princípio em referência pretende atingir frontalmente como insusceptíveis de basear tratamento diferenciado certas características objectivamente distintivas de outros tantos conjuntos de indivíduos: a raça ou o sexo não são, de harmonia com o princípio e com as suas conhecidas precipitações normativas, motivos lícitos de tratamento diverso face ao padrão socialmente estabelecido, quer este derive da lei, quer se localize na prática social." 12

A lei, ao determinar os fatores suscetíveis de discriminação indesejável, como o sexo, a raça, a idade, o credo religioso ou político, a deficiência física ou mental etc., nada mais fez do que indicar os elementos mais comuns, que, em certa época ou meio, são considerados como razão de discrímen.

Nota-se, entretanto, que nem sempre a discriminação será considerada odiosa. Vê-se, por exemplo, a exigência de candidatas mulheres para o preen-chimento do cargo de polícia feminina, ou, então, a proibição de contrato de menores para exercer atividades insalubres. Tais exigências e proibições não ferem, nesses casos, o princípio da igualdade.

Assim é que o conceito de discriminação, na linha do desenvolvimento axiológico do princípio da igualdade, deve ser construído depois de uma triagem, feita com base em valores constitucionalmente afirmados sobre os motivos possíveis de diferenciação de tratamento. Para citarmos um exemplo, que permite o...

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